edição 10 | setembro de 2006
morte

 

dois poemas
romina conti

*

 

A morte é um e-mail anexado

Com um vírus incurável

E silencioso

 

A morte é um anexo

Uma dor que vem do plexo

O início do nexo

 

Na mensagem vem escrito

Não tenha cuidado

E leia com atenção

 

Pode abrir

Que não tem vírus não

 

E você se abre tanto

Que dá um tiro em si mesmo

 

 

 

*

 

PERIPATÉTICO (AS VELINHAS APAGADAS EM  MAIS UM ANIVERSÁRIO)

OU AINDA CALMARIA NO MAR

 

Não ando

Escrevendo nada

Apenas ando

 

Pulando

Ganguru

Sapo

 

Pulsando

Coração

Quasar

 

Paro

Para não pensar

Em nada

 

Estático

Feito o puma

Sem vento

Na pluma

Nas velas

O sopro

Da morte

 

 

 

 

 

sodoma
silvana guimarães

Corria. O pensamento sem fôlego tentava registrar todos os seus abandonos. Corria. O que era mais desespero deixar para longe: B., um pé de figo, lua cadente, vestido carmim, B., uma esquina, uma escada — corria — B., um terço de caroços de azeitona, anel de pedra falsa, colônia barata, xícara sem asa, algumas roupas de baixo, B., três ou quatro retratos — corria — discos, livros, assombros, B., avencas ao vento, musgos, um jardim, B., uma janela. Corria ao lado de A. Pensava em B. Aquelas tardes de cores lentas sussurros incendiando o silêncio risadas lambuzadas a sua língua a minha língua nunca mais as suas mãos. Onde a vertigem? Corria. Relâmpagos matam mais do que vulcões, furacões e terremotos. Corria com A. Correria com A. pelo resto da vida. Qual vida qual vida qual vida qual? Para sempre, tão iguais como o são uma saracura e um ramo de alecrim. Corria. Os dias monótonos medíocres — suava — os discursos insossos as noites inapetentes. Entre a sombra e a sombra, para sempre. Qual vida? Qual? Voava. Num repente, a valentia, última chance: olhou para trás.

 

Agora estátua de sal. E a sede.

 

 

  

21 horas e 30 minutos
tereza yamashita

Mãe, fala "boa noite, Grace".

Boa noite, Grace.

Boa noite.

Sempre que sinto medo minha mãe me recita uma poesia.

Hoje estou com muito medo. Acabo de perder um amigo.

Estamos no hospital, estou com leucemia. Aqui todos têm câncer.

Minha mãe disse que viemos só para uma consulta de rotina, coisa boba, e acabei sendo internada. Meu nariz estava sangrando.

Tenho nove anos e um irmão de cinco. Ele é muito traquina. Hoje ele pegou o triciclo e percorreu toda a ala pediátrica. Atropelou enfermeiros, pacientes e arrancou olhares curiosos de todos.

Meninos sempre são mais levados que as meninas, eu acho.

A minha médica é superlegal e carinhosa. Ela tem uma pulseira linda, com um coração e  muitos pingentes, ela diz que ganhou de um velho amigo. Acho que foi do seu ex-marido, ela estava triste.

Estou sentindo muitos calafrios e estou chamando o Hugo a toda  hora. As crianças dizem assim, aqui, quando vomitam muito, é divertida a expressão. É a quimioterapia. Vou ficar careca. Eu sei onde comprar uma peruca.

A doutora diz que sou muito corajosa.

Minha mãe foi levar o meu irmão pra ficar alguns dias com a minha tia, em outra cidade, ele está muito gripado.

Ela sempre se despede de mim com um selinho. Te amo mãe!

Meu nariz está sangrando, chamei o Hugo outra vez, e outra, e outra.

Uma hora e meia de choques e mais choques. O meu coração parou, a médica inconformada foi obrigada a marcar o horário do meu óbito.

Mãe, você recita lindamente as poesias, mesmo de longe, escutei sua voz e o medo passou.

Mãe, fala "Boa noite, Grace".

Boa noite, Grace.

Boa noite.

 

 

 

procissão do filho preso 
verônica couto

"Haja D...", ia dizendo, não disse, inconclusiva, vaga, interrompida pelo olhar dela. Uma fitou a outra, tempo sem fim, com olhos de repente chegados de longe, de outras e outras e outras. Como o encontro dos rasos d'águas de uma tal Salwa Najaab, da Palestina, com outra tal, a israelense Robi Damelin, as águas rolando na escadaria do Palazzo Priori, em Perúgia, onde alguém as reuniu, e aqui ainda represadas e contidas, por enquanto, no cemitério da Consolação. Arrastadas essas duas, sem saber por que, na corrente sem fronteiras, por idênticas pupilas, cristalinas, escondidas, fechadas, de cem indonésias contritas, mãos postas, em dia de eleição. "Haja, haja...". Ou sacudidas pelos ventos dos lenços lavados brancos da praça. Marianíssimo olho nu desfraldado, sombração vaporosa e alva sobre nós. Flageladas nas ruínas de canaã, sertões, calores d'áfrica, estepes, contrações. 

 

Que espécie é essa? A espécie de desiguais espécies de olhos de mulheres, capazes desse esbarrão de dor, quando acontece de se verem. Ou de se interromperem e de se esbarrarem, como agora. Barragens. Porque uma ia dizendo "haja..." e parou, que viu a outra. E adivinhou, ou já sabia, pelo andar, pela pele, pelo linho da saia, pela indefinível precisão dos gestos, pelas fotos que saíram no jornal, por um não sei o quê comunicado à alma, por exagero dramático, já sabia que aquela era a outra mãe, da vítima. A mãe do menino, que dor dizer, do menino que o seu menino, que dor, que dor, que o seu menino, tem de dizer, que o seu menino matou. 

 

Podia ser mesmo a sua patroa, bem feita de corpo e de palavras, borboleta de mil e uma gerações de casulos de seda. Era melhor que as outras. De todas, a mais generosa. Dava feijão, arroz, óleo, tecidos finos, ouro, incenso e mirra, tesouros usados, em sacolas sóbrias de papelão, que a deixavam curvada ao sair, porta dos fundos, sob o peso de tantos dons e presentes. Vergonha que a vissem e pensassem sei lá. Pior coisa, quando as crianças perguntavam, que é isso? Vergonha, vergonha, vergonha. Ou quando a menor dizia, de brincadeira, sai por aqui, apontando a porta da frente. Nem morta. Elevador social, porta social, hall social, entrada social. Nem morta. 

 

Vai ver essa aí, olhando agora nesse estupor do cemitério, também tem uma que nem ela, muitos anos na casa. Muita chance da empregada dela também ser mãe de filho homem, menino crescido à deriva do não, do sem, do nada. E que um dia, num lance de dados, num ponto cruz mal cosido, desfia, desanda, vai lá e mata. Por que mata? Porque mata, porque as pessoas se matam. Nem o filho Dele dessa sina escapou. Que dirá o filho dessa, que até agora vingou, mas pode acontecer de matar um outro, filho doutra patroa, doutra mãe, doutro filho, a mesma dor. Lá pra cima, deve ter bem mais de dez casos desses. E, de perto, para quem quer ver, a maioria não mata, a maioria só morre. 

 

Isso ela pensava, pouco depois do quando dizia "haja..." e parou. Naquele olho a olho da Consolação, impossível medir se gritava mais o que era desigual, o que era semelhante. Nem supor onde a maior tragédia, se no igual, ou no diferente. 

 

Veio aqui fazer o quê? Veio pedir pelo menino preso, pelo menino abatido, pelo menino estraçalhado nos dentões do mundo, pedir pelo réu, por nossa senhora, por todos os santos, todas as almas benditas. O que terá dito aquela, coroada das sete dores, quando soube que o Filho ia morrer? Quando ouviu, gelada, a profecia de Simeão: "eis aqui posto este Menino...e uma espada transpassará tua alma". 

 

Veio pedir, não pediu. Olho com olho, mãe do filho morto, mãe do filho que matou, reconheceram-se, adivinharam-se. As duas querendo ser filhas de novo, rezando juntas, de longe, em silêncio, num desejo único e brutal, um desejo desesperado — que lhes trouxessem, que lhes dessem, de qualquer jeito, de qualquer tamanho, a qualquer custo, que houvesse, que existisse, que lhes dessem de novo um deus.

 

 

.

 

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