edição 52 | outubro de 2016

uma mulher de sorte | fome | placenta

 

 

 

fomes

cinthia kriemler

 

 

A fome não é exigente: basta contentá-la; como, não importa.

(Sêneca)

 

 

No primeiro tombo, ralou os joelhos no assoalho duro. Ganhou consolo, colo, chupeta. Viu o piso inanimado de madeira ser chamado de bobo e feio pela mãe, e receber do pai tapas insanos. Não achou graça. E chorou aos gritos, nariz escorrendo, punhos tão cerrados que arrebentou a pulseira de ouro de chapinha na qual o nome dela estava gravado em letra bordada. Esperneou, corcoveou, puxou os próprios cabelos e os da mãe, que a sujigava nos braços para que ela não caísse. Então, o pirulito. Grande, multicolorido. Entregue pelo pai como um troféu melado. E não houve mais choro ou ranger de dentes.

Que gracinha! Menina linda da mamãe! Amorzinho do papai! Que belezinha!

Passou a infância entre doces, sorvetes, choros e elogios. Chocolates pretos, brancos, crocantes, recheados. Recebidos em momentos de dor, de aflição, de insegurança, de carência. Na adolescência, descobriu os sanduíches de dois andares, os refrigerantes, os achocolatados misturados com granulados, as casquinhas de biscoito que enfeitavam os milk-shakes e que depois passaram a ser comidas sem os milk-shakes.

E como a ansiedade não passava, e como os meninos já eram ridiculamente fiéis às formas esquálidas, e como as dela eram redondas e macias como as almofadas do sofá, deixou que toda aquela fome, constante e imensa, fosse aplacada por novos sabores. Incluiu na dieta um baseado por noite e cinco dias de álcool por semana. Vodca. Retirada sem aviso do estoque do pai. A Stolichnaya era tomada em copo de plástico branco. Em casa. No quarto. Caso alguém entrasse sem bater, não daria muita atenção a um copinho descartável. Na rua, fazia vaquinha com os amigos; compravam gelo.

Mas a fome não passou. Não passava nunca. Além do apetite causado pela larica e pela ressaca, havia mais. E ela queria esse mais. Da primeira vez que fez sexo, sentiu-se saciada, relaxada. O banco de trás do carro era apertado para o seu corpo gordo, mas aquele aperto todo tinha excitado o parceiro. Mais atrito, mais encaixe, mais penetração, ele explicou assim que a trepada terminou. Naquela noite, ela se esqueceu do baseado e do copo de vodca, que dormiu metade cheio embaixo da cama.

Viciou-se naquele alívio que a fez esquecer os doces, os refrigerantes, as pizzas, o álcool. E descobriu que o que lhe dava mais prazer no sexo era enfiar na boca o membro ainda mole e senti-lo crescer ao comando da sua língua nervosa. Em pouco tempo, ganhou fama de ser a melhor na prática do sexo oral. Ela diria pênis e boquete, mas ainda não estava pronta para essas palavras tão íntimas.

Namorados, amantes, ficantes. Ela escolhia. Marcava e desmarcava dia e hora. E decidia quanto tempo duravam. Desejava, implicava, atraía, rejeitava. Passou a trocar o almoço por transa. O jantar, os lanches de fim de semana. Trocou de idade várias vezes, virou mulher. Gostosa, safada, experiente, esperta. Magra na medida certa. Cheia nos lugares certos. Até que cismou que precisava entender aquela fome maior do que ela. Procurou psicólogo, padre, benzedeira, astrólogo. Comprou livros que falavam de obsessão, de compulsão, de possessão, de fugas, de vícios, de complexos, de negação, de distúrbios. Nada.

Então, leu sobre o controle. E sobre a dominação. Teve fome de algemas, chicotes, correntes. Fome de poder. Esse pirulito grande, multicolorido.

 

 

Cinthia Kriemler nasceu no Rio de Janeiro e mora em Brasília. É contista. Queria ser poeta. Autora dos livros Na escuridão não existe cor-de-rosa (2015); Sob os escombros (2014); Do todo que me cerca (2012), todos pela Editora Patuá. E de Para enfim me deitar na minha alma (2010), projeto aprovado pelo FAC-DF. Na Amazon Brasil, mantém os e-books Atos e omissões e Contações. Está em diversas antologias de contos, em algumas poucas de poemas. Escreve todo dia 16 para a Revista Samizdat. Seu blogue: cinthiakriemler.blogspot.com.br.

 

 

 

 

©guy bourdin

 

 

 

3 poemas, 3 minicontos

cris zaninelli

 

 

saia de bicicleta

 

 

Hoje eu visto saia

Para que toda libido me saia.

A saia e só

me solta

Sem combinação.

Em livre sinestesia

posso misturar

vermelho e fúcsia

e voar ao vento

onde nem cor

nem corrimento

vão me prender de pedalar até...

O suor escorrer

da ponta do nariz

para a coxa

ainda moça

que desliza

ao sabor do selim

sem fim

do meu roliço

e tenso biciclo

Firme tripé em pé.

É duro!

É.

Mas ai de mim

que gosto dele assim.

 

 

 

um dia perfeito

 

 

O plano era ensolarar

mas na última hora enchuvou

e agora, 'bora desarrumar

a mochila quase vazia

leve e fresca de verão.

Ia me embrenhar

embalada no colo da Maria Fumaça

pelas veredas da Serra do Mar,

cultuando o santuário natural

enquanto o sol se espreguiçasse pela manhã mansa.

Mas ai, que desgosto,

descortinar nesse amanhecer de janeiro

um céu escapado de agosto.

Quando começa desse jeito,

pode contar que entra água

e azeda o passeio inteiro.

E eu, que tanto queria

luminosidade abundante

sobejando de azul, amarelo, vermelho

e suas filhas exuberantes,

como fico com esse contraste cinza, prata, gelo?

O planejado era clicar

snapshots mil

e ainda antes do fim da linha

postar, compartilhar e aguardar

curtidas massivas em meu perfil.

 

Chegando lá do outro lado,

Muitas selfies, posts, check-ins

era a diversão que eu tinha imaginado

mas quem ia achar graça e curtir

meu look num clima assim?

 

E lá fui eu contrariada,

cumprir o triste destino de "pé-frio"

causadora dos dias nublados de verão

(principalmente em fim de semana e feriado).

Arrastando minha tromba pelo chão,

sem vontade nem de olhar para o lado.

 

Para encerrar tanta desventura,

deixei para trás celular, câmera, smartphone,

tudo que mais importava para a aventura.

Entediada, sem saída

só me restava assistir

embrumadas cenas torpes

pela janela exibicionista,

com vistas melancólicas da vida.

 

E eis que o que era para ser tristonho

do nada me arrebata e extasia

não é que disfarçado sob cúmulos medonhos

desvendo uma outra luz naquele dia?

Explodindo de vitalidade

Se deleita a natureza em seu majestoso banho.

E eu ali, com privilégio desavisado

me inebrio diante de tanta maravilha

de céu, terra, fauna e flora

encenando inestimável espetáculo de vida.

 

Novo ânimo corre por meu coração enlevado

pela descoberta de inconcebível tesouro,

sem querer, me sinto hipnotizada

por algo mais forte atraída

a virar para o outro lado…

é quando nossos olhares se fundem

num encontro há eras pressagiado

e sinto-me  nesse momento

a criatura mais abençoada,

pois de toda beleza que contemplo

é de teu sorriso que mais me encanto.

É em teu belo olhar que viajo

nesse flash que eternizo e guardo

de real colorido sem efeitos

em que teu beijo pousa

em meus lábios.

 

 

 

rocambole I

 

 

Juntos caminham dois como se apenas um fossem sem nunca parar e nada dizem mas que seus sonhos voem alto e livres para se encontrar no infinito e que isso dure até a eternidade do próximo amanhecer ou que não demore muito para que não se faça o tempo parar por longos segundos. Nunca se morre enquanto não se mata, com que armas? Por qualquer segundo que se possa parar e não pensar em nada, eu daria qualquer parte do próprio corpo para que eles voltem a si e se vejam parados à beira do abismo e saibam recuperar o que já perderam, mas eles já não podem ver o que se esconde atrás da névoa branca e então não está mais lá o olho divino que concede o perdão supremo. Muitos foram os buracos onde deixaram cair partes preciosas de seu caráter e escura é a noite onde se perderam para sempre, caminharam em círculo até ser abatidos pelo cansaço e dali não mais puderam se levantar. Vieram lobos para salvá-los inertes — nem vivos nem mortos — ouviram os uivos e depois caíram num sono profundo e sem sonhos, a quem pertencem agora? Desmascarados se revelaram sem mais esperança sob a chuva rala que lhes molhou os rostos e aliviou suas dores.

 

 

 

rocambole II

 

 

As folhas do chão eram macias e faziam um ruído tão acalentador nem sentiram medo antes do próximo passo incerto rumo ao que não conheciam, estavam novamente no caminho e nada que os pudesse deter e ninguém com coragem de segui-los pelos campos desertos, montanhas escarpadas e florestas escurecidas no mundo que não girava ao redor do sol, o alento do espírito era o irreal e a carne só podia se alimentar da aventura, nenhum sopro trazia frio e cada passo avançava sempre sempre nunca mais poderiam parar já estavam marcados em todos os tempos e escreviam sua história contada em passos e quedas, em espaços infinitos brancos como a luz que vislumbravam ao longe e não parecia tão longe conforme olhassem com temor ou alegria. Se acabava a lenda, se concretizava o mistério se desfazia em vazias impressões.

 

 

 

rocambole III

 

 

Pensavam que tudo podiam, fortes eram mais que os gritos de dor dos que já passaram e não puderam mais voltar, vitória maior as do que nunca se aventuraram a percorrer, caminhos tão íngremes mas eles iam ainda e não sabiam o que queriam (ou temiam) encontrar por tudo o que já haviam visto não imaginavam nem euforia nem desânimo ou alívio ou decepção, o que tivera começo não encontra fim e ficava de onde nunca saíra, vultos os saúdam por seus ideais pequenos e sua coragem insignificante, significava que mais nada voltaria ao lugar, a ordem estava desfeita, as cartas embaralhadas, o caos instalado, o que viam guardavam para o próximo ato, o que não viam logo esqueciam. Parou a chuva mas não houve sol nem luz nem calor, lá estavam e já podiam se imaginar no topo olhando tudo por cima de nuvens que encobriam segredos profundos, nem tão depressa mas não muito devagar para não mudar o ritmo cronológico de seu destino incerto, eles quase nunca mais foram, como se jamais pudessem compreender o inexplicável e explicar o incompreensível do espetáculo que presenciaram ao final da grande conquista de caminhos tortuosos rumo ao impossível, o prazer de estar só os dois no centro do mundo.

 

 

 

Acende a chama

 

 

Desço para o escuro

desconhecido

onde só a chama

azul-violeta brilha.

E é para ela que me lanço.

Teimosa, persistente,

corro mais que todos,

chego na frente,

sou a vencedora.

Certeira, pontual,

misturo-me à chama violeta-azulada

e unindo-me a ela

formamos um.

Fecundo. Floresço

Sou. Existo. Vivo.

Aqui e agora,

na exata hora,

nem adiantada

nem atrasada.

Precisa, perfeita.

Completa, única.

Amada, desejada, querida.

Bem-vinda.

À vida.

Eu.

 

 

Cris Zaninelli. Escritora, professora de inglês, marketing, projetos e inovação. Seu poema "Velhas leis" foi agraciado com menção honrosa no Concurso de Poesia e Narrativa do Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná (CEFET-PR), em 1990. Com o conto "Eutanásia", conquistou a 3ª colocação no Concurso de Contos Paulo Leminski, da Universidade Estadual do Oeste (UNIOESTE), 1993. Edita o blogue presentedefuturo.

 

 

 

 

 

 

10 poemas

érica bombardi

 

 

feliz idade

 

 

A nuvem dragão abocanha a nuvem coelho.

O cachorro pequeno e branco desce a rua em disparada.

As libélulas dão rasantes em poças.

Lá no céu surge um arco de sete cores.

Por segundos, folhas secas giram no ar animadas pelo redemoinho.

As plantas balançam suas folhas verdes dizendo oi.

A borboleta cara de coruja pousa, voa, pousa, assombra.

Olha,

Olha em volta e vê.

Quem faz isso é você.

Olha,

Olha em volta e vê.

Beleza e alegria.

Se precisar,

eu lhe empresto meus olhos de menina.

 

 

 

fera

 

 

e me atropela

e não para

e não para

nem se desculpa

nem olha pra trás

segue corredia

para saltar

e cair de pé

no chão de terra

tapete de flores rosas

da paineira

 

não tem casa

nem coleira

 

não se engane se

deixa que lhe afague

 

fera assim

com dentes e garras

não tem dono

tem leveza

graça

liberdade e alma

 

incomoda

olhar amarelo de desvario

e no segundo outro

com olhar doce

a me oferecer o pelo macio

 

pelo macio

 

concede a mim essa grande honra

de afundar minha mão domesticada

em sua plumagem de esfinge alada

 

 

 

irregular

 

 

Não seja, menina, o medo

Que se molda a seus pés

 

Não se firme

Em areia solta

Pois irá afundar

 

Não se ajuste a um tempo

Não se deixe conjugar.

Seja do verbo

O irregular.

 

 

 

há poesia na vida

 

 

Há poesia na vida,

Quero crer.

Há poesia na vida,

Ei de ver.

 

E de tanto querer vê-la,

Descubro-a nascer

De uma crisálida amarela,

No umbral de minha janela.

 

E depois de tê-la visto assim desnuda,

Voando em asas brilhantes pela tarde,

Amanheço com ares

Que sopram velas

A mares a serem navegados

Sem pressa.

Desbravadamente

Sem pressa.

 

 

 

liberdade fêmea selvagem

 

 

Apesar do medo

e da soma de minhas agonias,

apesar das angústias

e até de minhas epifanias,

além, muito aquém, das culpas,

eu te chamo.

 

Liberdade,

que eu chamo todos os dias,

cansada de esperar,

passei a lhe buscar

e descobri por que não me atendia:

você está em amarras.

Cabe, então, a mim achá-la

e devorar suas correntes

com a força de meus dentes.

 

Uma vez soltas,

você e eu, Liberdade fêmea selvagem,

encontraremos a porta secreta

e, lá fora, a luz que quase nos cega

não nos fará recuar.

De mãos dadas, eu e você,

encheremos nossos olhos de alma.

E será ela que fará o tambor soar

para lembrar a nosso coração

que a coragem nasce da fome de cantar.

O corpo, em sintonia, vai lembrar

de bater os pés, cavalgar,

sentir nos cabelos o vento,

cheiro de lavanda no ar,

abrir nosso caminho e caminhar.

 

 

 

de ternura a justiça

 

 

como tantas antes de mim

como tantas antes de mim

sylvias, elenas, virgínias, ofélias

tantas antes de mim

 

eu as vejo

eu as vejo

 

retalhadas

tantas antes de mim

para que daqui

repartida como estou

eu as visse

 

tantas antes de mim

para que eu fosse poupada

poupada

tantas antes de mim

para que eu fosse

enfim

repartida

retalhada

revivida

e poupada

sim

poupada

 

agradeço

irmãs suicidas

agradeço sua partida

assim repartida

entre tantas de nós

 

sinto

ressinto

pressinto

assombro

assim

meu fim

enfim

nada original

 

ouçam-me

suplico

irmãs suicidas

e sem respostas

que sei não haver

venham

caladas

sangradas

afogadas

despencadas

envenenadas

e me abracem

irmãs

e afastem

de mim

a flecha rumo ao futuro

— pois não quero ser

segurança infinita —

pois a vida é improviso

 

peguem

irmãs

retalhem com seus olhos cortantes

peguem essa viscosa tristeza

essa agonia sem porto

e as levem de mim

arrastem para o fundo

de suas águas

 

irmãs

agradeço

que me poupem

do destino

de toda mulher

 

me ajudem

então

a crescer em mim asas

a surgir em mim escamas

a me encher de patas

a insuflar em mim o desejo

de tatear a vida

em busca

em voo

em águas

em busca irmãs

de quê?

 

 

 

um dia apenas

 

 

para onde vão as aranhas que deixam de fiar?

eu me pergunto

 

gostaria de que elas, um dia, me levassem junto

e me mostrassem

o que então fazem

quando deixar de fiar

 

e me dissessem se duvidam de suas teias

e se elas se desfizerem?

o que será que pensam as aranhas que deixam de fiar?

 

se elas me levassem junto

nem precisaria ser para sempre

apenas um dia

um dia apenas

e me deixassem andar ao lado de suas oito patas e quelíceras

um dia apenas

o que fazem?

eu lhes perguntaria

e o que elas fariam?

me mostrariam

ou em um acesso de fome

me enrolariam em sua teia

e me deixariam ali

de cabeça para baixo

pendurada em algum canto

vendo pelo canto do canto algum pôr de sol

para depois me devorar?

 

o que fazem as aranhas

quando deixam de fiar?

 

será que algum dia

morno e abafado

em que em mim mesma me cozinho

elas poderiam me chamar

para as acompanhar?

 

 

 

em minha hora

 

 

Oxigênio escapa e se derrama

Por entre as pernas da vida.

 

É hora, é hora.

 

O que não me alimenta, me sufoca.

Rastejo por canal que cada vez mais se estreita.

Paredes comprimem.

Fendem meu casco.

Me espremo

E de meu oco, atravesso

meu avesso, escorrego

para lá do outro lado que cá eu estava.

 

E enfim respiro.

 

 

 

por vezes

 

 

me pergunto

assustada em meio a sonhos

de meia-noite em ponto

o que há de nascer

o que romperá a casca

desta era de desencanto

 

 

 

renascer

 

 

O que é isso de não respirar. De não dar tempo ao tempo de estar. Esse rasgo, essa ferida, essa dor que se enrola e revira na garganta e não sai, não sai, não sai.

O que é isso de olhar para longe, de querer com os dedos alcançar o horizonte. De cortar a linha e deixar o mar invadir o céu, invadir a terra, esvair o ar de dentro de mim e me completar.

 

 

Érica Bombardi (Jaú/SP). Escritora e freelancer em edição de texto. Ganhou o 1º lugar no 25° Concurso de Contos Paulo Leminski (2014) e seu poema "Asas" foi selecionado como um dos melhores no Prêmio SESC de Poesias Carlos Drummond de Andrade (2014). Publicou Além do deserto (2012), com apoio da Secretaria de Cultura de São Paulo (PROAC); Canto do Uirapuru, um dos nove finalistas do Prêmio Barco a Vapor 2015 (Escrita Fina/Zit, 2016) e Besouros, infantil, premiado no 5º Concurso Agostinho de Cultura (2015). Escreve o blogue ericabombardi.

 

 

 

©guy bourdin

 

 

 

4 poemas

eunice boreal

 

 

caixa postal

 

 

Hoje escrevo de uma forma que nunca costumo. É porque embora tenha aprendido a ler com as cartas, os meus poemas sempre foram por um outro caminho. Por falar nisso, depois que caminhei, consegui escrever mais. É sempre assim: Pra escrever, caminho. Agora, quero te dizer que naquele dia em que nos abraçamos, eu tinha andado muito e não consegui escrever uma linha. Pensei em dizer tanta coisa, mas fiquei tão emocionada, que apenas sorri. Tropecei tanto nas palavras e até chamei o bêbado do Baudelaire pra falar comigo. Não teve jeito. Você me olhou por cima, com aquela cara de quem desconfia e… Não tive jeito. Pensei comigo: "O que está acontecendo?". Talvez se você tivesse ouvido os meus batimentos, tivesse dito: "É porque você sente tanto, que não está se fazendo entender, pequenina". Dias se passaram até que comecei a entender. Na verdade, eu queria apenas te olhar nos olhos. Quando tudo pareceu grandioso e extraordinário, eu só queria te olhar nos olhos. Enquanto eles nos falavam sobre as perdas e ganhos, eu só queria te olhar nos olhos. Quando ouvi você falar sobre a poesia e o big bang, eu só queria te olhar nos olhos. Mas, ainda que eu agradeça porque o cavaleiro esteja sempre do teu lado e te proteja, o fato é que fiquei muito consternada com tanta armadura. Depois, esqueci de tudo. Esqueci até mesmo daquele poema que eu tinha te escrito. Um poema pensado, mas repleto de afago. Um poema que sempre acredita nas relações que estão além das agressões e dos elogios. Um poema que se faz rio. Um poema pra quem sabe renascer de um mergulho. O que salvou tudo foi o abraço. Pois foi quando percebi que a armadura era somente imaginaria. Naquele abraço nada nunca existiu… Nem o big bang, nem o homem, nem o macaco. Tudo então se mostrou como uma célula que se celebrava. Naquele abraço todos os séculos se perdoaram em segundos. Naquele abraço, eu te amei por milênios. Depois de tudo, queria te dizer que, naquele dia, tudo tava tão difícil: O mundo cada vez por um fio e eu aqui, me segurando neste rabisco. Naquele dia, eu tinha caminhado a vida inteira só pra te ouvir falar.

 

 

 

elucubrações

 

 

Prometo apenas ser

Desenvoltura do laço.

Quando não, silencio,

Já não grito. Escuto

Labirintos que me vivem.

 

Vem! Se aceitas o meu lado secreto

Que nem sempre de encanto se mostra.

Vem! Tu, que sabes da Medusa,

Dos tempos, do grito...

Mas, alto, escutas o amor.

 

 

 

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Deixa que eu te ame

Devagar

Por favor

Não se aproxime demais

Dessa tempestade

Quero que conheças

Outras

Partes

Que ainda

Não te mostrei

Deixa que eu te ame

Somente

Não se aproxime demais

Ao meio-dia

As sombras sempre mudam de lugar.

 

 

 

elementar

 

 

A pele não era seca

Seu rosto não era rubro

Antes o fogo

Fonte de quem caça

Depois a água

Paixão de quem vive

Mas era a terra

Que era seca

E cada palavra pedra

Vinha de qualquer palavra fome

Que dizia que pouca palavra se era

Para quem planta palavra no nome

Palavra de homem

Daquele que também nasce fêmea

E vê sem qualquer cosmético

Que a fé é a beleza da pena

Que se paga a cada dia que se apaga

Mas que se refaz em viva oferenda.

 

É palavra sem comício

Daquela terra sem vento

Da lua grande

Do sol imenso

Que secava o sussurro

Que ecoa na lembrança

De quem já teve um dia

Na estrada que nunca se esvai.

 

 

 

aquilo que escorre

 

 

Não cabe o ser lírico

Não cabe mais o amor

Esse agora transborda

E o poema modesto

Reconhece isso

E se inquieta

Com o que há

De mais preciso.

 

É que o lance da fome

O lance do homem

A história que lança

O lince do insone

Derreteu esses sentidos.

 

 

Eunice Boreal é Poeta. Pratica a Arte Multimídia, pesquisa Filosofia e escreve sobre Estética e Crítica de Arte. Desde 2005, lança poemas dentro das Artes Visuais, do Cinema e da Música. Em 2007, começou a publicar no blogue Partícula. Desde então, participou de diversas revistas do Brasil, de Portugal e promoveu eventos de Poesia. Em 2012, estreou o Sarau Cinético e lançou filmes de poesia. Em 2014, fez parte da Mostra "VideoPoéticas", que aconteceu no Centro Cultural São Paulo. Atualmente, realiza o projeto Lendo Poesia.

 

 

 

 

 

 

5 minicontos

tere tavares

 

 

Do que o circulo ouve

 

 

Elbiah não deixa nunca de finalizar a frase antes que o sono chegue. Na sincronia do mar, sua alma navega como uma canoa subtraída que, talvez, pouse numa praia inóspita e resgate uma aurora a descer com sonhos e impaciências no compasso em que dançam as ondas. Como se esperasse acostumada à ausência, Elbiah agarra-se ao sargaço que escurece a orla, suporta maresias e ventos como um carinho gestado, impregnando a pele das pedras. No engodo de suspender-se, deixa-se ficar com o fervor dos veleiros esquecidos, chamados uma mulher de sorte ou desejos ou cavalos de ébano: "não me furtei de ser-te o sonho infuso nem de sonhar-te. Chegarei a tempo de roçar as chuvas e aclarar-me nos teus gestos".

 

 

 

Bradha

 

 

Era linda como o canto dos pássaros refletido nos rios. Deliciava-se no calor das tardes em que lhe coube a doçura de um invólucro sem imperfeições. Era mais que o silvo sedento de um ser conflituoso, como naquele dia em que ousou confiar num sentido esquerdo, terna como os anjos que, displicentemente, lhe sopravam segredos que lhe escorriam do rosto feito um poema recém-nascido. Ela não se pertencia. Não tocava a realidade com o porquê buscado, e o buscado porquê de haver chorado um mar sendo apenas uma gota agudizada.

 

E ali deitar outra impossibilidade, outra tolice impensada. "Superar, menina. Superar. Que a vida é dos saberes e não". Ela não lavou os cabelos. Protegeu os ouvidos com o improviso — o ar frio tem lá seus caprichos, o frio artificial é ruim como tudo o que é artificial. Por vezes, o conforto gera o seu oposto. Há que saber do inconsciente das poses e das posses. A natureza não aceita interferências ou excessos sem cobrar a conta. Inércia foi tudo o que lhe restou naquele não dia. Era uma mulher de sorte. Afinal, delgada é a linha entro o acerto e o tropeço.

 

 

 

Há na lista

 

 

Alguém, por ignorância, sugere que eu encontre respostas no que executo ou deixo cair no solo como trabalho. Uma obra nunca dirá algo de seu autor. Não estou atrás de respostas. Acho. Minha culpa? Não sei se tenho alguma. Talvez minha culpa seja a ausência de culpa. Sou leiga, não pretendo analisar nada. Não sou feita de convicções — há tempo desamarrei os sapatos. Não há desculpas nesses parágrafos tão gastos e sem gosto. Penalizo-me dos que me atormentaram — a culpa, no caso, é deles, como é deles a fome de perdão. Coisa outra que não há-de sufocar-se na luz.

 

 

 

Pietá

 

 

Uma lacuna misteriosa captura a fome vagante e nada colhe senão a falta de escolha. A urdidura cujo ponto foi antes e também nunca: "sinto certa pena e uma pena certa. O horror da pedra é ser pedra. Saber a pó. Sem cor. Lembrar-se da última vez que foi liquidamente saciada".

 

 

 

Mutismo

 

 

Essa terra possui excessos de aridez que duram séculos. Um velório sob o sol ardente indica uma placenta no pino de uma árvore seca. Terras que nunca sabem dos invernos e das vegetações.

 

Muitas curvas depois, ele avista os canaviais e os cortadores que usam um uniforme escurecido pela queima inclemente, ateada à cana e à cana atada. Fuligem e fumaça — o ar irrespirável. Passa pela usina, o cheiro nauseante do que era transformado em combustível ou açúcar. Ele chega a São Miguel dos Milagres (somente malogros). Enormes caminhões transportadores de cana-gente desfilam à beira do caminho, dos dois lados dele, o são e o não; o dono das terras, os detentores da miséria e da indigência, aparentemente passivas e apavorantes. Ninguém se importa em melhorar de vida, ele não sabe se pelo longuíssimo tempo de submissão ou por gostar da 'proteção' de um Pai inumano que, por pouco que lhes dê, dá-lhes a sobrevivência, talvez a proteção ilusória para um infortúnio ainda maior — o de se acomodar à miserabilidade — todos pareciam gratos e felizes, comendo suas carnes assadas nas calçadas a menos de meio metro da estrada, ouvindo músicas pouco edificantes, dançando naquele ritmo e naquele rito sem grito e sem fim — um cordel de imensa tristeza; o desgarro em que aquelas gentes estavam [ele esperava que não para sempre] mergulhadas. Terras cuja geografia de enganos e derrotas jamais é palavra.

 

 

Tere Tavares (Cascavel/PR). Escritora e artista plástica, publicou os livros A Licitude dos Olhos (contos, Penalux, 2016), Vozes & Recortes (contos, Penalux, 2015), A Linguagem dos Pássaros (poesia, Patuá, 2014), Entre as Águas (prosa, 2011), Meus Outros (poesia e prosa, 2007) e Flor Essência (poemas, 2004). Participa de várias antologias e tem poemas/textos publicados em diversas revistas e jornais literários. É colaboradora do blogue Dardo. Participa do portal lusófono litero-artístico EscrtArtes. Integra a Academia Cascavelense de Letras, onde ocupa a cadeira de número 26. Edita o blogue M-eus Outros.

 

 

 

 

 

 

» Imagens

 

 

Guy Bourdin (1928-1991) nasceu em Paris. Pintor durante toda a sua vida e fotógrafo autodidata. Expôs suas primeiras fotografias na Galeria 29, em 1952. Hoje, o trabalho de Bourdin é exibido nos mais prestigiados museus, como o Victoria & Albert Museum, The Jeu de Paume, o Museu Nacional de Arte da China, entre outros. Suas obras são parte da coleção de muitas instituições de prestígio, como o MoMA, em Nova York, o Museu Getty, em Los Angeles e SFMOMA em San Francisco. Site oficial: www.guybourdin.net.

 

 
 
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