edição 31 | outubro de 2008
temas:  água | velhice

 

 

notas de ironia

 

temperando uma garoa

que não molha

 

                nem sinfonia

 

 

velhice

julya vasconcelos

 

Entortam-se ainda mais as dobras, dobram-se as linhas da mão, os joelhos e, sobretudo, as fronteiras das coisas, os calos gigantes das coisas. Os fatos, as peles. Os rios caudalosos transmutam-se em frestas ruidosas e goteiras insistentes de apartamento.

Corpo alquimista, bicho comendo toda coisa.

Dizem:— AUROOORA, LAMBE O PRESENTE DE DIA

E JOGA PRA FORA DA CABEÇA À NOITE! — desacelera sinapses e ossos. 

 

E de toda seta faca lâmina apenas resta um nó invariavelmente cego ou eclipsado,

mas sábio como o nadar de uma lontra de costas cuspindo água para cima.

 

 

a morte de d. manhã
jussara salazar

Fechamos as janelas brancas

com o mais suave lençol de linho

— Repara o sol febril e essa brisa mourisca entre dormir entre velar o sono dos confins.

— Repara também Nossa Senhora das Horas passando de seu exílio errante. 

Há tanta luz, vê um rei, ele também passa pela janela

e esse rei era o amor que iluminava a rua

e o vestido rendado

rondando a manhã tão belo que a morte nem precisava.

A casa sisuda cerrou os vidros e cobriu

de sombras zumbiu a unção chuvosa da minguante.

A Senhora D. Pomba no parapeito

rompeu a adormecida manhã no abismo das velas de agosto.

Agora pisamos leve o seu reino misterioso e cobrimos

essa manhã de algodão

com o mais suave lençol de linho

 

 

10 poemas
líria porto

boca seca

 

se o vento te contar das suas coisas

do quanto neste mundo ele já viu

 

saberás que na vida em algum momento

um copo d'água é maior do que um rio

 

 

 

 

cascata

 

debaixo da bica

uma tina

 

dentro da tina

um menino

 

na cara do menino

o riso

 

no riso do menino

um rio cristalino

 

 

 

 

os amores de lúcio

 

a água treme arrepia-se

é toda ela emoção

 

a pedra mantém-se firme

bem agarrada à montanha

 

a água desce desliza

a pedra cuida ampara-a

 

águas maria luísa

pedras maria eduarda

 

 

 

 

idas e vindas

 

o nosso caminho

de espinhos e pétalas

bifurca-se

 

adeus ó amado

não vou te esquecer

 

um dia quem sabe

os braços do rio

misturem nossas águas

 

 

 

 

(des)entendimento

 

a chuva encharca o brejo

sapos coaxam por cima

corações germinam faz séculos

desfaço-me entre os seixos

espaço há o das mágoas

bem no âmago das pedras

 

palavras não têm chave

silêncio é sinal de término

e o tempo se acelera

em dias que me amassam

 

estou a sentir-me velha

 

 

 

 

poente

 

não é noite ainda

nem dia

nesta hora aflita

ninguém interdita

o ocaso

 

fica só um pouco

espera a estrela

ela não demora

hoje é domingo

ou segunda-feira

 

não importa o tempo

não importa a mágoa

esse limiar

é e sempre foi

a gota d'água

 

a vida se esvai

escorre-me aos poucos

salve-se o amor

alvo dos chacais

cria indefesa

 

 

 

 

cristalino

 

a mim não me enganas

cansei-me de te ouvir dizer

não temo a morte a velhice a solidão

 

teus olhos refletem outra coisa

e espelhos não mentem

 

 

 

 

escoadouro

 

o tempo que o tempo tem

andamos mais da metade

a idade disparou

eu não tinha tanta pressa

e o prazo que me resta

eu sei é pouco

então vem

antes que acabe a festa

e deixemos de viver

o que seria

e não foi

 

 

 

 

sexagenários

 

quem sabe eu chorasse

um mar oceano

 

dele retirasse

o sal desses anos

 

temperasse a velhice

com mais parcimônia

 

afinal quem não sonha

com finais felizes?

 

 

 

 

velhice

 

quanto mais vou

mais fico

 

chego ao patamar

onde não há degraus

nem saltos

 

 

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