edição 19 | agosto de 2007
sexto sentido

 

amplidão
ana miranda

Ouço um trovão, um pouco dormindo um pouco acordada visto o robe e saio do quarto sem acender a luz, não é preciso, a noite risca as paredes com as sombras da persiana e posso ver tudo o que não vejo com as luzes acesas, as almas que pairam, os seres de outros mundos, as sombras moventes, os pensamentos que fogem, os pássaros noturnos, as jaulas etéreas, as portas abertas, as pessoas de minha família dormem, vago pelos quartos olhando-as indefesas na cama, as pessoas são inocentes quando dormem, um relâmpago as ilumina por um segundo, torna seus espíritos quase visíveis, os corpos adormecidos são a expressão das almas, têm os lábios entreabertos e as pálpebras se movem fechadas, seus corpos pálidos frios e inertes flutuam, respiram fazendo ruídos e murmuram atormentadas pelos sonhos, nelas se vê o segredo, todos na minha casa deixam livros abertos na cabeceira ou no chão ao lado da cama ao adormecerem, é isso o que nos une, a janela de vidro e grades me dá uma sensação de estar presa, vejo as nuvens no céu, a lua cheia, as estrelas, o vento canta, tudo me chama para fora, procuro a amplidão, abro a porta da sala, subo as escadas até o último andar do edifício, o alçapão que dá no telhado está fechado com um cadeado mas eu o empurro e ele se abre sem nenhum estalo, ando no telhado entre um emaranhado de antenas, fios, canos, pássaros adormecidos, com cuidado para não pisar nas clarabóias de vidro, o telhado é um estágio intermediário entre a terra e o céu assim como os esgotos nos separam do inferno, do beiral do edifício avisto a cidade a meus pés, acendo um cigarro, fumo, o mundo jaz adormecido, o luar ilumina a lagoa, a silhueta da floresta, lâmpadas clareiam as janelas mas é tudo uma ilusão porque o mundo é noturno e nada se vê com os olhos mas com a mente, os edifícios são ruínas e as pessoas não passam de fantoches movidos por demônios e deuses, um raio corta o céu, vem um cheiro de barro e folhas molhadas, caem gotas de chuva, estendo as mãos para nelas sentir o mistério dessa água bíblica, nuvens escondem a lua, cai uma chuva tão forte que faz barulho nas telhas, fecho os olhos e me deixo banhar pela chuva.

 

 

Ana Miranda (Fortaleza, Ceará, 1951). Seu primeiro romance, Boca do inferno, foi publicado em 1989. Traduzido nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Espanha, Suécia e Holanda, entre outros países, deu-lhe o Prêmio Jabuti de Revelação em 1990. Escreve roteiros cinematográficos, ensaios e resenhas críticas para jornais e revistas, além de realizar palestras em universidades e outras instituições. Vive no Rio de Janeiro. Publicou: Anjos e demônios, 1978; Celebrações do outro, 1983; Boca do inferno, 1989; O retrato do rei, 1991; Sem pecado, 1993; A última quimera, 1995; Desmundo, 1996; Amrik, 1997; Que seja em segredo, 1998; Clarice, 1999; Noturnos, 1999; Caderno de sonhos, 2000; 21 histórias de amor, 2002 (em conjunto com outros escritores); Dias e dias, 2002 (Prêmio Jabuti 2003); Deus-Dará (crônicas publicadas na Caros Amigos), 2003; Boa companhia: contos, 2003 (em conjunto com outros escritores); Flor do cerrado, 2004; Prece a uma aldeia perdida, 2004.

 

 

 

 

2 contos
samantha abreu

intuition

 

Sempre que eu começava a gostar de alguém, alguma coisa me dizia pra deixar os esforços de lado.

 

O tal amor não vale a pena. Não vá às penas, babe - dizia minha intuição aguçada.

 

Todas as possibilidades de felicidade ficaram em algum canto empoeirado do passado. Desde então, tornei-me viajante do tempo e as palavras não me alcançam mais. Sei, antes de qualquer indício, quando algo vai dar errado. Aprendi a enxergar o que existe por trás das aparências, além do que se mostra.

 

Não me diga o que fazer, não tente me convencer. Tenho o sexto sentido de almas mudas.

 

Por isso, meu bem, não diga nada.

 

Aprenda a se fazer satisfeito com o que pode sentir.

 

 

          

(des) confiança

 

Antonia era a melhor vendedora da loja. Sabia adivinhar o que as pessoas desejavam. Acertava na mosca, sempre. Uma vez, vendeu um aparelho de barbear para uma senhora que queria limpar o tapete peludo que tinha na sala. Conseguiu convencê-la de que cortar rente ao chão era a solução.

 

Tinha ótimos resultados em concursos e provas, porque conseguia pressentir o que ia cair. Estudava só o que interessava à sua intuição aguçada. Além disso, sempre sabia de grandes possibilidades para números de loteria, já tinha virado consultora para assuntos de sorte e azar. As pessoas ficam pasmas: "Ela não erra uma. Deve ser mediúnica". Mas Antonia não ligava muito para essas coisas.

 

Um dia, chegou em casa mais cedo do trabalho e o encontrou lá, suado, debaixo do corpo de outra mulher. O susto foi tão grande que, sem pensar duas vezes, enfiou-lhe a faca de pão nas costas.

 

Posso não ter previsto, mas cega eu não sou!


 

Samantha Abreu (Londrina-PR, 1980). Vive em Londrina, onde é graduanda em Letras. Escreve o blogue Alta Intimidade e a série "Mulheres sob Descontrole". É viciada em fantasias, tem a cabeça povoada por imaginações, além de personalidades múltiplas e intimamente reveladas.

 

 

 

 

 

 

 

 

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