edição 14
| março de 2007
película cidade
Silêncio
de madrugada, chuvinha fina e luzes apagadas por todos os prédios. Do
outro lado da rua, bem de frente ao meu terceiro andar, tem uma sala
iluminada. Meio amarela. No centro, que estranho, umas linhas curvas,
massa escura, parece mesmo o Pão de Açúcar. Declives em ondas, perdendo
força, ganhando gosto, pedra tátil, feita para se
alisar. O
cotovelo arde um pouco no trilho da janela. Não volto ainda para a cama,
porque o Pão de Açúcar, num instante, faz que vai respirar. E pode ser uma
mulher. A essa hora, com chuva, de ladinho, no sofá. Que bom é ver uma
mulher. Cabeleira, peitos aprumados, desvãos, quadris. Será que ela dorme?
Pode estar bêbada. Ou tristinha, desvalida, desamparada. Busco em torno
dela alguma coisa que me faça compreender. A
luz é fraca, a vista, cansada. De uma janela à outra, muitas braçadas de
lonjura. Uma sombra grande está erguida por detrás do sofá, cai sobre a
mulher de açúcar e ainda mais esconde. É um vulto alto, vertical e, não,
não é possível. Essa cidade me persegue: se apertar um pouco os olhos, é a
cara escarrada do Cristo Redentor. A cara de fato não vejo. Só a silhueta
escura, os braços abertos, rijos. Mas
tem alguma coisa errada nesse Cristo, além da geografia. Dos braços
simétricos escorrem outras sombras largas. Credo. São corpos suspensos,
dobrados à altura da cintura, pendurados sobre os braços de pedra. Que
horror. Ninguém pode carregar alguém assim, a meio caminho do cotovelo. O
meu, mal suporta minha cabeça, apoiado nesse parapeito
duro. Que
casa esdrúxula e que mulher é essa. Já vejo coisas demais para uma janela
só. Devia parar agora. Devia. Acontece que percebo outra criatura na
penumbra geral. Mais amarela do que a luz, de contorno arredondado e
maciço, gordo. Não se vê onde começa nem acaba, mas é um cachorro.
Reparando melhor, o amarelo lisinho é de pele, então é gente. Tem um homem
ali. Um homem enrodilhado no chão, sobre o tapete, a cara enfiada em si
mesmo, aos pés do Pão de Açúcar, da mulher, do sofá, do Cristo. Adivinho
os volumes interiores, a musculatura forte. Nu. O coração acelera. Levanto
a cabeça e dou um passo atrás. Não sei por que, fiquei
nervoso. Chega.
Uma voz me interrompe o susto. Vem dormir, já-já amanhece, seu ônibus sai
às oito, quem agüenta isso. Puxo ela pela cintura. E viro seu queixo na
direção da janela insone. Olha! O quê? Olhamos juntos a sala acesa.
Esqueceram de apagar a luz, e daí? É. Vejo perfeitamente. Está tudo vazio.
Não tenho palavras. Não quero que ela pegue a minha mão, porque treme e
sua. Do lado de lá, o sofá com almofadas de pano grosso, daquelas que dão
coceira, se bobear, covil de pulgas, bem estampadinho. Nem isso, nem um
cachorro. Cabideiro cheio de panos e bolsas, colchonete pelado, jogado no
chão, a espuma saindo pelos rasgões. Vinte
e quatro vezes considerei o cenário estático, a que chegava o meu olhar
depois de atravessar as esquadrias da janela de cá, sobrevoar a rua (os
carros, o poste, as grades dos portões), furar gota a gota o ar molhado da
chuva, invadir a varanda estranha e ultrapassar os umbrais da janela de
lá, do vizinho. Vinte e quatro vezes pisquei e olhei, fazendo o mesmo
trajeto míope de um segundo. Para ver o que vi, e o que não vi. Com a cara
amassada de sono, ela me arrasta para a cama. Eu me lamento, espantado,
ela me repreende: não faça fita, menino.
hades
red roof tiles, walls and my
face Hikmet No
filme em suspenso - seqüência
de imagens; câmera que
registra o rosto de perfil
no cinema, rápido na
retina ou
em replay Quadros
que se misturam pensamentos
no escuro vozes,
o vermelho na
tela Oriente:
a música da fala Turquia os
olhos muito além de Istambul
2
poemas
as pontes de
madison Fátuos
amores persistem na rotina
fosca. Eternos amores diluem-se em
Cenas
Poemas
Sangue-açucena. (Estrelas
agregadas à
constelação invisível)
Acima da cartografia
celeste,
cada amor postergado - uma estrela.
Via-Láctea invisível que nutre Deus. Francesca! Tua
cena; minha
cena. Um éden
secreto plantado ao lado de uma
ponte...
(belgas, romanas
suspensas
ou cobertas
como tua Roseman Bridge) Bem-te-vis à flor da
pele bicando
dentro a orquídea de
fogo que se
hospeda após as horas
mornas breveternas.
Francesca!
Tua sina;
minha sina.
O infinito que cabe
Em um dia
ou dois,
três ou quatro... E a vida inteira a
beber as águas da estação do
amor. Até tornar-se pó e
diluir-se acima das águas onde imperam
pontes de leveza rústica e
bela - Velha Iwoa e suas pontes
de Madison... sonhos em preto e
branco Esta sou eu, descalça nas
enxurradas, manhãs
esperançadas. Esta sou eu,
adolescente, indo ao colégio, olhos fixos
na estrela
vespertina. Esta sou eu, lendo à luz da
lamparina na
madrugada, olhos percorrendo páginas
amarelas, passeando por poemas
barrocos na companhia de estrelas
foscas. Esta sou eu, espiando por
entre balaustras o sobrinho do professor de
francês, seus olhos verdes, sua pele
jambo, na varanda da casa da
esquina. Esta sou eu, na mesa do café
da manhã, ouvindo a pergunta diária do
pai: - teve sonhos coloridos ou
em preto e branco? Dez anos, pequenina cidade
de Peabiru. Quantas mentiras meus
olhinhos beberam no Cine
Vera? Amor passeando de lambreta
rasgando ruas de
Roma, a beleza exótica - Troy
Donahue, a professorinha
enamorada na
garupa... O amor
idealizado "Candelabro
italiano" ... o amor se apresentou a
mim: Al di
la... Del sogno piu
ambizoso, delle
cose più belle. delle
stelle del mare piu
profondo, del limiti del
mondo, della volta
infinita... Al di la della
vita.* ... Esfarrapado e
imundo dei de cara com ele,
enfim, mendigo
extraviado que implora pra ser
notado. Eis o
amor, despejado humilhado não vive em
estrelas nem mar profundo,
nem no limite do
mundo, está sempre no meio do
caminho pedra poema estirado cão sublime à
espera de um dono
franciscano que o
acolha com todas as
chagas e
enganos. *Al di la - música de Emílio
Pericoli
Bárbara Lia é professora de História e
escritora. Vive em Curitiba-PR. Publicou os livros de
poesia O sorriso de
Leonardo (Curitiba: Kafka Edições Baratas, 2004);
Noir (Curitiba:
Ed. independente, 2006) e O sal
das rosas (São Paulo, Lumme Editor, 2007).
tela
quente
"Se eu sou clichê? Devo
ser", eu disse e olhei-me no espelho. Aquele ar de Meg Ryan na sessão da
tarde não mentia. Esta sou eu, grandes olhos que suspiram carência.
Esperando a porta abrir, o telefone tocar, a correspondência nas mãos do
zelador, a virada da sorte. A cabeça gira - o close - e eu lá com aquela
cara de Regina Duarte norte-americana, esperando o momento mágico nos 120
minutos de exibição. Eu sou sim, bem clichê, sem
graça. Sou filme de amor e amizade, o cachorro e o menino, eu assisto de
meias e como pipoca na panela. Choro em todo final feliz e romântico, fico
emocionada mesmo. Nessas horas, pego o telefone e ligo para minha mãe, que
mora em Araraquara. Converso, seguro o choro e sinto saudades. No dia
seguinte, enquanto atendo telefonemas na recepção, entre bom-dia e
cafezinho, gosto de conversar sobre o filme da TV com a senhora da
limpeza. Eu gosto dos galãs também,
como o Richard Gere. Tem um rapaz no escritório que lembra um pouco ele.
Aquele jeito de olhar "de cantinho". Fico toda envergonhada quando ele
chega, olha-me assim, levanta a mão e diz: - Bom dia, Dona Lúcia. Eu
respondo, olhando para o outro lado, e ele sempre sorri. Acho que ele
percebe que fico encabulada. É o que eu dizia, sou bem
vulgar, uso meia Kendall e leio romance de banca de revistas. Gosto de
filme de amor, em que as pessoas lutam muito e acabam ficando juntas no
final. E essa história de clichê é
coisa dessa vizinha nova. Ela alugou o apartamento de frente. É uma garota
de sorriso torto que gosta de olhar a minha casa e falar da minha
decoração. Ela diz que é escritora e se acha melhor que o mundo por conta
disso. Por vezes, nos encontramos
ao entrar e sair do apartamento e ela puxa conversa, sempre se achando
muito esperta. Certo dia, disse que voltava do cinema, falou o nome do
filme, do diretor, e outras coisas também, até da fotografia. O filme era
iraniano e eu nem sabia que tinha cinema no Irã. Eu pensei que era
proibido. Disse isso e ela riu torto, daquele jeito todo metido a
sabichona. Então, eu comentei sobre o filme da Julia Roberts, que adoro,
aquele que o namorado tem câncer. Ela riu, e disse que eu era "um clichê
total". Fiquei alguns dias com seu
sorriso besta na cabeça. Cheguei em casa e olhei a minha coleção de
anjinhos de cristal sobre a mesa de centro. Minhas toalhinhas de crochê.
As flores de plástico sobre a mesa da cozinha. Sim, mas é claro. Ela me
ridicularizava só porque era jovem e sabia um monte de porcariada que a
incluía em algum desses grupos de pessoas que se sentem diferentes. E
melhores também, vide o bendito sorriso estampado em sua cara. Julgava-me,
por certo, uma quarentona solteirona que nunca ousou nada na vida. Alguém
que colecionava frustrações, medos, angústias e bibelots de gosto duvidoso. Sua
voz nos meus ouvidos, clichê total. Pensando bem, só um final
cabe aqui. Pego a faca da cozinha, vou
até o seu apartamento, toco a campainha e faço aquela expressão que você
adora criticar. Você me vê através do olho mágico e logo abre a porta.
Está muito curiosa, com vontade de rir por antecipação. Eu peço para
entrar. A vizinha esperta jamais imaginaria que aquela mão atrás do corpo
carrega uma faca. Fecho a
porta e corto a sua garganta de um extremo ao outro. Rápido, ela não
consegue gritar e já sufoca. O sangue jorra pulsante e eu fico olhando.
Ela deitada no assoalho, imóvel, a poça vermelha crescendo.
Crescendo. Sento-me no seu sofá e olho todos aqueles filmes, livros, pôsteres e quadros. Ela era mesmo uma moça muito diferente. Pena que este fim seja clichê, como o daquele último filme cult do Steven Soderbergh.
Bianca Rosolem (São Paulo-SP, 1980). Inédita, edita o blogue Caixa de Rascunho e escreve no Página Dois e Bagatelas.
curta-metragem
olhou de lá da
janela sentiu a forte
atração viu seu corpo o
asfalto pessoas ao seu
redor faria um vôo
contrário algo
cinematográfico seria clássico
rápido (adeus adeus
solidão)
Líria Porto. Professora, mineira, vive em Belo Horizonte. Inédita, tem poemas publicados no Cronópios e na Germina - Revista de Literatura e Arte.
anúncio de jornal
O recorte de jornal que
encontrei na bolsa de meu marido me permitiu entender todo o mistério. O
texto do pequeno anúncio era emocionante. A história que se desenhou na
minha cabeça era tão bonita, que parei de fazer perguntas constrangedoras
a Jorge. Imaginei-o cortando o pequeno anúncio dos Classificados, com a
tesoura comprida, de ponta fina. A nossa tesoura! A mesma com que ele
corta minhas unhas da mão direita. A mesma que nos acompanhou em tantas
viagens. O carinho do ato do recorte estava claro! Tudo muito
retinho!
Sebastião é meio burrinho.
Não sei de onde o patrão trouxe aquele nordestino. Tive que perder alguns
minutos com ele, falando da técnica de se tirar cópias sucessivas: cópia
de cópia de cópia, com ampliações. Depois de várias tentativas ele me
trouxe uma bela cópia, grande, com boa definição. Foi essa cópia que
deixei na casa de molduras, para que com ela fosse feito um quadro.
Escolhi uma moldura simples, branca. Pedi um passe partout amarelo.
Achei que, assim, o pequeno e belo texto ficaria mais realçado. O
importante era que a cópia ficasse protegida pelo vidro e que, ao ser
contemplada, motivasse o romantismo e o saudosismo dos cinqüentões de
esquerda que passassem pelo escritório. Fiquei bastante cabreira
quando Jorge me disse que tinha convidado uma velha colega para o
churrasco de domingo. Como havia aparecido a Flávia na vida dele ? Ele não
explicava direito. Quando li o pequeno recorte entendi tudo. Não vi nada
de mais. Se ele me tivesse contado tudo direitinho eu não teria tido
ciúmes e, pelo contrário, teria dado a maior força para que Flávia viesse
almoçar conosco. Domingo ela veio. Apareceu
com o marido e os dois filhos. Um belo casalzinho: as duas belas crianças
nasceram aqui em Brasília. Tal como os nossos filhos. As quatro crianças,
da mesma faixa etária, se esbaldaram na piscina. Jorge havia conhecido Flávia
no Rio, quando os dois eram estudantes. Disse-me ele que não haviam sido
namorados. Apenas colegas. Observei, durante o churrasco, que de vez em
quando os dois se olhavam com sorrisos discretos e com certa cumplicidade,
como se trocassem segredos e carinhos com os olhos. Fingi que não conhecia
a história deles. Cheguei a ficar imaginando as cenas que se desenrolavam
nas cabeças dos dois. Sem ciúmes. Eu sabia que eles haviam se conhecido
apenas por alguns minutos em 1968. O mais engraçado é que eles não sabiam
que eu sabia da ingênua e pura historinha de três minutos dos dois. Tudo
havia acontecido há 32 anos atrás. Imagino que eles não queriam me contar
a verdade, para não me provocarem ciúmes. Se me contassem, teriam também
que me falar sobre o encontro recente deles, provocado pelo anúncio no
jornal. É claro que haviam se encontrado. Eu preferi não demonstar que
sabia, para não provocar constrangimentos. Onde teriam se encontrado?
Fiquei imaginando. Certamente o encontro havia se caracterizado por uma
simples contemplação platônica e troca de reminiscências. Não fiz
perguntas. Eu já torcia para que se encontrassem novamente,
escondidos. Esse reencontro em Brasília,
estando os dois casados, bem casados, cada um com sua família, me deixava
tranqüila. Eu tinha certeza de que não havia sido corneada. Mas o que
poderia acontecer entre os dois dali em diante era uma incógnita. O fato é
que fiquei desejando ser corneada. Meu marido e Flávia mereciam alguns
momentos de privacidade. Desejei ser corneada. Eles
mereciam. Eu também vivia no Rio em
68. Eu também, tal como meu marido e Flávia, havia participado da passeata
no enterro do estudante Edson Luís. Na passeata dos Cem Mil eu não fui. A
coisa estava cada vez mais preta e meus pais me seguraram em casa. Não
quis contrariar minha mãe. Na segunda-feira voltei à
loja de molduras. O quadro estava pronto. Levei pra o escritório, onde
Jorge nunca ía, e o pendurei na parede. Chamei o chefe e os demais colegas
para lerem. Todos se emocionaram, sem imaginar que eu conhecia muito bem o
rapaz citado no anúncio: Procuro o rapaz que há trinta e dois anos atrás, na passeata dos Cem Mil, no Rio de Janeiro, me deu a mão. De mãos dadas caminhamos, nos entreolhando de vez em quando, gritando palavras de ordem. Quando passávamos em frente ao prédio do JB um saco plástico cheio d'água estourou à nossa frente, jogado lá de cima. Soltamos as mãos e nunca mais nos vimos. Se o rapaz, que já procurei no Rio, estiver aqui em Brasília, pode me escrever para a Caixa Postal 4369. Flávia.
Renata Bokanovski nasceu no Rio de Janeiro,
tendo se formado em Literatura Brasileira na UFRJ. Escreve poemas desde a
juventude e tem dois livros publicados: A janela para o mar e Caranguejos ingênuos.
Recentemente, ganhou o primeiro prêmio no Concurso de Contos promovido
pela Associação Brasileira de Palindromistas. Participou, nos anos 80, da
criação da ONG "Tortura Nunca Mais". Atualmente, é assessora legislativa e
taquígrafa, trabalhando também com
tradução.
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