edição 27 | junho de 2008
temas:  lixo | poder | haraquiri

 

 

morcegos

 

chocando lâmpadas

que iluminam monumentos

 

por esmola

aquecem o frio da noite

 

 

minúsculo melodrama sujo contado nos dedos de uma mão

julya vasconcelos

 

é como estar:

1 - entre os restos de comida de teus dentes,

2 - nas migalhas do discurso surdo que lanceia tua garganta,

3 - nos sobejos das embalagens cheirando a leite azedo,

4 - nas cartas destroçadas ao sabor de dedos impetuosos,

5 - nas polaróides desbotadas e sempre mal enquadradas.

 

e no acaso dos sacos largados na caixa de papelão

vai um braço, uma perna, um cotovelo áspero, um resto meu.

tudo abandonado à apreciação e ao nojo público.

 

 

celesta
jussara salazar

 

Submersa repousava

a carta geográfica de um estranho mundo perdido e ouvia-se longínquo o som da Celesta, minúsculo e secular piano de vidro.

Um astrônomo vislumbrava uma nova nebulosa, seria Andrômeda, Lira ou Órion? O tempo deitava-se leve relva, alfombra inefável.

Quantos poentes? Tantos quantas as colheitas durante sete ou oito noites, anunciava o fulgor espelhado

na órbita do olho de vidro do velho general.

Celesta não cansava de ressoar a antiga cançoneta francesa

Bonjour amour, Bonjour...

A dama do vestido azul ajeitava-se na cadeirinha forrada em brocado oriental e pés de pata de leão,

arfando ao repetir docemente

e dobrando seu acento hungarês nazi... der nationalsozialist

enquanto abanava o leque, impregnando o ar com um perfume de sândalo e almíscar entre os candelabros.

Celesta soava incansável, ecoava no mormaço da noite e o encantador sinuava a serpente escarlate. Um regalo ma dame? E contorcia-se em acrobacias dentro do baú de veludo forrado em estilo capitonê.

Uma folha seca, atravessando o ar pousou sobre o mármore branco e um vulto, a raposa negra, atravessou o silêncio.

O velho apertou a insígnia sobre o peito. Nunca mais, pensou. Sorriu e deixou crescer sobre si

e as pontas dos dedos,

o capim-açu.

E deitou-se ali com o tempo e a escuridão úmida da terra,

sem nunca saber se algum dia havia existido.

Ao longe, Celesta não cansava de repetir suave

a antiga cançoneta francesa, Bonjour amour, Bonjour...

 

 

 

 

 

8 poemas
líria porto

 

ranços

 

na boca do lixo

um bafo danado

um sarro esquisito

sabor de catarro

 

nos templos

ouro em demasia

 

 

 

 

necessidades

 

as carências obtusas

extremadas inconscientes

 

produzem estragos fissuras

atitudes invertebradas

 

transformam-nos em moluscos

minúsculos cabisbaixos

 

a contentar-nos com tudo

ciscos esmolas migalhas

 

fingimentos olhares dúbios

desprezos lixo

 

andrajos

 

 

 

 

fino calibre

 

a rima arretada

sem volta ou floreio

busca a direção do peito

 

o verso direto

sem curva ou rebusco

tem a precisão do furo

 

poema

ou tiroteio?

 

 

 

 

carne de pescoço

 

megera era bela

nariz empinado

o rei na barriga

quisera vê-la velha

a carregar no dorso

fardos de remorso

como peso morto

 

 

 

 

mágicos

 

deuses

penduram

estrelas

lá no céu

 

poetas

desenham

palavras

no papel

 

 

 

 

principesca

 

sorte é morar no alto da serra

ter esta janela

assistir de camarote todos os crepúsculos

olhar o sol nos olhos

a lua as estrelas as nuvens

dançar na chuva

viver num mundo de asas abertas

azul no topo

verde ao sopé

 

isto sim

é que é poder

 

 

 

 

cardo

 

eu mordia a boca dele

sabia a peçonha na língua

lambia e bebia a saliva

era para engolir ele

morrer dele

do adocicado da víbora

 

 

 

 

腹切り

 

com o tanto na barriga

da esquerda para a direita

desabro a vida

 

a lava escorre e lava

minha honra minha adaga

 

esta é a paga

 

geração espontânea
lucélia majistral

 

Ele foi direto ao ponto e me perguntou onde o lixo era jogado. Eu respondi dizendo que ele sabia que eu não poderia responder porque era informação confidencial. Eu sei que é informação confidencial, ele disse. Todo mundo sabe. Então, eu disse. Então, ele perguntou, por que você não me explica a razão disso ser informação confidencial? Eu disse que era uma questão de segurança. Segurança como? Ele era um novato na companhia e eu não estava muito segura sobre se poderia ou não contar a ele tais e tais coisas. Pedi um minuto e fui até a minha posição de trabalho contatar a minha supervisora. Autorizada, expliquei a ele que era informação confidencial porque envolvia assassinatos em massa. Não me lembro se usei a palavra "assassinatos". É provável que eu tenha usado um eufemismo. Ele não me inspirava desconfiança. Um novato que passou por todos os crivos possíveis e imagináveis. Eu confiava no sistema. Eu confiava na minha supervisora. Como assim?, ele quis saber. Abiogênese, respondi. Como assim?, ele insistiu. Há alguns anos, começaram a nascer... coisas do lixo. Coisas? Formas de vida. Que tipo de formas de vida? Lembravam pessoas. Vagamente. O que eram, exatamente? Formas de vida, já disse. E o que faziam? Elas ficavam por ali. No lixo. Catando coisas, trapos, restos, comendo o que achavam. Não saíam de lá? Bem, foi aí que o problema começou. Que problema? Elas começaram a sair. Então, nós cercamos o lixo. A área toda. Recapturamos os que tinham saído. Eles, então, começaram a exigir coisas. Não nos restou alternativa. Foram eliminados? Nós tentamos. Temos tentado. Eliminamos o que conseguimos. Controlamos a coisa, pelo menos. O problema é que o número deles é diretamente proporcional à quantidade de lixo, compreende? E o lixo aumenta exponencialmente. Foi quando ele sorriu e disse que a minha explicação tinha sido mais do que satisfatória. E, ainda sorrindo, para o meu horror, disse: Eu assumo a partir daqui.

 

 

 

compartilhar: