notas de ironia
temperando uma garoa que não molha
nem sinfonia
Entortam-se ainda mais as dobras, dobram-se as linhas da mão, os joelhos e, sobretudo, as fronteiras das coisas, os calos gigantes das coisas. Os fatos, as peles. Os rios caudalosos transmutam-se em frestas ruidosas e goteiras insistentes de apartamento. Corpo alquimista, bicho comendo toda coisa. Dizem:— AUROOORA, LAMBE O PRESENTE DE DIA E JOGA PRA FORA DA CABEÇA À NOITE! — desacelera sinapses e ossos.
E de toda seta faca lâmina apenas resta um nó invariavelmente cego ou eclipsado, mas sábio como o nadar de uma lontra de costas cuspindo água para cima.
a morte de d. manhã Fechamos as janelas brancas com o mais suave lençol de linho — Repara o sol febril e essa brisa mourisca entre dormir entre velar o sono dos confins. — Repara também Nossa Senhora das Horas passando de seu exílio errante. Há tanta luz, vê um rei, ele também passa pela janela e esse rei era o amor que iluminava a rua e o vestido rendado rondando a manhã tão belo que a morte nem precisava. A casa sisuda cerrou os vidros e cobriu de sombras zumbiu a unção chuvosa da minguante. A Senhora D. Pomba no parapeito rompeu a adormecida manhã no abismo das velas de agosto. Agora pisamos leve o seu reino misterioso e cobrimos essa manhã de algodão com o mais suave lençol de linho
10 poemas
boca seca
se o vento te contar das suas coisas do quanto neste mundo ele já viu
saberás que na vida em algum momento um copo d'água é maior do que um rio
cascata
debaixo da bica uma tina
dentro da tina um menino
na cara do menino o riso
no riso do menino um rio cristalino
os amores de lúcio
a água treme arrepia-se é toda ela emoção
a pedra mantém-se firme bem agarrada à montanha
a água desce desliza a pedra cuida ampara-a
águas maria luísa pedras maria eduarda
idas e vindas
o nosso caminho de espinhos e pétalas bifurca-se
adeus ó amado não vou te esquecer
um dia quem sabe os braços do rio misturem nossas águas
(des)entendimento
a chuva encharca o brejo sapos coaxam por cima corações germinam faz séculos desfaço-me entre os seixos espaço há o das mágoas bem no âmago das pedras
palavras não têm chave silêncio é sinal de término e o tempo se acelera em dias que me amassam
estou a sentir-me velha
poente
não é noite ainda nem dia nesta hora aflita ninguém interdita o ocaso
fica só um pouco espera a estrela ela não demora hoje é domingo ou segunda-feira
não importa o tempo não importa a mágoa esse limiar é e sempre foi a gota d'água
a vida se esvai escorre-me aos poucos salve-se o amor alvo dos chacais cria indefesa
cristalino
a mim não me enganas cansei-me de te ouvir dizer não temo a morte a velhice a solidão
teus olhos refletem outra coisa e espelhos não mentem
escoadouro
o tempo que o tempo tem andamos mais da metade a idade disparou eu não tinha tanta pressa e o prazo que me resta eu sei é pouco então vem antes que acabe a festa e deixemos de viver o que seria e não foi
sexagenários
quem sabe eu chorasse um mar oceano
dele retirasse o sal desses anos
temperasse a velhice com mais parcimônia
afinal quem não sonha com finais felizes?
velhice
quanto mais vou mais fico
chego ao patamar onde não há degraus nem saltos
|