edição 18 | julho de 2007
em nome da mãe

 

"cesariana"
lady eveline hutchins

foram perturbações de veludo,

antes de cair o balde d'água:

ventre escavado por engulhos.

 

são antigos rituais de ternura,

boca com boca ou quem sabe apenas

carnes expostas na flor aberta.

 

foram contrastes e contrições,

feridas de celofane, gritos anis,

a decisão de perder o infinito.

 

foram complicações de parto,

quando meu pai tirava fotos

 

e os corvos esperavam lá fora

pelos restos do recém-parido.

 

 

Lady Eveline Hutchins fecha o Baixo Leblon, cantando antigos funks cariocas, vestindo meia arrastão vermelha e boina, borrada diante do espelho, cabelos intactos. La Hutchins vai ao Baixo Gávea terça, quinta e domingo, a contra-gosto. Toma vinte chopes, todos até a metade. Depois disso, é capaz de acreditar no cinema brasileiro e ter pena dos miseráveis. Fuma quando bebe. Bebe quando fuma. Bebe quando não bebe. Tem uma paixão secreta por Plínio Salgado, atenuada por barbitúricos e rompantes. Usa com freqüência a expressão "quiçá". Seria da nova geração da poesia nacional se alguém soubesse a sua idade

 

 

 

o querubim safado
nina tuklam

Alguém já se perguntou se anjos benfazejos não passam de dublês invisíveis que deixam de nos substituir quando a pirraça lhes aprouver?

 

E não é só isso

 

Quando parafusava o vedante pra porta, pretextando impedir a entrada de anjos, um deles me pisa na mão quando apertava a última contra-porca Dor não senti, só um formigamento manco, pois tais seres, além de portarem o peso da ingenuidade e viverem descalços, têm os pés macios e massageantes, como se metodicamente recebessem imersão em urina humana a qual contém o composto uréia, cujas propriedades hidratam e cicatrizam Só sei que segurei sua canela e ele não conseguiu içar vôo Foi fácil detê-lo ali, dado o seu não-peso Já em pé, flertei com ele, e fiquei de quatro quando o ouvi choramingar deixe-me ir, não me machuque, tenho de ir senão o bom da boca vai se zangar comigo, vai me castigar, descer a auréola até minha cintura e me obrigar a bambolear, caso me dedure

A voz infantil e farinelliana daquele azulejo alado me deixou com uma baita ereção, e sei que ele, quando sentiu meus calos em suas canelas lisas, fremitou-se duplamente sentindo tesões peniano e vaginal simultâneos , reação natural, considerando a perfeita natureza hermafrodita dos anjos Trepamos naquele dia mesmo (penetrei-o com a dureza de quem entra no céu; penetrou-me com a moleza de quem entra no inferno), aproveitando a ausência de minha esposa, filhos, enteados, meu bode de estimação (levaram-no pra vacinar), testemunhas de jeová e demônios retardatários ///saibam que, a partir das 24 horas, os anjos se transformam em demônios/// Anjos personificam o bissexualismo: apresentam uma vagina ao ponto, seja no quesito aromático, seja no quesito lubrificação, seja no dilatação e fertilidade precoce (alguns sofrem de dismenorréia, inclusive TPM), ademais têm uma pica e saco adocicados: ideal pra quem enfrenta aftas Daí adiante decidi retirar a rolha do ralo, pois assim o anjo adentrava(-me), com a visível vantagem de ele, sendo invisível, mesmo sendo descuidado, não haveria, ao menos de sua parte, como imprimir pistas da prevaricação Nosso fito era trepar-retrepar-treparretrepar, sempre no mesmo horário e nas mesmas diversidades posicionais Nada podia ser melhor que chupar um cuzinho angelical, considerando o fato de nunca defecarem salvo as notas musicais oriundas dum canto gregoriano desafinado

Certo dia, combinamos de nos encontrar às 15 horas, a fim de rezarmos um rosário ornado com dentes da dentadura dum fariseu (asseguram os gibis e Mel Gibson), mas ele desconversou Percebi de cara o improviso de justificativas das mais enxovalhadas, o que me levou a suspeitar de sua fidelidade da qual já desconfiava desde a noite em que um demônio fez sua caveira Naquela noite, julguei dúbia aquela informação, mas não por desconfiar de demônios, e sim porque minha esposa havia me feito ingerir maisomenos 120 miligramas de Diazepam enquanto roncava, por conseguinte fui induzido a um sono pétreo, o qual me levou a considerar tais alertas como sendo meros arquétipos de um sonho qualquer Aproveitando o ensejo: quem já teve a sorte de sonhar com as barbas de Freud a lixar a nuca? Humm, De-li-ça! Anjos só têm um defeito: neles não brotam pêlos muito menos barbicha Será que Michelangelo acertou ao retratar na sistina um deus barbudo daquele jeito? Humm Prefiro a barba do deus de Michelangelo à barba de Freud, na certa

Preciso atribuir mais credibilidade aos demônios Quanto preconceito de minha parte! Flagrei, no fundo do quintal, meu bode xodó currando o ar, cujo arquejo era idêntico ao do meu anjo-biscuit

Além do flagra, o anjo me confessa uma miríade de casos, e o pior: me garante estar prenhe de um filho, MEU Asseverei só assumir a paternidade depois da resposta genética, ou seja, do afamado exame de DNA (pensei comigo: como seria possível aquele exame provar algo, em face de ser o material genético do anjo invisível?) Instei no exame de DNA, claro

Decorridos 12 meses, período gestatório completo de um querubim, ele me chega com o suposto filho, embalado num velocino de estrelas de davi O menino, era um menino!, tinha nascido invisível, em decorrência dos genes de caráter dominante do anjo ufa Fui fazer, aliviado, um cafuné na cabeça algodoada do pequenino, a qual encobria dois chifres-bebê

— Ué, o que são essas duas saliências na cabeça do guri? teimei, ao passo que o anjo responde, em afinação de cítara perversa

— Pois é: você ainda duvida que ele é seu filho?

 

 

Nina Tuklam. Natural de Araxá, Minas Gerais, 1965. Mãe de dois maridos. Funcionária pública municipal em dias úteis, embora use os fins de semana para se fazer utilizável. Tem uma coleção de flores artificiais, pois é alérgica a pólen. Seu xodó é um peiote de poliuretano. Tem também hipoglicemia, labirintite e halitose. Não bebe, salvo se já estiver bêbada; nem fuma, salvo em narguilés; muito menos cheira, exala a cara a tapa. Detesta sutiã com alças de silicone. Aliás, vai lutar até a morte pelo direito de desabar sem silicone. Autora de A borboleta na nuca dela (poesia) e de Receita para se livrar da auto-ajuda (prosa). Pretende publicar, até novembro do ano corrente, seu primeiro livro de crônicas dodecassilábicas, intitulado O meu divã de menta. Tradutora, já verteu para o português Miodrag Bulatovic, Yasunari Kawabata e Salman Rushdie. Especialista em fábulas húngaras. Acha seu peiote de poliuretano mais útil que seus dois maridos juntos pela mesma causa.

 

 

 

 

 

 

entre o horizonte e minhas emoções, o nome da mãe

ou a honra perdida de magda levtechev

silvânia marques  

 

 

"Ele quer dizer que, por Piedade, somos cegos em

 relação ao Tempo, - pois que não suportaríamos

ver o que se oculta em seu âmago".

Thomas Pynchon, Mason&Dixon.  

 

 

 

dos meus irmãos mais velhos deus me livrou mas eu sempre retornava para os braços do pai o velho deitado na cama na minha paisagem alquebrada da memória e não eu nunca o via mas o reboco a mão na parede porque o corpo no meu todo apoiado o peso de dois na carcaça e céus peso muito maior no espírito

 

a mãe o meu lar natal partida ao meio comigo e então eu mas ela não

 

o velho o lado do leito o sol descaído de fadiga e nós dois como que entrando num túnel cujos lados do horizonte figuravam os mais escuros

 

o seu sobrenome eu disse a ele e ele os olhos vermelhos caídos feito sóis poentes ele disse o meu sobrenome quem tinha era a minha mulher e eu concordei girando as chaves da casa e mirando a estrada a paisagem poeirenta que eu sabia não ia dar em lugar nenhum

 

 

Silvânia Marques nasceu em Guaíra (PR) em 1984. Graduou-se em Enfermagem e vive atualmente em Brasília-DF. Poeta e contista, participou de diversas antologias e prevê o lançamento de seu primeiro livro-solo para meados de 2008, por uma editora da capital federal

 

 

 

 

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