edição 12 | novembro de 2006
medo(s)

 

7 poemas
valéria tarelho

so(m)bra

   

meu corpo
projeta vultos
do que fomos:

projetos incultos,
sobras obscuras,
escombros,
passado morto...

quando te pressinto
tão íntimo,
que dentro;
tão incontido,
que transborda,
me assombro.

também sinto medo
quando percebo sua sombra
batendo à minha porta
e a atendo.

 

 

 

 

flashback

 

meus olhos
fóbicos
fazem par
com as paranóias
fotossensíveis
:
se escondem
dos flashs
de memória

 

 

 

 

day after

  

minha fuga
do brilho nos olhos
é pânico
da penumbra
que c(h)egará
tomorrow

 

 

 

 

sob o domínio de pã

 

tenho medo de avião

de táxi, ônibus, elevador

de estar a bordo, à deriva

de ser conduzida na dança

de ser levada na valsa

de tocar em uma orquestra

de morar em condomínio

dos desígnios de deus

de vaticínio, acaso, destino

de ser alvo de boato, caça, cizânia

de estar na mira; na linha de fogo

de ficar no banco; de entrar no jogo

de engarrafamento no trânsito

dos (des)mandamentos

da poesia, que me assalta de surpresa

da força da natureza

raios!

tenho fobia de estar amando

 

tenho pânico de tudo

em que não estou no comando

 

 

 

 

valium

acordo cedo:
neuras indomadas
medos mal dormidos

bocejo um verso avesso
cheio de dedos
não-me-toques
tiques

mal espreguiço
vendo a alma ao vício
:
acendo um café preto
requento o cigarro
[lembro que o poema
que ora escrevo
ainda nem foi ao banheiro]

acordo cedo
com o pé esquerdo
pisando nos meus calos

 

 

 

 

apocalíptico

pensar no fim
não me apavora,
o que me aflige
é este durante
insignificante;
é este agora oba-oba,
não o antes de nós,
nem o vazio do depois;
é este instante medonho
em que meu castanho-insônia
vela o sono
do teu azul-dormente
e a ele se rende, quando desperto.

tenho coragem para encarar o fim de perto,
mas este momento — cruz-credo —
mete medo!

 

 

 

 

pesos e [des]medidas


antes
a insônia

era o peso

sono:
desejo branco

brando relevo
no véu
da névoa
[noiva
— pudica —
do orcus
negro]

irrelevante
o grafite
cal[ma]
virgem
onde erige
a noite núpera

[núpcias
às portas
da morte]

nada mais
absurdo
que a luz
além do muro
nada mais
lúcido
que há pez
absoluto

agora
o sono
crê [criança]
em levez
na balança

só mede
o medo lúdico
de amanhecer
para o recreio

te sonho amor
no descuido
do pesadelo

 

 

 

 

no condomínio barão do rio branco
verônica couto

Toda noite, a Maria Helena ouve os gritos e estremece. Ao longe, no escuro lá de fora, começam ainda remotos, indistintos, abafados pelas janelas fechadas. Avançam, contudo, infalíveis, num crescendo, altissonantes e percussivos. São comandos, clamores, urros, às vezes uma estridência ambígua, improvável gargalhada. O coro desarticulado se eleva e chega até o segundo andar. De onde ela escuta, encolhida, as vozes cada vez mais graves, emaranhadas numa confusão de ruídos, tumultos, roncos.

 

O coro barulhento invade o espaço limpo da sala de estar. Coabitam esses gritos com os livros nas estantes, com os quadros e com a Maria Helena. Ela aumenta o volume da tevê.

 

Mais fortes são as vozes que adentram a casa, misturadas com pancadas, alvoroços e baques secos que soam tambores. Um cheiro azedo, apodrecido, indica a hora do clímax. Movimento automático, a Maria Helena olha para a porta. Reza: agora eles vêm, hoje eles vêm, vão entrar, vão entrar. Faz promessa, arrepende, quer ligar pro vizinho.

 

Não dá tempo. Com a mão no intercomunicador eletrônico, percebe sumir, lentamente, cada vez menos audíveis, os garis, os sacos, o caminhão e o lixo. Todo o lixo do rio branco.

 

 

amélia
líria porto

ficava lá disponível

limpa macia perfumada

igual blusa no cabide

 

quando ele vinha usava-a

voltava-se para a parede

dormia

partia pela manhã

 

foi visto no shopping

de roupa nova

 

 

 

Líria Porto. Professora, mineira, vive em Belo Horizonte. Inédita, tem poemas publicados no Cronópios e na Germina — Revista de Literatura e Arte.

 

 

calendário
marta z. hiraoka

Acho que demorei a descobrir Lygia Fagundes Telles empoeirada e perdida nos livros de meu pai. No dia em que as meninas saltaram do antigo armário esquecido na imensidão daquela nova casa, trazendo no rosto o fardo pesado de dias e anos, o pó que disfarçava a jovial adolescência em capa dura foi como as rugas confundindo a contagem real da idade de minha avó que observava. Tremi. Os mosquitos apareceram para atazanar a noite, contando segredos carregados de insônia e a fantasia mágica chamada coincidência se confirmou quando as cigarras uniformizadas, que até atrasaram em duas horas sua cantoria matinal para que eu acordasse num silêncio repentino de pós-chuva, deitando meus olhos crus, como os dela, nas nuances daquele dia que se abria, virgem, compondo-se ao toque de meus caprichos. Recentemente ganhei de presente uma edição que não demora a empoeirar. A cidade hoje em dia envelhece muito mais rápido e as rugas que vejo são irreconhecíveis de tão escuras.  

 

Marta Z. Hiraoka. ?

 

 

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