edição 27 | junho de 2008
temas:  lixo | poder | haraquiri

 

3 poemas

aline valentine

 

 

lixo

a(ca)lma

 

lindas pétalas envelhecidas

caem do lixo da minha alma

e teias de aranha cobertas de pó

e mais as caixas memoriais dos outonos passados

 

não é fácil enxergar quando se está cega

ou então tentar quando já perdeu as tentativas

mas a vida está aqui

look at the stars!

sempre há uma luz em cada escuridão

então eu tento

limpar o que já está apodrecendo

e renovar o que já foi gasto por demais

que limpeza ordinária!

sempre ficam resquícios que então eu (não) tiro

 

já tentei de tudo um pouco

mas a pureza do algodão ainda me fascina

então espere por mim, meu amor

que a minha alma logo acalma

 

 

 

poder

(um pedido de desculpas)

 

sinto muito te dizer isso, meu amigo

mas nem sempre o sol vai brilhar pra você

nem sempre as pessoas sorrirão quando te virem

nem sempre você será acordado com um beijo

nem sempre você será o centro das conversas

 

sinto muito te dizer isso, meu amigo

mas o infortúnio de hoje

será a glória de amanhã

então senta aí

que eu também estou esperando

já faz uns anos.

 

 

 

haraquiri

(a new beginning)

 

so here I am

sem meias palavras ou promessas

apenas inteira e eterna

não como as rosas argentinas

mas como a alma eterna e densa

que se faz secreta para ser duradoura

e misteriosa como o pôr-do-sol em Pequim

com o chá oriental

 

aguarde mais um minuto

ou, se preferir, a vida inteira

só não diga depois que não avisei

assim será bem melhor

meu bem

com açúcar, com afeto

sem cair no chão as migalhas, por favor.

 

 

Aline Valentine (1987), nasceu em Maringá (PR), numa dessas manhãs frias de outono. Desde pequena ela já trocava as bonecas por lápis e papel, escrevendo sobre tudo o que pudesse ser transformado em palavras. Admiradora das palavras líricas e espirituais de Adélia Prado, seus textos retratam a humanidade e a divindade do ser humano e de seus sentimentos. Edita o blogue Oh-Lili.

 

homens de papel
regina alonso

Sob a marquise

homens de papel

corpos quase desnudos

recobertos de folhas de jornal

que não traz esta manchete.

Afinal

notícia entra pela porta da frente

vidro bisotado aberto de par em par

recebendo  turistas e suas malas de couro.

Homens de aço

registrando nomes ilustres

na recepção do hotel

línguas entrecruzadas

francês, inglês, espanhol, italiano...

 

E nos fundos

sobre as calçadas

a fome desperta os homens de papel...

Homens ou ratos

fuçando latas de lixo

disputando restos de comidas finas?

 

Afinal

é tempo de Natal!

 

Regina Alonso é santista,  autora do livro de poesia Ofício. Obteve o 1º lugar no 16º Encontro Brasileiro de Haicai (Campinas). Foi premiada no Mapa Cultural Paulista (2007-2008), na categoria Conto. Ganhou o Prêmio Especial Bungaku — Conjunto de 10 haicais (2006 e 2008). Escreveu  textos para a peça Refavela, refazendo o sentido, dirigida por Renato Di Renzo, em homenagem a Gilberto Gil. Coordena o Grupo Literário Café com Letras, integra o Grêmio de Haicai Caminho das Águas e o Projeto Seis e Meia/Associação Projeto Tamtam, e participa de espetáculos literomusicais com o Grupo Poetas Vivos.

 

 

 

tooro nagashi1
simone toji

Quando ele chegou eu estava dormindo. Naquela noite, sonhei que um velho senhor desconhecido se amparava nos joelhos e declarava que estava muito cansado. Lembro que ofereci chá ao senhor, mas ele não quis beber. Depois lhe apresentei um pouco de gohan2 e novamente ele recusou. Daí, dei manju3, toalha de rosto, travesseiro, cadeira, mas nada disso ele queria. Até que, quase desistindo, lhe entreguei um fósforo queimado. Ele agradeceu solenemente, hay, arigatô4, e foi embora, levando o fósforo na concha da mão direita. Sonhei muitas outras coisas aquele sono.

No dia seguinte, mamãe avisou que tínhamos um novo hóspede, um velho senhor, vindo desde Juquiá pela estrada de ferro, havia chegado até Registro de vapor pelo rio. Estava de passagem por Sete Barras, mas não falou quanto tempo ia ficar ali na pensão. Mamãe me solicitou que levasse chá ao hóspede e o avisasse que a refeição matinal estava à disposição. Subi as escadas com o chá esquentando entre as mãos, já me preparava para reconhecer o velho senhor do sonho e levar o chá de volta. Bati na porta do quarto, que ficava no fundo do corredor, e uma voz profunda pronunciou qualquer coisa que não compreendi muito bem. Entrei assim mesmo e encontrei o senhor sentado na cama, segurando uma brochura entre as mãos. Era mesmo velho o senhor, mas não tinha nenhuma semelhança com a figura do meu sonho. Aliviado, comuniquei que minha mãe aguardava com a refeição da manhã e ele aceitou o chá que levei.

Não era muito falante o velho hóspede. Ficava o tempo todo trancado no quarto, aparecia apenas nos horários das refeições. Às vezes, quando eu ajudava minha mãe a estender as roupas no fundo do quintal, eu o flagrava na janela do quarto, observando silenciosamente o rio Ribeira de Iguape, que ficava atrás da pensão.

Uns dez dias se passaram assim, até que numa tarde meu pai iniciou suas rezas para a semana de finados. O pai caminhava vagarosamente pelas margens do rio Ribeira e seguia com as palmas das mãos em reverência, repetindo sem cessar, nam myoro ren gengyo, nam myoro ren gengyo, nam myoro ren gengyo5... Lembro quando o velho senhor saiu apressadamente do quarto e se dirigiu até onde meu pai orava. Mancava um pouco o velho, mas pisava obstinado. Ficaram um bom tempo conversando lá fora, ele e meu pai.

Quando ele se foi eu estava dormindo. No outro dia, ninguém encontrou o velho hóspede na pensão. As coisas dele permaneciam no quarto, a brochura em japonês, uma muda de roupa suja e a cama zelosamente arrumada. Papai me ordenou sair bairro afora à procura do desaparecido. Andei a manhã toda, perguntei nas casas, nos vizinhos, mas ninguém ofereceu alguma pista.

Ao voltar pra casa de mãos vazias, lá estava o sub-delegado, ríspido, bruto.  Haviam encontrado o corpo do velho senhor na margem direita do rio, perto já de Registro, parecia afogado. Vasculharam o quarto do hóspede, todos os papéis estavam em japonês. Aquilo irritou o sub-delegado, ele queria levar meu pai preso. O intérprete da colônia encontrou uma carta do falecido. Foi suicídio. O sub-delegado duvidou, bando de amarelos!, tragam a carta, vamos traduzir tudo isso!

Papai não foi preso, mas juntou todas as coisas do velho senhor e lhe rendeu orações, nam myoro ren gengyo, nam myoro ren gengyo, nam myoro ren gengyo.

No ano seguinte, no dia de finados, meu pai ajeitou uma tábua de madeira, mamãe montou uma redoma com um pedaço de fazenda azul. Às margens do Rio Ribeira de Iguape, a família prestou reverência à lembrança do velho senhor. Sobre a tábua de madeira, acendemos uma vela, ajustamos a redoma de pano por cima e lançamos tudo à correnteza do rio.

Na imensidão caudalosa do Ribeira de Iguape, a lembrança do velho senhor flutuou tranquilamente, acesa, seguindo a correnteza. Em minhas mãos, sobrou o fósforo queimado, que também joguei ao rio e acompanhei sua dança pelos redemoinhos de água, até sumir lá longe.

Quando ele submergiu eu estava acordado.

 

 

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1 Cerimônia em louvor aos mortos, na qual se acendem velas levadas em barcos pelos rios

2 Arroz

3 Doce de feijão

4 Sim, obrigado

5 Mantra budista

 

Simone Toji é antropóloga, tem 31 anos, nasceu na cidade de São Paulo, mas viveu também em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Atualmente, reside em São Paulo. É filha de pai japonês e mãe brasileira, descendente de imigrantes japoneses. Escreve histórias esporadicamente desde a adolescência e ultimamente anda criando coragem para se entender no ofício de escrever. Ainda não tem obra publicada, nem blogue, nem menção em quadro de aviso, tem muitas histórias escritas e está se preparando para circular algumas delas.

 

 

 

 

 

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