edição 48 | outubro de 2014
temas:  uma andorinha só | amuleto | old times

 

6 poemas
difunta correia 


apresentação

 

 

Mais velha que Funérea

Escalpelada pela vida

Filha relegada das Parcas

Maldita como as malditas

 

Sou o que sou;

O vírus mais pervertido

O Ebola que evola

Um abismo no abismo.

 

 

 

 

perspectivas do de cujus

 

 

Em pé no caixão

— Com as mãos sob o ventre —

Observa-nos com seu semblante cerrado e corado.

 

Para ele, estamos deitados

— pálidos —

Nós, que já morremos.

 

 

 

 

uma andorinha

 

 

Uma andorinha só

É mais livre que

Uma revoada

Que não sabe para

Onde voa.

 

Mais importante que o voo

É a liberdade.

 

 

 

 

camelo

 

 

Uma vez,

No Marrocos,

Queriam trocar

Uma amiga

Por um

Camelo.

 

Achavam,

Em vão,

Que iriam

Montá-la

Como

Montam num camelo.

 

Não tenho dúvidas

De que — pra eles —

Foi uma bela homenagem

 

Mas poderiam tê-la feito

Sem precisar trocar

O já calejado

Camelo

 

 

 

 

retrato de velhos tempos

 

 

Em cada repartição

A foto insossa do presidente

Reproduz

O seu governo.

 

Nos hospitais,

A bandeira hasteada

Parada, inerte,

Murcha

Porque não venta.

 

 

 

 

lembrança

 

 

As cidades começavam nos subúrbios

Rente à linha do trem

Onde os viajantes

Ficavam hospedados

Perto de um prostíbulo espurco

E repleto de putas sujas

Como a graxa

Dos trilhos do trem.

 

 

Difunta Correia é uma defunta. Num belo dia, morta e consumida pelo tédio da eternidade, resolveu cortar a barba de São Pedro para doar para São Nicolau. Puto da vida, São Pedro entrou com uma ação no Tribunal Celestial. Condenada, foi enviada ao inferno, onde prontamente foi destratada por Caronte, que lhe negou a travessia por ser credor de algumas moedas. Rejeitada nos dois mundos, vive atualmente num planeta de merda chamado Terra. Não a confunda com a Difunta Correa — a Santa que amamentava mesmo estando morta. Com silicone estourado e os peitos murchos, está longe de amamentar alguém. A gravidade é uma merda.

 

 

poema
jeanne araújo 


Tenho um amuleto

entre as pernas

como um botão

 

e pra fazer efeito

dois dedos apertados

entre os vãos

 

se para sua sorte

esfregaço de concha

e língua e mãos

 

toques e beijos

sopros e carícias

magia, oração

 

e não temerás

anjos e demônios

com este talismã

 

amuleto, orgia,

sorte, milacria

puta, cortesã.

 

 

Jeanne Araújo é professora, poeta e escritora. Publicou o livro de poesia Monte de Vênus.

 

priscila merizzio | muro da rua são francisco | curitiba | 2014

 

 

3 poemas
lâmia drakoi del trópico 


uma andorinha só

 

 

 

 

 

 

amuleto

 

 

Insiro pela garganta

até atingir o órgão

digestivo, se descer

é bom, mas se voltar

é Karma Ruminante.

 

 

 

 

old times

 

 

o tempo não existe, vovó!

Volte a trajar fraldas,

jogar bolinhas de gude

e trocar figurinhas com o seu inimigo imaginário.

Pode confiar, vovó!

Foi o Einstein quem disse.

 

 

Lâmia Drakoi Del Trópico é física quântica e especialista em efeito Hamlet. Nasceu em uma tribo indígena durante os estudos antropológicos de sua mãe Cassandra Drakoi Del Trópico. Escreve poemas para exercitar sua capacidade de criar mensagens subliminares. Para quem se interessar, Lâmia publicará em breve o livro de poemas A Bomba Quântica.

 

 

3 poemas
lisa alves 


o descobrimento

 

 

Eles caminhavam em busca de uma terra que pelo menos tivesse um rio com água em abundância.


Eles defendiam-se do sol com tecidos especialmente feitos para proteger a pele da invasão intensiva dos raios.


Eles construíam casas em qualquer local que desse para colocar uma nova cerca.


Eles não cansavam, eram dromedários, capazes de seguir em frente até darem de cara com o final.


Eles não choravam, eram hienas, seus lamentos pareciam risadas (capazes de afastarem os inimigos de perto).


Eles não se machucavam, eram elefantes, capazes de segurarem um dos seus em qualquer momento de dificuldade.


Eles não fugiam dos obstáculos, eram macacos, pulavam e suportavam qualquer tipo de superfície.


Eles mergulhavam no mundo mais profundo, eram peixes, desbravavam qualquer oceano em busca de alimento e abrigo.

 

Eles só não eram andorinhas, pois odiavam o verão.

 

Eles nos descobriram e até hoje não encontramos antídoto para esse resfriado.

 

 

 

 

 

fama volat

 

 

Dentro da taça um vulto introespectro pousa, salivo a retina e sorvo um conteúdo obsessor.

 

Já não sou casta a ponto de andar sobre os dois pés e de cabeça rasa.

 

Síndrome de super homem ativa minha percepção e molda o meu caminhar.

 

Carreira in quatro linhas horizontais, igualmente me seduz.

 

Artificializar os sentimentos é uma proposta garantida para o esquecimento.

 

Cultuo HQs ao ponto de crer em pozinhos mágicos.

 

O pó dos ossos enriquece a estética humana — gera-se noradrenalina e assim as iniqüidades do mundo tornam-se risíveis. 

 

Gargalho sua falta de graça, danço sua robótica música, transo com pedaços de carne.

 

Todos possuem um açougueiro interior

Todos possuem um coveiro interior

 

Eu só tenho uma chave sem uma arca,

uma chave sem uma entrada e muitas especulações.

O amanhã é sempre uma incerteza e o destino um leito de terra.

 

Preparo uma dose maior, pois ainda consigo sentir humanidade.

 

Aspirar,

respirar,

aguardar

o tempero

do tempo e

encarar a multidão.

 

Há um espelho que conserva minha legítima face:

 

"Fugit irreparabile tempus"

 

Há um espelho que desbota os dias de glória.

 

 

Logo só me restará

um quinhão de Heroína & um prazer súbito e mortal.

 

 

 

 

 

não ouviram nada do ipiranga

 

 

Verdes, azuis, amarelos e brancos — tecidos e mais tecidos são despejados pelos navios mercantes.
Ouro, prata e diamantes — a troca perfeita para os novos consumidores da América.

Clima tropical combina bem com os casacos de peles usados na Europa e toda sorte de quinquilharias inúteis invadem o solo agora pisado por colonos, jesuítas e Joaquins Manuéis filhos de Senhoras Putas.

Vida longa ao Rei! E a nobreza desfila por cima da carne humana.
Três africanos em troca de mais um pedaço de terra ou por bem menos que isso.

Os sinos tocam e as mocinhas correm para rezarem a missa. Enquanto isso o padre termina de almoçar o novo coroinha.

— Toc, toc!

— Quem é?

— Seu novo Eu!

 

Os carros passeiam pela madrugada. "Lá vem Eles, corram!"
E os tiros silenciam toda manifestação dos chamados livres expressadores.
De fundo um hino propaga tudo aquilo que nunca existiu...
E não Ouviram nada do Ipiranga, só silencio misturado com o sangue dos "insetos".
                                                                                                                         

 

— Toc, toc! 

— Quem é? 

— Sou eu, só queria desejar uma boa noite!

— Boa noite!


Enquanto isso a presidenta não faz a barba e mesmo assim fica bem distante do perfil Marx.

A foice e o martelo duelam entre si e as novelas terminam com um final feliz

Pão de queijo, rapadura e vatapá.

E os coronéis ainda estão no controle.

Isso não é um poema.

Os poetas foram chacinados pela Indústria Cultural.

Isso não é um grito.
Estamos mudos demais para isso.

Isso é apenas o relato de alguém que não ouviu nada do Ipiranga.

 

 

Lisa Alves é mineira de Araxá (MG), residente em Brasília. É escritora e uma entusiasta anarquista. Possui publicações em vários espaços literários e coletâneas, mas prefere escrever em muros e lugares vetados. Possui duas bocas e uma insiste em dizer coisas do tipo: "Pi é igual a 3,14159265359". Vai publicar Arame Farpado (livro de poemas) em breve. Escreve em A Fábula de um Mundo Real. Está no Facebook e no Twitter.

 

 

 

priscila merizzio | um copo d'água fumegante | curitiba | 2014

 

5 poemas, 1 miniconto
tere tavares 


a mulher dos cabelos encaracolados

 

 

Tinha os olhos desgrenhados, a boca em forma de coração, um olhar quase escondido, angustiado, mas via, e intuía. Algo a impulsionava a seguir sem importar-se com o que diriam os outros, aqueles que a conheciam ou viessem a conhecê-la. Gostava de olhar-se no espelho, conferir o delineador, o batom, a tez e os cabelos, sim, aqueles cachos assemelhavam-se às uvas maduras pendidas das parreiras — transportou-se, em segundos, para o tempo em que vivera em meio aos pomares e às hortas, às ervas e relvas, conhecia as plantas medicinais, as frutas silvestres, as borboletas, os pássaros, os matagais, os murmúrios das florestas, onde havia cedros e araucárias, as estradas e as encruzilhadas, as colmeias, os bichos e seus chiados, como um inescrupuloso encontro entre amor e mais amor. Afugentou-se pelas ruas aquecidas da metrópole, agora sua paisagem era a corrida inconsumível de um dia-a-dia que jamais se adiava. E, no entanto, passava, passava, passava. E aquele breve e infindável instante em que permaneceu, como se andasse para trás, revelou-se na magia de um legado que alguém lhe havia reservado. Não perdeu a graça nem o santo nem o pranto nem o tempo. A cada tremular estrutural do seu corpo, a cada passo, assegurava-se de guardá-lo, como uma apólice a garantir-lhe alguma proteção vinda do aparente desconhecido. Como no dia em que lhe arrancaram a bolsa do braço e o celular e o relógio e o camafeu e os anéis e algumas gotas de sangue — e o corpo, a vida, não fosse o amuleto.

 

 

 

 

fora do comum

 

 

Costuma dar poderes às coisas inanimadas

Escolhe uma semente de uva, outra de unha-de-gato, outra de romã...

Até completar nove sementes

Faz com a seda do coração e a teia da alma um pequeno invólucro.

E o guarda como um amuleto dentro do seu travesseiro de macela.

E aguarda até a cicatriz cruzar a lua — nenhuma testemunha. 

A casa está vazia. Nunca ela.

 

 

 

 

de um puro azul metálico ou de uma cauda bifurcada

 

 

Os barrancos úmidos da terra migram nas tuas asas

Nos ocos das árvores abandonadas também fazes casas

Com a distância que carregas escavas as raízes

Com o canto luxuriante e brando é que dizes

O anúncio da primavera

Nunca só

Porque andorinhas em bando.

 

 

 

 

saudade

 

 

Bendirei eternamente os meus lábios

Porque de ti se molharam

Naquele antigo tempo em que nos pensávamos sábios.

 

 

 

 

constância

 

Aquela música que nasceu antes de nós

E nos encantou os murmúrios

Os tempos longínquos e nunca gastos e nunca idos ainda que passados

Que redobro e corto como um cão fidedigno

Que recordo ainda que não queira

Como mordemos o início dos nossos rios.

 

 

Tere Tavares (Cascavel/PR). Escritora e artista plástica, publicou os livros Flor Essência (poemas, 2004), Meus Outros (poesia e prosa, 2007), Entre as Águas (prosa, 2011) e A Linguagem dos Pássaros (poemas. São Paulo: Patuá, 2014). Participante de três coletâneas editadas em Portugal: A arte pela escrita III (2010), Cartas ao Desbarato (2011) e A arte pela escrita IV (2011). Integrante da antologia Saciedade dos Poetas Vivos, Vol. 11 (2010) organizada pelo portal Blocos onLine. Teve trabalhos selecionados no Banco de Talentos Febraban com o conto "Sem pena de ter", em 2007, e com a poema "Eu em mim; de um outro lado", 2009 — ambos publicados nas antologias da Febraban. Ainda em Portugal foram publicados poemas e textos seus em diversas edições do "Debaixo do Bulcão Poezine". Na antologia Contologia, da revista Arraia PajeurBR 4, 2013, teve a publicação do conto "Ainda sobre Margaridas". Possui trabalhos de poesia e contos espalhados em vários sítios da Internet, dentre os quais os portais Cronópios, Histórias Possíveis, Blocos on line, Ver-o-Poema, Musa Rara, Diversos Afins, e jornal on-line O liberal, de Cabo Verde. É colaboradora do blogue Dardo. Participa do portal lusófono litero-artístico EscrtArtes. Integra a Academia Cascavelense de Letras, onde ocupa a cadeira de número 26. Edita o blogue M-eus Outros.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

» Imagens

 

Priscila Merizzio. Curitibana, ventríloqua, nascida no Ano do Búfalo. Publicou Minimoabismo (São Paulo: Patuá, 2014).
 
 
 
 
 

 

 

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