edição 11 | outubro de 2006
lugar

 

duplo
romina conti

carlos drummond de andrade

 

Muitas pernas pernas esquisitas pernas de elefantes pernas de lince. Dores na perna na perna de elefante na tromba de  um cordeiro. Muitas faces na face dela. Muitos beijos no beijo que dei e tropecei nas próprias pernas. Mal caí e  me quebrei. Mal parti e me alonguei como o vento que sacode a enseada e os galhos verdes das árvores que vejo do meu quarto parecem tremer de frio. Eu não sei mais muita coisa e sobre o que falar: perdi as pernas e ouço versos deste lugar sem pernas. Onde está o meu corpo morto? Eu diria que este silêncio me confunde nesta tarde sem binóculos. Não posso ouvir o que digo. Não consigo mais levar minhas pernas pra onde quer que eu vá só levo tentáculos enfurecidos e as cascavéis com seus chocalhos perguntam-me onde estamos indo com tanta velocidade. Pernas pra que te quero. Não consigo entrar. Não consigo sair. Me deixe ficar. Parado. Imóvel. Morrível. Aqui onde ninguém possa tropeçar nas minhas pernas.

 

 

 

ambigüidades nada mais

 

A palavra exata para dizer guerra é guerra.

Também bomba, dinamite, pólvora.

Por que então um subterfúgio agora,

que me leve a arranhar a dúvida

de que vivemos dias de guerra.

Por mais que queira falar daquela baleia

dentro de uma lata de coca-cola,

arrotando ondas pelo seu chafariz natural.

 

Por mais que sonhe com os contornos

de todo o meu esforço no quadro negro

e suas molduras que se fazem de fórmulas

e esquemas literários de rimas e escolhas

dicionaristicamente narcísicas, que nada

tem haver com os falos que derrubaram

a virilidade americana e a sua impotência.

 

E a poesia é mais do que quem geometriza

o melhor sentimento. Ou quem carboniza

com bisturis elétricos e pinças as sobrancelhas

e os retoques de um artigo definido que está

num lugar onde não deveria estar.

 

Poema é star. Poesia é estar.

Ë também a iguana e o camaleão

que são uma puta prova de que o Sol

é a Lua de noite quando tudo apaga o vento

e de manhã só podemos

ouvir as sombras das sobras do lixo

indo para uns lugares onde catadores

de esperança caminharão sobre cacos

e exibirão o sorriso quando encontrarem

o resto do resto do existir que são.

 

Poderia aqui camuflar com algum ósculo

bem bonito: como o beijo que James Dean

nunca deu em Marilyn Monroe. Como

quando São Marcelo diz que escolheu Cristo

e a sua mulher o acompanhou. Beleza humana!

 

Poderia camuflar de sentimento o meu aparato

pulmonar. Poderia deixar de sonhar.

Poderia poder o que me colocaria em xeque?

Mas cada nova rosa que nascerá neste poema

virá de uma lágrima de alguém que quer contar

um segredo tão sincero que pode resolver

o problema do tanque austero que penetra

nos olhos do cemitério ressuscitando deuses.

Por quem a humanidade briga.

 

E dizem que eu reclamo. Como não reclamar?

Por que cada poeta se acha o melhor que há?

Por que o que é mais parecido com você

é quem irá lhe detonar? Às vezes ou sempre

prefiro me calar um pouco para ouvir

a desconfiança dos galhos verdes

que quando balançam vão juntando papagaios.

Não balançam com a brisa e sim com a briga.

Que tristeza para as crianças lá embaixo!

Puxando a linha que deram a existência.

 

Quanta exuberância perdida

dentro de uma flor que viverá numa redoma.

E de que importa o idioma?

Quem se esconde por detrás de um diploma?

Quem pode me ensinar o que já sei?

 

Mas tudo isto não é poema

Eu não posso falar de mim sob pena

de estar sendo auto-referente.

Falar de meu tempo é abominar a metáfora.

Escrever poemas concretos com amor

é cuspir no vento.

Então o que querem que eu quero?

Ser sincero? Ser o oposto de tudo

Que venero?

 

A poesia é um verão com muitas chuvas

E cada chuva tem uma cor.

E cada cor tem um equilíbrio que desequilibra

quem eu sou neste instante.

 

É um mar arfante que poderia se chamar de imã

e que suga para dentro tudo que não pode ser

mas tem vontade e força de se suicidar

depois de ter entendido que nunca

acharemos um outro lugar melhor do que o poema

para dizer o que o verso deve constatar.

 

Como agradar ao Bruno Tolentino e ao Régis Bonviccino?

Se não é normal querer agradar que me digam.

Ou beijem as duas faces que estão ocultas atrás

da minha grande barba florestalmente

arborizada para sentir as carícias

dos dedos mais cautelosos em cardá-las

que são os meus.

 

Como agradar?

Eu fumo cigarros fedorentos e baratos.

Não me dão uma onda em que eu possa criar

uma metáfora nova para o Antônio Carlos?

 

Onde moro? Onde mora quem me mora.

Como desagradar a todos?

Como ser o centro do fogo?

Como estar nos vinte mais e não estar nos cem mais?

 

Acho que devo calar e ser o que aquilo mesmo é.

Sempre dizem. Deve lapidar. Deve escolher

a palavra exata para dizer o que quer dizer.

 

Então tudo que me dizem faz parte da grande

estranheza que provoco nos que nada têm a dizer.

Por que quem mais que eu pode saber o que e como quero dizer?

Vá para um lugar bem jovem e bacana.

Se libere num fim de semana e pare de futucar

amplificadores com baionetas.

Pare de me aconselhar pois não quero levar-lhe

a nenhum lugar que não queira ir.

Vamos dar um passeio pelo outro lado.

E se nossas mãos estiverem enlaçadas por um novo sonho,

de que importa?

Por que me impedem que sonhem com labaredas

surgindo da boca da estátua da liberdade?

Ou me ver num microscópio.

Ou num astrolábio. Ou num aerograma pedindo paz.

Vamos viajar num aeroplano.

Que não haja nenhum plano para o vôo.

E que durante o vôo fiquemos cegos e inebriados

com tudo o que não podemos ver e vimos.

As palavras falarão por si.

Os elefantes não perderão tão fácil seu marfim.

E cada concha que escutarmos desvendará outros oceanos.

 

Outros planos. Outros enganos.

 

Quero me enganar no delírio que me dopa.

No plágio que me escapa.

Na mente que me decapta.

Eu quero parar de falar de mim e de você e de tudo que me importa

mas não consigo.

 

Poesia não é confissão.

Poesia não é contramão.

Poesia não é poema.

O que é poema e o que é poesia então?

 

Poema é uma algema que a poesia coloca na mão?

 

Enquanto escrevo o que me deforma e o que será motivo de galhofa

e o que mais tarde virará farofa.

 

Poesia é farofa.

Nesta minha farofa

tanques estão voando com asas de pterodátilo

mergulhando feito pelicanos à procura da caça

e voando sobre o desequilíbrio químico

de alguma dopamina que me faltou neste momento

onde desato o nó górdio do futuro

e aponto minhas pistolas de sexo

para um paradigma que não seja sintagma também

e para uma sintaxe que exclua

o anjo sonolento que caminha no parapeito da discórdia

provocando um caos que não mais choca

nuvens de pororoca

e tudo mais que agora me faz lembrar todos aqueles

que deram o sangue azul de suas vidas pela poesia

e não pensaram em agradar tanto aos outros quanto a si próprios.

 

Dê-me uma razão para amar.

Para aprender a dizer tudo como você quer.

Dê-me uma ambigüidade para sonhar!

 

Todas as poltronas estão vazias.

O filme da minha vida vai passar.

E só eu vi tudo que você nunca verá.

Só o poema deixou-me lúcido para não me misturar

na paçoca desta guerra boba.

 

Poeta é quem quer ser poeta. Poesia é quem quer

guerrear com plumas

abanar as manhãs e tardes noturnas e as noites diurnas

 

e eleger pelas urnas

e não por si quem é poeta e quem não é.

Poeta é nome de praça.

Não deve ser nome de rua de atropelar.

E nem de aeroporto ou edifício que um fanático pode explodir.

 

Poeta é quem pedir. É quem mendigar

uma palavra amiga que nunca virá.

A cura.

Pois

se deus existir de que adiantará ter sido poeta.

E se Deus não existir, você não saberá

se poeta ou poetastro foi.

 

Portanto, vamos viver entre os astros.

E explodir em mil sóis.

Fazer de cada um uma noz.

 

E que lá dentro de cada planeta que somos nós

esteja o que somos e aquela célula de sonho e liberdade

que não pode inibir

a poesia de metamorfose ser.

 

Barricada quando guerra.

Barrigada quando jogo.

Tudo faz parte do mesmo do que digo

e se não prossigo

é por que a minha bunda está cansada

e minha perna formigando

e a barriga pede almoço.

 

Foi longa a invernada

e neva na cadeira de metal

e há notas no petisco em cima da cauda do piano de calda

e só quero saber quem eu sou nesta viagem

no guardanapo de papel

ao som do samba de um avião que jogue flores coloridas

sobre as dores reprimidas.

Um dia tudo volta e a guerra acaba e as perguntas continuam ou mudam?

Serão os chineses que produzem os paraguaios tênis bamba?

((Sim. Sou marginal de boutique!

E quero ter certeza de que morrerei

na bica de um avelós

e com uma sede rimbauldiana estranha a ofuscar-me a entranha.))

 

 

 

 

  

lugar comum ou um lugar ao sol
tereza yamashita

Ratos subindo pelas grades das janelas, formigas tentando se apoiar em qualquer objeto flutuante, cachorros uivando pelos muros.

Crianças sendo socorridas por adultos. Ingenuamente tentam brincar com a água. Água barrenta, fétida  e gelada.

Mulheres histéricas.

Homens se embriagando para se tornarem super-heróis.

Objetos flutuando.

Objetos antes tão pesados e agora parecem de isopor. Geladeiras, máquinas, televisões, móveis e até mesmo corpos humanos.

Dos bueiros e esgotos. Devagar vai subindo. Sem que você perceba, já está dentro de sua casa.

Pegos de surpresa. Geralmente chega de mansinho, no meio da madrugada, na escuridão.

Verão. Calor insuportável. Todos dormem seminus. Chuva torrencial.

Acordam e o pesadelo torna-se real. Primeiramente molha os seus pés, depois as pernas, o corpo, enfim ela atinge a sua alma.

Os mais deseperados ficam atônitos e não conseguem sair do lugar. Os olhos deles se enchem de lágrimas e sem perceber desistem de tudo. Mas alguém lhes dá uma bofetada na cara e o faz acordar.

Cada família tenta salvar o que é possível. Objetos queridos, documentos, coisas de valor. Tentam se manter vivos, respirando em algum lugar, em cima de muros, gurada-roupas, pendurados em postes. São todos naufragos dentro de sua própria casa.

Pai, mãe e filhos. Em seus olhos todas as esperanças afogadas. Ilhados, vêem todo o seu patrimônio, suas conquistas, sua vida… flutuando. Um monte de merda, sem destino, apenas flutuando.

Alguns conseguem sair deste mar dos infernos, outros continuam em seus postos, observando atentamente a sua desgraça.

A chuva ainda continua a cair, os pingos formam ondas circulares na água.

Muitos objetos já estão no meio da rua. A criança chora pela boneca que flutua entre as bugigangas. O pai tenta alcançá-la com um pedaço de pau, mas a boneca cada vez se distancia mais. A mãe diz que talvez amanhã a encontrem entre o lamaçal.

Milímetro por milímetro a água ainda sobe, devagar e insolente.

Lavando e levando tudo. Desmanchando móveis, estufando colchões, trazendo milhares de doenças.

O bairro se tornou um grande mar de lodo. Vemos apenas casas submersas. alguns loucos nadando. Outros aflitos, tentando salvar seus pertences.

Bombeiros tentando levar um pouco de atenção. Bombeiros tentanto socorrer feridos. Bombeiros tentando localizar pessoas perdidas. Afetos.

O calor insuportável agora tornou-se frio congelante. Pessoas roxas de frio e totalmente molhadas. Desesperadas, não sabem mais o que sentem, apenas querem que ela se vá.

Maldita enchente.

Ela. Muitos rezam. Oram pra que o bom Deus faça parar de chover.

A madrugada avança, a água aos poucos vai baixando.

A quina de um dos móveis agora pode ser vista. Horas a fio e as quinas de cada móvel começa a aparecer.

Os olhos que até então só viam aquele mundarel de água, agora podem ver os destroços que sobraram, envoltos em um imenso lamaçal.

Algumas destas pessoas choram. Outras ficam em silêncio. Outras chutam desesperadamente seus pertences. Outras ainda conseguem dizer: "Graças a Deus, parou de chover! Estamos todos vivos".

As crianças brincam no lamaçal, atirando barro para todos os lados.

As mulheres e os homens que sobreviveram começam o mutirão da limpeza. Formam uma grande família, unidos, tentam salvar o pouco que lhes resta. Muitos ainda dividem o punhado de comida que conseguiram resgatar.

O sol aparece e começa a secar as casas, os móveis. Mas o cheiro é insuportável. Um cheiro forte de água barrenta instala-se no bairro e permanece por semanas.

O caminhão da prefeitura traz comida, sacos de dormir, os funcionários levam os destroços e lavam as ruas. Mas a marca da água nos muros não deixa ninguém esquecer. Demarca a altura da enchente — um metro e oitenta centímetros de desespero.

 

 

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