edição 35
| junho de
2009
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contos desamor Começaram
por parar de andar de mãos dadas. De início, as mãos ainda carregavam
chaves ou seguravam com firmeza a pasta, ou ainda ajeitavam algum detalhe,
como a pulseira do relógio. Com o tempo, porém, nenhum disfarce se fazia
necessário, e as mãos pendiam despreocupadas junto ao corpo. Por vezes,
ele balançava-as como se remasse, numa acintosa provocação. Recusavam-se,
era esse o fato. E aquelas mãos que outrora haviam sido exploradoras, hoje
nem se davam ao trabalho de percorrer o que quer que
fosse. A
intolerância era a nova regente, então. Pautava cada uma de suas frases,
até as jamais proferidas. O riso debochado dado como resposta a algum
comentário não deixava dúvidas quanto ao sentimento que tentava suplantar
o amor. Crises são agudas, como uma dor de dente, mas rancor e
ressentimento são crônicos, e, pior, terminais. Como numa dor de dente,
por vezes a profundidade do dano requer medidas drásticas, e faz-se
necessário matar o nervo. Sim, era isso. Aquilo se transformava aos poucos
num abscesso que exigia um tratamento de canal. Acutilava-se o nervo de
forma a aniquilá-lo, sendo a coroa que restava mera carcaça, corpo sem
alma de um dente para sempre silenciado. Há
palavras que nunca deveriam ser ditas. Constituem cânceres da vida-a-dois,
alastrando-se de forma impiedosa pelos órgãos que um dia latejaram de
amor. E, por cânceres serem, geralmente se tornam perceptíveis somente
quando já é tarde demais. Aderem de modo implacável aos órgãos adjacentes,
muitos dos quais vitais, como o respeito e a ternura. Contaminam áreas
próximas, e fazem minar a autoestima, sistema linfático da psique, num processo letal e
irreversível. Começaram
por parar de andar de mãos dadas. E onde antes houvera dedos entrelaçados
hoje havia apenas o tilintar das moedas-mesquinharias contabilizadas no
dia-a-dia. Começaram por parar de andar de mãos dadas, mas terminaram sem
ao menos saber como ou porquê. a
sala ao lado Perdera
a mãe havia pouco tempo. Na verdade, já havia alguns anos, mas a
dificuldade em aceitar a morte eternizava a sensação da perda, fazendo com
que tudo parecesse ser muito recente. No
início, chorara e blasfemara contra aquilo que considerava algum tipo
injusto e cruel de desígnio, que acabara por lhe roubar o ser mais
próximo, no momento em que ela mais dela precisava. Em
seguida, atirou longe todas as suas crenças, implorando pela morte, a seu
ver a única coisa capaz de lhe aplacar a dor. Descobriu, contudo, que para
morrer é preciso amar a vida. Quem a ela renuncia parece fadado a
permanecer, para aprender a viver. A
resignação, amarga, foi a etapa seguinte. Datas festivas eram o mais
difícil de suportar. Calendários, presentes e pratos saborosos
sucediam-se, sem sentido. Agora,
havia quase sete anos que estava sem ela, e aos poucos tudo parecia voltar
ao normal. Um novo casamento — este, feliz — e o nascimento de mais
um filho faziam-na perceber que sua jornada estava longe de estar
concluída. Foi nessa época que teve a experiência. Olhou
em volta e viu-se num salão belíssimo, luxuosamente decorado.
Delicadamente refinado, assemelhava-se a um desses lugares que são
alugados para faustosas recepções. Ainda
estava fascinada pela beleza do lugar quando avistou a mãe. Linda. Serena.
Feliz. Correu ao seu encontro, surpresa com o fato de ela estar naquela
festa. Não parecia chocada pelo fato de a mãe, já falecida, estar naquele
lugar. A surpresa devia-se ao encontro inesperado, e não à sua presença
ali. —
Mãe, você está aqui?! — sua voz
misturava incredulidade e alegria. — Onde você está sentada?
—
Estou no outro salão, aqui ao
lado. — respondeu ela, com sua voz habitualmente
doce. —
Então eu vou pra lá. — disse
ela, sem pensar. —
Não! — a voz da mãe foi firme.
— De jeito nenhum você pode ir para
lá. Seu lugar é esse. Eu nem podia estar aqui... — disse ela, baixando
o tom de voz. —
Mas, mãe... — ela estava
magoada, sem entender porque a mãe parecia não querer ficar com ela após
tanto tempo afastadas. Suas
palavras foram interrompidas pela chegada de uma mulher, de feições
suaves. Apesar de parecer bem jovem, seus cabelos eram totalmente brancos,
e estavam cuidadosamente arrumados num coque. Sua expressão era doce, mas
impunha respeito. —
Veja porque você está aqui. Era
isso o que você tinha que ver. — disse a mãe. Nesse
momento, a mulher, cujos trajes eram compostos por um longo vestido
azul-marinho e um manto igualmente azul, repleto de estrelas prateadas,
esboçou um movimento, como se traçasse um semicírculo no ar. A ação
deixava um rastro semelhante a uma poeira dourada, e todos foram tomados
por uma sensação de plenitude, como se aquela mulher carregasse consigo a
magia do universo nas mãos. Tudo agora fazia sentido.
Então,
ela acordou. Sabia que não se tratava apenas de um sonho. Ainda podia
ouvir o som do tecido do manto da mulher que a todos encantara.
Tempos
depois, folheando um livro, reconheceu-a: era uma mestra ascensionada,
chamada Rowena, responsável pelo desapego e pelo perdão. Sua vibração era
a chama rosa. Depois daquele dia, a percepção acerca da morte da mãe transformou-se por completo: agora conseguia aceitar, e a saudade, embora por vezes ainda trouxesse lágrimas, era sempre acompanhada de um sorriso. Agradecia a oportunidade de ter sido sua filha, e enternecia-se com lembranças boas, em nada parecidas com a revolta e com a tristeza de antes. Tinha agora a certeza de que ela estava ali, bem próxima, na sala contígua, assistindo, feliz, a cada uma de suas conquistas.
©eliége jachini
1 poema, 2
contos o
nu foice foi-se face faceira fazia amor restou
retrato tsunami Resolvi
brincar com ele. Tirei a parte superior do biquíni e me refestelei na proa
do pequeno iate, afinal sou milionária. Dizem também que perua e galinha,
me orgulho disso. Veja o meu novo marinheiro, segura o timão como se
punhetasse o pinto excitado, o polegar insistindo em esfregar ritmadamente
a manete. Logo vou saber, preciso brincar um pouco, soltar meus instintos
cafajestes, saborear o prazer do prazer que virá, a delícia da manipulação
antes do abate e a antecipação do sabor sanguinário do cru. Adoro essas
ilhotas, falo meu inglês, arranho o meu francês e adivinho coisas nos
dialetos, só pelo som. Tenho ouvido musical, poderia ter sido uma boa
instrumentista, cantarolo bem, minha voz de contralto, quase rouca, excita
os homens. Os negros daqui mexem com o âmago, veja só meu marinheiro. A
pele lisa, como depilada, refulge ao sol, emana tesão, exala sexo. Na
bermuda antevejo o volume, ele extasiado mirando meus peitos, minha
cintura, meus quadris. Imagino as peles se juntando, eu tão alva. Noto que
ele nota o arrepio que brota em minha tez como bolhas ferventes. Viro de
bruços, não que isso me acalme a vontade, muito pelo contrário. O olhar
dele já me perfura, ainda não me conhece, é a primeira viagem, só ouviu
falar, imagino que ele imagina o que estou imaginando. Levanto e me
esgueiro lentamente para a cabine, movimentos de serpente se enrolando
para o bote. "Ai!". Grito, como se meu dedo houvesse colhido uma farpa no
balaústre. Chupo meu indicador, finjo um sangramento. Ele corta o motor,
vem em meu auxílio, o barco à deriva. Num átimo, tiro o dedo da minha boca
e enfio na dele. Surpreso, o chupa e beija, me estico na ponta dos pés e o
agarro pela nuca. As bocas se encostam trocando lavas, as mãos fortes me
apertam a cintura, o volume na bermuda infla, o mundo gira de prazer. Me
premio a cada avanço, o coloco lentamente nu. Manipulo meu novo brinquedo
até, finalmente, tê-lo todo em mim. "Mon Dieu", grita ele no clímax,
apoiado nas mãos, olhos arregalados no horizonte. Tambores celestiais
rufam cada vez mais alto, explodem num rugido ensurdecedor, enquanto
deliro e gozo. o
psichê Entro
na cabana e as rajadas do vento da montanha batem a porta com violência.
Móveis
rústicos se espalham pelo aposento estranhamente mobiliado: a cama
generosa com seus criados-mudos, a mesinha onde deponho a mochila, duas
cadeiras ríspidas que fazem a de balanço estofada parecer paradisíaca, um
par de abajures tortos e mal-acomodados nas mesas de canto.
Destaca-se
— mais destoando do que decorando — um antigo toucador com gavetinhas e
enorme espelho que clama por presença feminina a empetecar-se, aboletada
na banquetinha estofada de rosa. Jogo
o casaco ali mesmo ao chão e solto meus cabelos. Sozinha, mal-vestida e
desleixada, empurrada pelo instinto, me vejo sentada ao psichê.
Ao
mirar minha sovada figura, vislumbro-o pelo espelho, reclinado na cama.
Cabelos morenos, a camisa alva, entreaberta, tentando ocultar as lufadas
de charme e sensualidade que do peito fartamente encabelado emanam.
Não
ouso me voltar. O desejo é tanto que entrefecho os olhos lentamente.
Percebo-o a sorrir como se mirasse uma princesa. Sorri e acena, o assobio
do vento agora soa como orquestra afinada a abrilhantar uma noite na corte
real. Ele
acena novamente e se levanta — o sorriso ainda mais largo —, vindo
serenamente em minha direção. Chega, toca meus ombros, me afasta os
cabelos e me beija a nuca. Sinto-lhe o calor, perfuma-me o hálito,
excita-me a respiração entrecortada. Me empalma os seios, belisca os
mamilos enrijecidos e empinados, murmura palavras que me espicaçam o
tesão. Flutuo na paixão envolvente. As mãos descem, rasgando a vereda que
me leva ao gozo. O tempo se alonga, tremem pernas, balbucio
prazer. Abro os olhos lentamente, mas ele se foi. Meus soluços brotam, sincopados, fazendo coro com o vento rude e violento que não cessa de uivar lá fora.
2 contos retrato em v e f E vêm lá os franguinhos-d'água afoitos, farelentos, foliar à volta da minha avó. Viuvinhas e bem-te-vis aos fuxicos, no fresco da varanda, onde o avô vai e vem, vencido pelas franjas do flamboyant. E onde vadia o viralata Fuleiro, valente defensor dos infantes.
E vêm o Vitório da farmácia, a velha Viridiana, o Fausto, filho do Faustino, fiscal da ferrovia, e o vizinho dele, seu Valdir. Fátima, desvairada, vem. E Fernanda, avessa rival. Fininho, o vagabundo, Vieira, o subversivo, o violeiro Fiapo, Vital, vil e venal, Venâncio-visgo, o fiel.
E bem-vinda, perfume de flor, vem Virgínia, a favorita.
No fim, só as fotos me visitam.
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