edição 13 | dezembro de 2006
tempo

 

interior/noite
marília kubota
 

Ainda lembro o tempo em que fui muda. Cento e dois dias sem falar um a. Todo este tempo fora de sintonia. Porquê, evoluções no ar. Supondo: pra voltar a sonhar o sonho. Quando criança o jogo, fisgar o peixe da noite anterior. Que  bonito: nadar no céu, voar  no mar. Voar no céu,  nadar no mar  corrigia a irmã caçula, rindo das inversões que minha boca, em  fagulhas, despejava. O que você diz não tem lógica avisou a Caçadora de Almas, quando perdi a minha.  Meu pai, Orlando Furioso, me levou até ela. Porque, sem alma, eu não sonhava e sem sonho não dormia.  Era fantasma assombrando a casa à noite.  No princípio o pai, a mãe e meus irmãos tiveram medo.  Quem era eu, alucinada que se entregava à noite para nada.

 

Depois que perdi a alma desaprendi a falar. Naquela casa uns berravam e outros calavam. Era dos que calavam. Não tinha importância não falar na cidade do mar. Ninguém tinha o que conversar. Só falavam crianças, cachorros e ondas do mar. Nada mais pacífico que crianças, cachorros e ondas do mar. Se houvesse um jardim falaríamos de rosas e laranjeiras. Mas só houve um jardim para o pai cortar as árvores que a mãe plantara. Mesmo na tranqüilidade o homem era alucinado. A mãe reclamava que ele cortasse as árvores e ele continuava cortando.  Por que cortar pinheiros?, ela perguntava. Ele acordava com a pulga atrás da orelha e abatia as árvores. Não havia porquê. Era homem e tinha família. Bastava.

 

Assim assumia as rédeas. Ela queria que tudo tivesse ordem. Ele jamais seria capaz de compreender que ordem era. Harmonia, limpeza, organização. A cabeça dele girava em parafuso, não entendia. A única ordem que entendia era de mando.  Criar o mundo segundo a  cabeça em parafuso. Nem que fosse preciso derrubar tudo. O touro na loja de louças.

 

Eu via, fingia não ver. Construí no peito uma armadura.  Plexo solar fechado. Anos mais tarde Dhyana, a Caçadora de Almas denunciou. Onde o sol devia entrar, escuridão e teias.

 

O pai fazia loucuras. Um dia decidiu que devia limpar a garagem jogando fora os instrumentos de trabalho de meu irmão. Por quê ? Não havia porque, decidiu. Via a mulher limpar laboriosamente a garagem e quis imita-la. Porém sua fúria decidiu que devia jogar fora a serra tico-tico, serrotes,  alicates, apetrechos úteis em mãos hábeis e inúteis para ele, que só sabia destruir.

 

Minha mãe e meu irmão "compreenderam". Orlando Furioso não tivera mãe. Dhyana disse que o destino é traçado. Furioso quem me levou até ela, quando emudeci.  Ela dava um caderno para escrever e desenhar e eu me sentia de volta à infância. Talvez nunca pudesse escrever sobre as árvores cortadas, os instrumentos de trabalho atirados no lixo.

 

Fui a única capaz de comover Furioso. Porque falar naquela família nem era importante mas a mudez durante meses era impressionante. Sem bom-dia no café da manhã porque eu não acordava. Sem boa-noite. Todos dormiam quando eu acordava. Ele que não entendia o que era organização, gostava de ordem. Controle. Não falar e dormir de dia era subversão silenciosa.  Assim me tornei sua adversária inigualável.

 

E fui eu com o estilingue frouxo quem quebrou o coração de pedra. Porque nunca estar em sintonia com os desacordos familiares, navegar em galáxia sem sonhos  me fez super-humana. Ele, cansado de trabalhar e eu nunca estar. A mãe e os irmãos com  medo que eu desaparecesse na poeira interestelar. A guerra cotidiana que adoravam me fazia sumir no buraco negro.  Comecei a ter olheiras de santa, milagreira, das que recebem romarias. Só podia ter noção de quanto grave era meu espírito pelo espanto deles. Por amor quis voltar ao cotidiano bélico mas não podia.

 

Furioso me entregou à Dhyana. Cure minha filha doutora. Cure que não agüento mais.  Dinheiro não é problema salve ela doutora salve. Eles cochicharam e ele disse a palavra proibida: arrogância. Minha doença.  O porquê queria viver fora do mundo, em constelação longínqua. Não aceitava contribuir. Arrogante. Cure ela doutora prometo mundos e fundos cure minha filhinha. Mas Dhyana também nada podia. Eu já perdida por anos viajaria e falaria línguas estranhas, conhecendo sensibilidades extraordinárias e teria a febre do sonho com desejo de nunca acordar.

 

 

 

 

 

cio  
roberta silva

Debaixo da mesa eu vigiava Thor lambendo insistente o focinho de Diana enquanto minha avó preparava o almoço para um bando de netos e afilhados que vinham passar as férias na fazenda. Os outros meninos se perdiam pelo mato logo cedo. Desde que vi pela primeira vez a cena entre os cachorros, passava os dias ali, escondido, a olhá-los. Algo hipnotizante me prendia e fazia passar as noites ansioso pelo amanhecer.

 

Dali também ouvi conversas que um garoto da minha idade jamais sonhara ouvir. Minha avó e Adelaide falavam das coisas estranhas que aconteciam pelos becos do lugarejo nas noites escuras, de como as mulheres enganavam seus maridos com caseiros, seminaristas, forasteiros. Foi dali que descobri o que acontecia com Diana. Ela estava no cio, mas era velha demais para cruzar. Thor era um cachorro bem maior e mais novo, mesmo assim ficava alucinado com seu cheiro e não saia de perto. Ela, para proteger-se ou por fraqueza, passava os dias, durante o cio, deitada, aceitando passiva seu cortejo. Ele, por amor ou com esperança de que se levantasse em algum momento, ficava ao seu lado lambendo-lhe o focinho e uivando baixo. As mulheres da cozinha zombavam dele, mas de alguma forma o respeitavam, pois não o enxotavam porta afora. À medida que os dias se passavam Diana ia ficando mais estranha. Quando Thor parecia entediado, prestes a desistir ela fazia um trejeito com a cabeça, gemia derretida, ele voltava rastejando e recomeçava seu banho de língua.

 

Naquela manhã algo cheirava diferente na cozinha, as mulheres estavam agitadas, eu estava nervoso e me coçava todo, Thor tentava rasgar a dentadas a borda de um tapete velho nos intervalos das lambidas no focinho de Diana. Ele não saiu de perto, mas ela não parava de fazer aquele trejeito com a cabeça. Minha avó falava como nunca das safadezas das mulheres da vizinhança e parecia mais abismada do que antes. Nos dias anteriores eu não havia parado para pensar no que me aconteceria se me pegassem ali debaixo, mas naquele me sentia envergonhado e dizia para mim mesmo que seria o último em que faria aquilo e que no sábado iria me confessar.

 

Estava suando bicas e não conseguia parar de me coçar, doída e prazerosamente como nunca havia feito antes. De repente olhei para Thor e ele estava estatelado, pêlos ouriçados e olhar vidrado, ele salivava. Desviei o olhar na direção de seus olhos e dei de cara com Diana, em pé. Minha avó e Adelaide também olhavam perplexas a cena, inertes, incapazes de fazer algo. Fazer o quê?

 

Thor decidiu por nós, por eles. Deu a volta por trás da cadela, e pulou fortemente em suas costas encaixando-se nela de uma só vez. Diana soltou um uivo, a princípio luxuriante, logo em seguida, aterrador. Encolheu-se, arrastou o corpo trêmulo para frente e caiu morta com as patas esticadas para cima.

 

A cena me acompanhou durante toda a vida e marquei a mudança de minhas fases quando minha visão sobre o acontecido se transformava.

 

Durante minha pré-adolescência eu achava que um homem seria capaz de matar sua amante durante o ato sexual dependendo da força que usasse e que Thor e Diana haviam sido castigados por seus desejos pecaminosos incontidos.

 

Aos vinte e cinco, quando me apaixonei por minha primeira mulher me peguei encantado pelo respeito de Thor por sua amada decadente e pela entrega suicida de Diana ao seu amor impossível.

 

Aos quarenta e sete, viúvo de meu grande amor, filhos perdidos e espalhados pelo mundo, compartilhando meu apartamento com uma quase estranha tão triste e perdida quanto eu, via Thor, Diana, minha avó, Adelaide, esposas, seminaristas, maridos traídos, filhos como peças de um jogo sem propósito de um deus-menino insensato e inconseqüente.

 

Hoje, em minha cama, cercado por meus filhos, netos, de mãos dadas com a companheira, que mesmo perdida esteve ao meu lado esses anos todos, lembro-me de Thor e Diana. Sinto-me grato por ter tido a oportunidade de presenciar aquele momento de companheirismo e entrega, de compaixão e voracidade, de inconformismo e alucinação que viveram aqueles dois amantes. Minha avó, apesar da amargura, cumpriu seu legado de matrona. Meus filhos, mesmo abandonados, sobreviveram, e mais que isso, desabrocharam em netos amorosos e humanos. Minha companheira acaricia minha mão de um jeito único que, mesmo de olhos fechados, reconheço. E eu, cego em meu egoísmo desde a morte de meu amor, finalmente vejo a luz.

 

quando, desativado tempo  
ro druhens

O meio do caminho, ainda.

Perdera a conta das curvas e das distâncias. A de partir e a de chegar. O meio do caminho era o meio de tudo. Da serra e da vida. Tanto para chegar e o mesmo tanto para voltar. Parou o carro e saltou. Nem por isso mais perto do céu. Talvez chovesse e, se chovesse, demoraria ainda mais. Um dia, havia imaginado como seria passar o tempo sem ter que contar com ele. Agora, que o tinha todo, o que fazer com ele?

E de tudo restaram três malas, e, mesmo assim, uma era pequena, de mão.

Tantos anos de uma vida postos em duas malas e meia.

Do alto da serra via os caminhos das águas. Doces e salgadas. O rio sinuoso que, por dentre o mato, buscava o infinito. E perdia-se. O sal das lágrimas apagava o mel dos sorrisos. O rio não alcançava o infinito, pois deixava de ser rio, e chegava mar ao fim de tudo.

Deixara de ser ele.

E quando?

Talvez que o meio da serra lhe facilitasse a visão de todas as perplexidades e perspectivas. Do dia em que achou a vida um enorme medo. Uma impossibilidade. Um balançar de pêndulo marcando tempo nenhum. Não fora nem viera na imperfeição do mais que perfeito. Estranho o tempo, o mais que perfeito. Tão imperfeito. Quando, condição. Quando, passado. Quando, presente. Quando, futuro.

Imperativo quando. Interativas vidas. Desativado tempo o tempo quando.

Duas malas e meia. Pouco para guardar o muito, se o pouco é tudo. Muito para guardar o pouco, quando o que importa é quanto. O laço de uma trança. A fita de uma camisola. As contas de um terço. Um terço de tantas contas, dias de folhinhas.

Tempo quando.

Se abrisse as malas, no meio da serra, no meio da vida, o vento faria o favor. Espalharia tudo na direção do mar, do rio, do caminho das pedras.

Solidão de  náufrago. Solidão de sobrevivente. Solidão de quando.

Refazer o caminho, refazer a história, reviver o quando. Abrir as malas e a ferida.

Começava a escurecer e os faróis na serra confundiam-se com as estrelas. Sua vida fora apenas um ensaio e agora, no meio do caminho, ensaiava o ir ou voltar de e para idênticos destinos. Um caminho para o nada.

Teresa dera a Pedro um corpo e Pedro ensaiara todos os contornos.

Lucrécia dera a Pedro uma alma e Pedro ensaiara todos os retornos.

Entre o rio e o mar acontecera a vida, realizara o nada.

Santa Teresa do Corpo Sem Alma.

Santa Lucrécia da Alma Sem Corpo.

Pedro de Coisa Nenhuma.

 

 

*

 

Lucrécia vivia com três irmãos na maior casa da cidade, desde que seu pai se elegera prefeito. Seu pai sonhava seus sonhos e seus irmãos lhe puxavam os cachos. No colégio das freiras, bordava toalhas de altar. Lucrécia não tinha amigos, mas a santa do oratório com quem aprendia espera e silêncio. Lucrécia tinha o mar, do lado de fora da janela. O mar de Lucrécia era sonho de liberdade.

Lucrécia vivia com seu mar e sua santa quando seu pai lhe comprou vestido novo e lhe mostrou o caminho pro baile. Na beira do mar.

 

 

Teresa vivia só em uma casa velha desde que seus pais morreram. A Negra, que sempre vivera com ela, dormia cedo e quase não falava. Com ela Teresa aprendia o silêncio e a espera. A Negra lhe fazia as tranças e os vestidos brancos. Teresa não tinha amigos, mas Teresa tinha o rio e o quintal. O quintal de Teresa era sonho de paraíso. O rio de Teresa era sonho de eternidade.

Teresa se mudara para a casa ao lado, mas Pedro nunca a vira. Nem ninguém.

À noite diziam que ela tomava banho no rio, nos fundos do quintal. Sempre nua. Sempre nua a mulher. Exposta em sangue e pelos.

Durante o dia, entreabria a porta de frente e esperava. O cheiro do sabonete, no meio da tarde, contava que a mulher esperava. Exposta aos falares dos vizinhos. Nesses falares, Pedro ouviu o nome dela.

Teresa.

Puta, com nome de santa, não vai pro céu.

E Pedro não entendia a voz da mãe, se asma ou riso. Na voz do pai, desejo. Nos sussurros da cozinha, o sangue das galinhas degoladas, falavam da vizinha, do muro, do quintal. Rio de sangue, do pescoço das galinhas.

Galinha não vai pro céu.

Teresa vivia só, com seu rio e seu quintal, quando a Negra lhe trançou os cabelos, lhe fez vestido novo e lhe mostrou o caminho pro baile. Na beira do mar.

 

 

Pedro vivia com os pais e a irmã numa casa sem quintal, ou rio. Sua mãe tinha asma, sua irmã era noiva e seu pai lhe proibia o quintal e o rio da casa vizinha. Pedro sonhava os próprios sonhos.

Pedro vivia com seus sonhos quando o pai lhe emprestou um terno, a mãe lhe emprestou um perfume e a irmã lhe mostrou passos de dança, no baile, na beira do mar.

 

Quando passar o vendaval. Se melhorar o tempo. Só se não chover.

E a voz do pai prefeito de Lucrécia, estremecia as fitas do seu vestido, mais que o vento estremecia a luz da vela frente à santa. Sentia medo, muito medo. Do pai, do vento, da santa. Medo do primeiro baile, primeira mão de homem às suas costas.

E depois o homem e para sempre o homem, pois o que Deus une não separa o homem. Mas o que une o homem? Estranho medo. Da casa escura. Da mulher morta dentro dela. Dentro dela o medo. Da mulher. Nascer mulher no tocar da mão do homem. Unir-se ao homem sem que Deus separe.

Caminhar a pé e a seda do sapato pisando a lama. Manchando o branco. O homem mancha o que Deus une e não separa.

Passou o vento, passou a chuva.

A voz perfeita do pai de Lucrécia estremecia os degraus da escada. O caminho para seu quarto. A porta. O pai no espelho. Por detrás. As mãos do pai lhe ajeitaram os cabelos. O laço do vestido. Procuraram marcas e as desfizeram. Nem Deus.

 

 

*

 

Quando Teresa e Pedro dançaram pela primeira vez, começava o primeiro temporal daquele começo de verão .Trovoadas faziam o contracanto e raios azulavam seu vestido branco. Não entenderam os nomes que se disseram. Houve mãos e olhos. Ela achou que ele era alto e muito magro. Ele achou que suas tranças eram grossas. Encostou a cabeça no peito dele e era tudo silêncio.  Quase à meia noite, a chuva parou e ela foi  embora.

Sozinha.

Escorregou na escada, caiu e perdeu o coração. Coração que ele achou e que, por tanta vida, tentou desencaixar do peito.

 

 

Quando seus pais a levaram a seu primeiro baile, ela tinha quinze anos e os pés sujos de lama e chuva. Pouco depois da meia noite, Pedro sorriu e convidou Lucrécia  para dançar. Pouco depois da meia noite, Lucrécia dançou com Pedro e sorriu. Seus pais sorriram ,imaginando netos altos com ele e louros como ela. Ela achou que ele tinha as mãos grandes. Ele achou que ela tinha  pouco cabelo. Já era quase  manhã quando, caminhando à frente de seus pais, chegaram à primeira despedida no portão.

Em silêncio de promessas. Em quase silêncio. Silencioso eco marcaria o compasso de seus passos pela rua, pela quase manhã, por toda a vida.

 

Pedro não sabia as horas. As que eram, as que passaram, as que viriam. O tempo passado/presente/futuro perdia-se em meio à neblina, ao frio, aos faróis. Só a rigidez da pedra.  Sólida, concreta, real. Há quanto tempo pedra, era agora, neste quando, a maciça eternidade se fazendo presente.

Se voltasse, mundo abaixo, chegaria pela manhã e dela sabia os rituais. Se prosseguisse, mundo acima, chegaria pela manhã, eternos rituais. Perdera a manhã do hoje. E do ontem. A vida, na manhã do amanhã, repetiria  atávicos ritos de passagem.

Quando?

Luzes amarelas mundo acima. Luzes vermelhas mundo abaixo. Luzes verdes lugar algum. Silêncio, escuridão. E todas as sombras.

Estancado quando , coreografia sobre abismos.

Desfocado tempo por faróis de todas as luzes, de todos os olhares. E gestos. Retornados gestos, estátuas em caminho de pedra.

Torres, mirantes, faróis de onde se contempla o nada. Construção de pedra. Pedro. Vazio e silêncio no meio do caminho. No meio do peito. No meio do nada.

Pedra que furava o tempo, que sangrava o quando, que não construía nada.

 

 

*

 

A mãe de Pedro enfeitou o vestido com uma orquídea e o pai de Pedro passou gumex no cabelo. A irmã  de Pedro mandou telegrama de longe, com cheiro de fralda e leite azedo.

Quando saíram para a casa do prefeito, ele levava o anel no bolso, pesando de encontro ao sexo. Passaram pela casa vizinha e o cheiro de rio e fruta madura tornou o anel mais pesado e o sexo maior, pesando de encontro ao anel.

A Negra lhe abriria a porta e Pedro  encontraria Teresa nua, lavada de água de rio, exposta em azul. Ela lhe abriria as pernas e encontraria o homem que sempre a desejara, o homem que sempre desejara, desde o baile, desde o mar. A cada noite, a cada madrugada, a cada alvorecer, sonharam-se, separados pelo muro. Passaram pela casa dela.

Uma negra lhes abriu a porta e Pedro  encontrou Lucrécia vestida de rosa, lavada em alfazema, escondida em rendas. Ele lhe abriu os braços e ela encontrou o homem que sempre temera, desde o baile à beira mar. A cada noite, a cada madrugada, a cada alvorecer tivera pesadelos com um enorme muro.

Sentaram-se solenes. Ele fez o pedido: marcaram a data.

Com direito a feriado municipal. Sem direito a sonhos.

 

 

Caminhando, em silêncio, de volta pra casa, ele sentiu que o anel lhe pesava no dedo. Que havia um peso dentro das calças. Um enorme peso no meio do peito.

Despediu-se de seus pais no portão e voltou. Outro portão entreaberto e nele deixou uma gota de sangue. Talvez do dedo que a aliança cortava. Talvez do coração que a aliança apertava. Talvez do sexo que a aliança proibia.

Entrou, contornou a casa escura e viu o quintal

E viu o rio.

Ouviu os sons da Negra, chinelos e lamentos em língua estranha, desaparecerem nos labirintos da casa.

Entrou na velha casa e  viu o quarto de Teresa. Azul. O espelho antigo e Teresa tirava folhas dos cabelos molhados de rio. Teresa era azul na luz do quarto, na luz do anoitecer no alto da serra, na luz dos faróis.

Suas mãos desenharam nos cabelos de Teresa. Nos ombros de Teresa. Nos seios de Teresa. No ventre de Teresa. No sexo de Teresa que inundava como rio, em tempo de cheia, o dedo de aliança de Pedro.

A aliança, que molhada de sangue e rio, perdeu-se por de dentro do sexo de Teresa.

O que  os deuses unem que não separe o homem.

 

 

Teresa de costas para o espelho, de frente para ele. A sombra de Teresa em todos os seus passos. Os de ida e os de retorno.

E Teresa imóvel, como as luzes da distante cidade que o nevoeiro do começo da noite proibia. Os olhos de Teresa eram faróis de iluminar neblina, traçar nortes, guias náufragos.

Foram os olhos de Teresa que o puseram em reverência diante dela, genuflexo e contrito. Os sabia dentro dele, não importasse a escuridão daquelas serras ou a neblina que, pouco a pouco, o deixava tão sozinho, bem ali, no meio do caminho.

Ajoelhou-se diante dela e segurou-lhe os tornozelos. Neles as mãos postas, como quem reza. As pernas, as coxas e os olhos de Teresa mergulhavam em suas vísceras.

Teresa de pernas abertas e Pedro posto diante do altar. Sua língua no sexo de Teresa rezava e produzia todos os milagres. Teresa repartia-se em pão. Multiplicava os peixes. Transformava água em vinho. Ressuscitava Lázaros que dançavam pela sala recompondo a carne.

Arrancou a calça. E, quando viu seu pau foder Teresa, aqueles pelos negros eram coroa de espinhos. E Pedro gritou, negou três vezes antes que o galo cantasse pois sabia, que ali, naquele Gólgota, ficaria para sempre crucificado, sem direito a terceiro dia.

Quando Pedro afrouxou o abraço, tirou a língua do céu de sua boca, voltou as mãos às suas costa, Teresa o olhou nos olhos.

Era aquele o momento, o instante exato e único para o qual ensaiara toda a vida.

Diria agora a frase que aprendera em todas as línguas. Tremeria os cílios como se bailarinos fossem. As meninas dos olhos sabiam coreografias de passistas. As narinas abriam-se e fechavam-se como foles, ou asas de beija-flores.

Teresa o olhou nos olhos e sorriu.

Sempre soubera que eles viriam. Ele  o homem, o momento, o beijo e o agora. Ela , a frase. Três palavras.

Teresa o olhou nos olhos, sorriu e ficou muda.

A língua, a física, a que precisava para falar, extirpada e sugada deslizava pela garganta dele abaixo, beijando alucinada as entranhas onde ela, que não conseguia dizer  eu te amo, já era ausência.

 

 

*

 

Lucrécia passou a noite olhando o mar e viu N. Sra. Navegando numa barquinha, com os anjinhos a remar. Talvez a Santa Virgem viesse para o seu casamento e lhe emprestasse o vestido branco e o véu azul para esconder o medo.

Pedro era pedra e sobre ele Lucrécia edificaria o altar de seus ais. Pedro era pedra e sobre ele Lucrécia escorregaria sob o peso da cruz. Pedro era Pedra e com ele Lucrécia construiria o que? Filhos e a dor de fazê-los, de tê-los, de perdê-los. Sonhos e a mesma dor. Vida e a eterna dor.

Diria sim, como sempre dissera a seu pai. Diria sim, como dissera ao atributo mais perene de N. Sra. Ao mais efêmero da mulher.

Lucrécia diria sim ao medo, ao homem, à fêmea e cristalizaria em esse, em i e em eme a impossibilidade do não.

O pai prefeito de Lucrécia abriu a porta de seu quarto e orgulhou-se de ser prefeito.

Lucrécia era linda como uma filha de papa.

Ajeitou-lhe os louros cachos sob o véu, na curva do pescoço arrepiado.

Ajeitou-lhe as pontas do laço sob os seios, de bicos duros pelo toque. Dos laços.

O corpo magro de Lucrécia, de encontro ao seu, despertava o homem, o santo pai. Lucrécia sempre dizia sim. Beijou-lhe os lábios e a língua de Lucrécia tinha gosto de sal. Mas por de baixo das saias e anáguas, o pai prefeito de Lucrécia, alcançou a aridez do Saara, na Floresta das Chuvas.

 

 

Teresa viu o envelope no chão e sentiu todos os possíveis e impossíveis sentimentos. A letra que escrevia todas as letras do seu nome, todos os números de onde ser achada. Que fizera sonetos de pobres rimas. Que copiara frases  de almanaques.

Abaixou-se. Apanhou o envelope. Não tinha selo ou remetente no verso. Acendeu a luz. Sentou pra ler, mas deitou.

Desfez as tranças. Rasgou a roupa. Abriu a boca. Arreganhou pernas e entranhas.

Ele invertera alguma coisa. Desviara o curso do rio que, de dentro dela, catarata se fazia pelos olhos. As armas do município convidavam pro casamento.

Lucrécia entrou na capela houve revoada de pombos e do teto caíram rosas.

As sobrinhas carregavam as alianças. O celebrante ofuscava em paramentos, à luz de tantas velas. Os tocheiros de alguns séculos, engalanados, uniam-se em dourados laçarotes.

E Pedro.

Durante meses desviara seus longos dedos do caminho de seus segredos, e ele ainda esperava. De pé. Com as mãos cruzadas pela altura da braguilha.

O pai sorria e a mãe chorava. Óbvias perguntas, óbvias respostas. Depois de tantos nãos, agora,  a vez do sim. E os pombos cagaram, e as rosas tinham espinhos, e em meio ao fedor de sangue e merda, viu que as sobrinhas carregavam algemas.

Em salvas de prata contrastada.

 

 

*

 

Era cedo, de manhã, bem cedo, e um cheiro doce de festa atravessava o rendado das cortinas.  Teresa sentiu o cheiro doce no travesseiro ao lado, e abriu os olhos.

No quarto todo e fora dele. Nos austeros olhares pendurados nas paredes dos corredores. No corrimão da escada e nos degraus, o cheiro doce era possibilidade de tombo e aviso de cuidado.

No seu corpo nu, a caminho da cozinha, ficaria prá sempre.

Mas a cozinha, vazia de todos os cheiros, tinha cheiro azedo de sobras. Todos os móveis cheiravam a antigos gemidos na escala de todas as dores, mortos suspiros na escala de todos os desejos, os que fizeram Teresa, mas não lhe pertenciam. As despetaladas flores do sofá cheiravam a vida, instante único de vida, ímpar e indivisível, só dela.

E o cheiro doce, de festa, atravessava frestas e fechaduras. Todos os vãos e veios, todas as tramas e texturas, todas as cores e o silêncio.

Cheiro de festa em casa vizinha.

 

 

Lucrécia saiu do banheiro, a camisola branca iluminou o quarto e Pedro estava de costas, de braços abertos. Costas grandes. Costas largas que impediam a luz da lua.

Teve medo. Eram costas e braços e homem grandes demais.

Pedro  virou-se e a viu, sem transparência ou exposição .Dourado véu, tiara de luz, renda em volta da cintura .Bordado de miçangas, dez em dez, cinco vezes, três a cada espaço.

Ajoelhou-se diante dela ,levantou-lhe a camisola e em sua boca pingou o sangue da chaga que ele não fizera.

 

 

Teresa  vestiu a camisola azul que  guardara embrulhada em papel de seda. Discreto perfume no meio dos seios e nas dobras dos joelhos. Unhas lixadas e escovados cabelos.

Lençol de linho — ilha da Madeira — onde, no branco, flores azuis tatuavam o rosto se não virados os travesseiros ao  contrário. Linho, como ela, repassado a cada manhã até o dia da troca.

A camisola azul mostrava que a vida passara, sem grandes estragos .Que o tempo passara, sem grandes perdas. Que o vento passara, sem arrancar pétala sequer.

E  que o Homem passara, sem vê-la.

Deitou. Entreabertos olhos, entreabertos lábios, entreabertos braços, entreabertas pernas. Arreganhado e faminto coração .

Coração que devorou a luz da lua fazendo sua pele toda azul como a camisola e as flores do lençol.

 

 

*

 

A cada dia da vida Teresa colava uma folha no espelho e contava o tempo. Tempo de folhinhas em todos os tons.

A cada noite da vida Teresa ia ao rio, no fundo do quintal, e trazia em suas tranças a folha com que marcaria a espera.

Esperança, em todos os tons de verde e marrom, marcavam o espelho de Teresa. E Teresa escondia em folhas as lembranças marcadas no espelho. Teresa sabia da espera e das longas viagens até o rio, no fundo do quintal.

Dias havia em que Teresa colava no espelho ramos feitos de pedacinhos de uma folha de palmeira, logo bem cedo, ao dobrar dos primeiros sinos. A Negra lhe trançava os cabelos, lhe vestia de branco e Teresa, posta em êxtase, por detrás das renda o via chegar.

Todos os aromas da casa vizinha lhe contavam de sua chegada. Cheiros doces e salgados e as janelas abertas.

E Pedro chegava.

A mãe o esperava no portão e lhe enxugava o rosto em velhos panos de pratos. O pai tomava pela mão o anjo louro, manso ao lado dele, o aliviando do peso. Mas, antes de entrar na casa Pedro levantava um pouco o queixo, girava um pouco a cabeça e os olhos de Pedro deixavam na janela de Teresa a luz de todas as estações.

 

 

Não era ficar, nem era partir. Não era o muro, nem as grades. Não era a vida, nem a vida. A vida que ficava no muro. Ferida, limite e cicatriz. As grades que partiam a vida. Chagas.

Pedro levantou o queixo e a cabeça e todas  as luzes eram escuras. Necessário se fazia o caminho ao encontro da luz.

Se em algum lugar do quando acontece o tempo, de certo haveria um tempo certo para acontecer o quando. Um instante mágico, extático, em que o homem seja pleno. Perplexidade e perspectiva. Um comum segundo, fracionado, em que a escolha por este ou aquele caminho, pelo rio ou pelo mar, pelo negro ou pela luz, possa refazer o homem no absoluto instante de si mesmo.

Ele, o homem, ponta/cabeça na direção do homem.

 

 

*

 

Quando Pedro chegasse à noite, encontraria o bilhete sob Sta. Tereza: A de Jesus, a Terezinha, e entenderia. Lucrécia abrira o coração como jamais conseguira abrir qualquer outra parte de seu corpo.

Durante todos aqueles anos olhara o mar e sonhara com liberdade. Liberdade de calar, por negros corredores, os suspiros nunca ditos nos travesseiros. De esconder, sob negros véus, a cabeleira loura nunca solta pelos travesseiros. De somar, às  intermináveis contas, o amor impossível nos travesseiros. Liberdade de ser negra sombra, descalça e muda, sem travesseiro.

E ele entenderia. Tudo o que sempre, talvez, houvesse entendido e transformado em lágrimas. Afogados travesseiros.

Lucrécia sempre tivera medo do verão e suas tempestades. Do verão e da nudez de suas tempestades que expunham os galhos secos, a vida seca nas entranhas  e no jardim. Viu quando gordas nuvens negras galopavam pra cobrir a praia. Fechou a janela e despiu-se. Cortou os cachos e as unhas. A santa lhe sorriu quando a viu, mais uma vez, vestida de noiva. O que Deus une o homem não separa.

E Lucrécia sabia de todos os venenos esmagados sob os pés de N. Sra. E a voz do pai prefeito, mais forte que os trovões, iluminava a casa  escura em relâmpagos de sim e não, em todos os buracos das paredes.

Devassada vida, devastado tempo. Refazer o quando.

Correu na chuva e a lama manchava o branco e a seda do vestido. Sem olhar o mar, sem ver o rio. E o vento que lhe arrancava o véu, lhe suspendia a saia e as anáguas.

Antes da definitiva curva, Lucrécia olhou pra trás. Vultos nos portões. Fantasmas em todas as janelas. Em cada gota de chuva. De lágrima. De sangue.

Despiu-se pro vento, pra chuva, pro verão e sua tempestade, expondo a vida seca nas entranhas.

Como um rio, em tempo de cheia, como mar de calmaria, Lucrécia cruzou o último portão.

 

 

*

 

Foi negra a voz que lhe mostrou o mar  (en)canto de língua estranha.

Teresa  pouco sabia de sua própria história, relatos de negra língua.  Negras tetas, ásperos carinhos com cheiro de temperos. Tristes cantos no trançar a vida que se traçara em velhas fotos, louças e cristais.

Teresa sabia histórias de estranhos deuses referenciada por negra e rouca voz e tristes cantos no acender da velas, preparar comidas e degolar galinhas.

Galinha não vai pro céu!

Teresa sabia das danças dos vultos, dos cantos das folhas, dos cantos da casa, dos cantos de dor. Teresa sabia dos encantados que dela sabiam e por ela velavam. Teresa sabia que tudo começa e termina no mar.

Teresa, às vezes, sonhava com o mar. Não com praias, ondas ou rochedos. Teresa sonhava profundo. E escuro. Presumidos movimentos. Presumidas sombras e coreografia sobre abismos. Teresa, às vezes, sonhava silêncio. Salgado silêncio composto pelo encontro de tantas correntes.

Teresa, às vezes, sonhava .

Lamentos de sereia, caminhos de eterno retorno. E sabia dos descaminhos e desvãos do rio. E das pedras. E das perdas. E de Pedro.

Terra é mar em maré baixa. Terra de fundo do mar, de fundo de rio, de fundo de sonho. Pó de memória.

Teresa.

Quando o portão gemeu, Teresa  ouvia no  rádio a segunda-feira e o carnaval.

A luz forte, do meio dia, pela porta arreganhada, impediu-a o ver total, mas sentiu que alguém passara por ela, uma luz e um delicado vento. Auréola e asas.

Cartas velhas, espalhadas pelo chão, voltaram para o fundo da gaveta. Louça, suja pela pia, reguardada no armário. O nome dele, que a poeira escrevera pelos anos, apagado de cima do móvel. A mancha escura, que o amor fizera no sofá, agora delicado monograma.

À noite, quando acendeu a luz da sala, viu a Negra morta.

Ainda com a fantasia de querubim.

Negra.

Por toda a noite Teresa segurou a mão do negro anjo que  gelo se fazia na poltrona. E olhou a serra. E sonhou ter asas. Se as tivesse, seus pés molhados de rio, pisariam a pedra, no alto da serra e veria o real tamanho da vida. Refaria o tempo, eternizaria o quando. Trançaria o branco com todas as cores do arco-íris. Teceria a água em toalhas de altar.

Negra, a noite. Negro, o anjo. Negras as tranças. Negro o rio. Iluminada Teresa.

Cortou as tranças, quem as trançariam? Despiu o branco, quem o bordaria? Quebrou espelhos, móveis, velas. Rasgou cortinas e lençóis. Portas e janelas, ventania e vendaval, quem se importaria?

As asas do Negro anjo lhe mostraram o caminho pro mar.

Estranha ao mundo, estranho mundo, queria horizontes largos e sem limites. A margem do rio adicionava angústia à sua angústia.

Um homem  e todos em um. Grande e único. Só um e tão apenas.

E ela múltipla e vária, ser vagabundo entre uivos de emoção e silêncio de palavra.

E toda uma vida. Ou quase.

Fora sua por tantos anos, ou nunca fora.

Teresa dobrou à direita e caminhou em direção ao mar, águas frias e verdes. Morta.

 

 

*

 

Quando Pedro mais  desejou Lucrécia negras barras de ferro os separavam.

Os sapatos dele traziam a poeira dos descaminhos, a bosta das estradas e pisavam o frio do cimento. Nas mãos dele os perfumes de outros corpos. Os pés dela, descalços de meias e sapatos, estavam limpos e pisavam o calor da terra. Nas mãos dela os perfumes de outras almas.

Por não mais que meia hora se viram, se olharam, se falaram, se tocaram, corpos e almas. Por tabela.  De través. E se disseram adeus sem promessas de depois.

Ele preso nas ladeiras, mares e esquinas do infinito mundo. Ela  livre nas celas, capela e  clausura do convento.

Lucrécia.

Lucrécia, infinita  paz, por além do infinito de todos os encontros. De rio e mar. De céu e terra. De sonho e despertar. Infinito silêncio de passos descalços nos corredores da velha casa de paredes esburacadas. De quentes lençóis vermelhos do que seria a vida. Parida em quando, fora do tempo. Morte.

Lucrécia sabia de todas as dores de N. Sra. Conceição. Aparecida. Fátima. Lurdes. A dor de cada mulher. Dor, exposta em sangue e pelos, no tentar o refazer do impossível. Lucrécia sabia de todos os venenos espalhados em seus desejos. E sabia da língua da serpente esmagada em caminho de sangue, por entre os pelos. Lucrécia sabia da dor de parir o filho. Parir a morte inútil, fora do tempo. E sabia do mundo posto em sossego, infinita paz.

Lucrécia, dona de seu tempo,  se sabia senhora de todos os quandos.

E seguiu em direção à janela, no fundo do corredor. Através das grades viu o mundo, estranho mundo.

Rio e o mar. Céu, horizonte, mar e rio, tudo lhe pertencia. Mesmo o homem alto, que caminhava em direção ao rio, de alguma maneira, lhe pertencia. Dera a ele o que tinha de emprestado e emprestara o que nunca poderia dar, pois que não lhe pertencia. Toda uma vida.  Ou quase.

Nunca mais o veria e sabia que esta era a única maneira de nunca deixar de vê-lo.

Por entre as grades estendeu os braços, e suas mãos alcançaram os trincos da janela. À medida que fechava os braços, escurecia o corredor por onde caminharia, guiada por duas luzes verdes, frias. Mortas.

 

 

*

 

Tudo era dor quando o calor do sol iluminou seu sonho. Pedro dormira sobre a pedra e só sabia do sono pelo sonho. Talvez soubesse do sonho pela vida. Atemporal é o sonho, atemporal é a vida. O refazer o tempo foge aos limites do próprio tempo que refaz o quando.

Sonhara com elas e ensopara a pedra.

Lágrimas e suor numa mistura que sussurrava vida. Nunca mais as vira e sonhava com elas a cada vez que dormisse. Perfume de flor de maçã nas estrelas da estrada. Arco íris nos faróis. E manchas azuis em todos  as nuvens.

Um dia, sonhara  que se fazia senhor do tempo e agora, que o tinha todo, era escravo. Desativara o tempo ao desativar a vida, ao desviar o curso do rio, o fluxo do mar, o reflexo nos espelhos. As folhas. Desmantelado ser.

Quando a noite deixa de ser a noite e se torna o dia? Quando o dia deixa de ser o dia e se torna a noite? Onde o rio deixa de ser o rio e se torna o mar? Onde e quando o passado se faz presente, o presente se faz futuro, o futuro se faz passado? Em que infinito e exato instante se é? Entre corpo, alma e espírito onde o homem? E como? E quando?

Desfazer o tempo, destrançar caminhos, desmarcar compassos,  destruir o todo.

Religar os pontos e retraçar o rumo.

Pedro desceu a serra, em direção ao rio.  Estranho ao mundo, estranho mundo. Mas queria limites, margens. Horizonte, indefinido entre céu e água, multiplicava sua angústia, suas angústias.

As mulheres que amara. Duas e todas em duas. Talvez  só uma e tão apenas, e ele múltiplo e vário, ser vagabundo entre uivos e silêncio, e toda uma vida. Ou quase. Ou tudo o que importara de  quase toda uma vida.  Foram suas por tantos anos, ou nunca foram.

Pedro dobrou à esquerda, em direção ao rio, e caminhou sobre as águas.

 

FIM

 

 

 

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