edição 22 | novembro de 2007
tema livre ou diadorim

 

a chuva
andréa motta

Ouviste a chuva me perguntas

com alegria infantil

respondo-te singelamente

não só a ouvi, também a vi.

 

Porque estava frio,

em meu corpo

não a senti.

 

Mas, na música da chuvarada

os córregos que estavam por um fio,

em plena madrugada,

tornaram-se caudalosos e silenciosos rios.

 

Não resta dúvida, em território lasso,

o profuso pranto

de tratos, traços e encantos,

explodiu em fulgor plural.

 

E aos poetas

se não trouxe a rima

nem a cadência

trouxe a divina inspiração.

 

 

Andréa Motta. Paulistana, reside em Curitiba. Paranaense de coração, solteira por opção, tem um filho. Se pudesse, viveria junto ao mar. Adora a natureza, filosofia, história, fotografia. Suas grandes paixões são indiscutivelmente seu filho, o Direito e a Poesia. Seus textos podem ser encontrados no blogue Jardim de Poesia.

 

 

dois
daniela dias

Dossiê

 

Eu sou uma mocinha. Mo-ci-nha. Adoro perfumes, cores, bebês e flores.

Mas me interessa igualmente o que me é diferente. O lado obscuro de tudo. Eu sou uma mocinha. Menina. Mas me atrai conhecer o avesso. Entendê-lo.

Por isso coleciono almas. Olho nos olhos, observo o entorno, busco desgasto derreto de cansaço. Vou até o fim.

Eu sou menina. Eu sou menino. Eu sou um espectro. Uma abelha. Uma agulha. Uma fagulha.

Uma história de dois lados.

 

 

No corpo de um

 

Maria olhou para Reinaldo. Ele estava morto. E ela estava pura.

Reinaldo olhou para Maria. Ela estava morta e ele estava puro.

Riobaldo olhou a ambos. E ele estava vivo.

 

 

Daniela Dias (São Paulo-SP, 1982). Jornalista, mantém o blogue Quimerópolis, onde coloca seus avessos e reversos.

 

 

fonte no deserto
denise kasburg

Leve o mar em suas mãos

Leve as mãos ao coração

Leve seu coração nos olhos

Leve os seus olhos ao mundo

Leve o mundo para dentro

Leve dentro.

 

Leve areia nos sonhos

Leve seus sonhos na pele

Leve o sol na alma

Light inside.

 

 

Denise Kasburg (Curitiba-PR, 1987). Estudante de Biologia. Tem 8 anos de cadernos e mais cadernos preenchidos com poesia, contos e outros escritos. Entre eles, os que contam as imagens da Natureza e as sensações indizíveis do espírito de cada um são as preferidas.

 

2 poemas
lucila nogueira
 

cantiga de amigo I

(ou ao lado do bar garagem havia uma ponte de van gogh)

 

ontem quis me entregar à alegria e quase ao acaso

saí com o meu leque imenso vermelho de Madame Butterfly

e depois de cantar ao microfone o princípio de Summertime 
eu me deixei levar a um lugar onde há muito queria estar 
e na hora que entrei ali mesmo  no escuro do som 
um fauno de quase dois metros gritou meu nome  
e ficamos dançando twist descendo até o chão

nesse  bar sem luxo como os que conheci na Colômbia 
depois chegou um outro sátiro que ainda não me conhecia 
e talvez por isso mesmo me chamou logo ao andar de cima 
eu confidenciei ao meu amigo essa proposta com ironia

mas o amigo não entendeu e quis subir na frente e quis ir olhar

e voltou falando que era apenas um acampamento de sofás 
foi quando na calçada não sei porque me vieram apresentar

uma versão do Tadzio de Visconti em plena Veneza tropical 
eu era apenas uma ex-colecionadora diante de uma tela presa no museu do Louvre

quando alguém jogou sua bebida  em cima daquela pele que exaltava a vida 
desde uns cinco metros de distância em fatal pontaria de Robin Hood 
acontece que o Tadzio era tipo o ídolo daquele súbito Eden subterrâneo  
e logo vieram guardiães para agredir o agressor insensato que vestia camisa azul 
eu me coloquei Joana D 'Arc no centro do remoinho e do túnel de Ernesto Sábato 
e tudo se acalmou na esquina de um bar de fim de noite em dia de sábado  
o céu amparava uma lua bêbada sobre as manchas da pantera

no colar  e no voile transparente que fazia a valquíria voar

eu lembrei da Sala de Reboco quando o aventureiro de Estocolmo

repentinamente pareceu querer descer em direção ao rio silencioso 
pelas suas margens teciam alamedas muitas plantas e jardins 
que olhávamos  todos de pé com saudade da taça do Graal  
cheguei em casa  com a manhã nos olhos e na barra da túnica

e um amuleto feito dos sonhos de sete druidas para recordar

que ao lado do bar Garagem havia uma ponte de Van Gogh

 

 

 

 

fala de essomericq

(mulher ao mar)


Rua do Bom Jesus em tarde de domingo

tambores e clarins

                                 frevo e maracatu 

Mama África

chegou acorrentada como escrava

hoje seu rosto é como um selo em minha pátria 

Rua do Bom Jesus em tarde de domingo

a multidão dança na rua

                                            lá vou eu

santa pobreza em traje de rainha

                                             lá vou eu

tua alegria de tambor me ressuscita

tua alegria de clarins pela calçada

cabeças degoladas como máscaras

                               são os homens que amei

em submisso ritual antropofágico

canibais anteriores a Montaigne

são os náufragos da baía de Audierne 

e o teu silêncio te doeu em tua terra ó Goneville

porque ele era a voz de Caliban desesperado

contra a ocupação das Américas 

poderoso Goneville

          eu sou carijó e devo retornar à minha tribo

Martinho de Nantes

          eu sou cariri e devo retornar ao meu Recife

Villegagnon da Bretanha

          eu sou carioca e quero voltar ao Rio

          à França Antártica, à França Equinocial

          aos braços de Azenor, Levenez e Riwanon

por isso ensina-me a escrita

                                              Jean de Léry

                               que eu sou tupiniquim

ensina-me a bruxaria do papel que fala

as palavras francesas derivadas do tupi

ensina-me tua ciência

                                              Lévy-Strauss

                                 que eu sou tupinambá 

e te devolvo a infância

                                           Marcel Proust

e te devolvo o sonho

                                           mon Ronsard

com o feitiço do açúcar

                                           nos sentidos

eu te devolvo

le tranquille repos de la première vie

viens dans ma chaumière

dedans il fait si bom

reste ici

                            e então tu me pediste

reste ici

                            e então tu me rogaste

um peu de bonheur 

                            mais je suis le beau sauvage

e estive em Nantes

                                    ó Júlio Verne

só para te dizer

                                    que lá em Olinda

eu conduzi vraiment

                                    uma jangada nordestina 

era o vento em meu rosto

                                    la tempête

era o sol sobre a pele

                                    entre os navios

je suis desamparée

                                    mulher ao mar

j’ai besoin de secours

                                    mulher ao mar 

ó bravo vento forte

                                           Pernambuco

corsária veli vaga

                                    no drakar

canoa gôndola

                                    rabelo balandra

zambra sultana

                                    arvingel baidar 

minha jangada

                                    a bombordo

                                    a estibordo

barca de luzes

                                    leito de farol

a torre cor de rosa

                                    aos pés do cais

livre de rebocadores

                                    vem visitar 

                                                 ó Goneville

a Vênus prisioneira

                                                 deitada sobre a espuma

de um trapézio de plumas

                                                 sou tapuia

somos todos filhos de Saturno

                               e eu reúno as tuas partes decepadas

Yemanjá em noite de oferenda

 

                                   mulher ao mar.

 

 

Lucila Nogueira é poeta, crítica, contista, tradutora e editora. É professora de Letras e Lingüística na Universidade Federal de Pernambuco e coordena a Festa Literária Internacional de Porto de Galinhas (Fliporto). Tem 20 livros publicados em Recife e no Rio de Janeiro, entre eles Almenara e Quasar, que obtiveram o Prêmio de Poesia Manuel Bandeira, do Governo de Pernambuco, em 1978 e 1986. Também publicou livros de ensaios sobre Carlos Drummond Andrade, Fernando Pessoa e aguarda a publicação da tese de doutorado sobre os livros O cão sem plumas e Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto. Foi organizadora dos livros Saudade de Inês de Castro (Edições Bagaço, 2005), Poesia Reunida, de Deborah Brennand e A musa roubada, de Tereza Tenório (ambos da Companhia Editora de Pernambuco, 2007). Organizou e traduziu a Antologia de Poesia Colombiana (Edições Bagaço, 2007), com o escritor e editor Floriano Martins.

 

 

 


 

 

diadorim
nina rizzi
 

houve um tempo em que ela pensava ser homem. não sabia ainda das diferenças naturais entre os sexos — apesar dos abusos que sofrera, cria ser a sexualidade uma orientação. e o fato de a mãe vesti-la com aqueles babados e frufrus ridículos, era tão somente para deliciar-se com a humilhação que impunha à filha.

 

ela vestia uma roupa andrógina por baixo dos vestidos. depois de caminhar os treze quilômetros que separavam a casa da escola, num lugar onde havia um rio — seu divisor metafísico, e a ponte era um largo tronco de baobá — retirava essas máscaras como num ritual, acessórios de cabeça, corpo e membros. então podia contemplar n'água seu verdadeiro eu. sem artifícios.

 

as outras crianças a rodeavam entre gritos "maria sapatão, sapatão, sapatão, de dia é maria, de noite é joão". apesar de não compreender as bazófias, não gostava. recolhia-se no fundo da sala, na biblioteca — quase vazia, no banheiro. às vezes se deixava ter com uma ou outra garota que lhe pedia carícias nesses recônditos silenciosos e em penumbra; para em seguida, às luzes da ribalta, ouvir das mesmas garotas, um tanto envergonhadas em gestalt, a repetida música, seu melô.

 

a mais freqüente delas, fernandè, levava-a até sua casa após às aulas. nadavam juntas a se encharcar lá no fundo. piscina ou chuveiro. olha, é melhor a gente enganar aquela patota lá do colégio, vamos fingir que somos inimigas. ela aceitou. não fazia muita diferença mesmo. fernandè achava que sabia das coisas, e era melhor que continuasse assim. na hora devida, compreenderia que não pode haver segredos de amizade.

 

*

 

raspou a cabeça. comeu suas unhas até sangrar. rasgou os vestidos e jogou no rio os acessórios tão inúteis. levou uma boa sova da mãe, mas há muito que não se importava com essas mãos tão rudes.

 

chamou fernandè para um corredor da escola e a beijou. essa não podia esquivar-se. quando enlaçada, era como um afogamento, um desfalecer de asas. a beleza e a delícia da morte.

 

o diretor da escola separou-as. fernandè foi pra sala de aula e a outra pra diretoria. pela última vez. estava expulsa. e outra sova.

 

*

 

ela iria se curar. foi o bispo em pessoa que recomendou a psiquiatra.

 

os exames em sua cabeça não identificaram qualquer desvio.

 

sylvie deitou-a. então pensa que é homem? mas não somos todos? li que o homem é universal; quando querem se referir a todas as pessoas falam homem; falam em humanidade, cujo radical é homem.

 

sylvie se deixou emocionar e ofereceu à paciente o seu sobrenome: champagne.

 

*

 

agora a garota era uma mulher. entendia que palavras sempre serviram de artifícios ao paternalismo para subjulgar o feminino, de que, afinal, tinham medo. como de todo desconhecido.

 

compreendeu a única diferença natural entre os sexos. questão de anatomia, e todas demais são construções culturais.

 

entendeu, inclusive, a música gracejadora. nunca se passou por homem porque em suas entranhas gritavam as vozes de todas as mulheres que eram todas e ela também.

 

quanto ao "desvio sexual" de sua filha, não se trata de anomalia ou opção, dona lucie. então é o quê?

 

homoternurismo.

 

 

 

Nina Rizzi (1983). Formada em História pela UNESP, em Franca/SP. Mãe da Lavínia. "Sou a catalisação, a junção de todos meus pseudônimos, pseudo-eus, eus perdidos, alter ego... o que chamo de ELLO. ELLO é também uma nova fase. Uma reconceituação de poesia, música e teatro, tudo um elo, ou ello".

 

 

 

 

 

 

 

 

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