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       edição 38 | dezembro de 
      2009 
 
 Clara e eu tínhamos a mesma idade e dávamos 
      aula na mesma escola quando nos conhecemos. Uma escola gigantesca, 
      milhares de alunos. Nos esfalfávamos de uma sala para outra, atrás do 
      minguado salário. Giz, gritaria, aluno pra fora da sala, montanhas de 
      prova pra corrigir. Assim que cheguei ao colégio tornamo-nos 
      amigas. Parecíamos as únicas sobreviventes naquele mundo de gente à espera 
      da aposentadoria, da pizza do domingo à noite, da morte. A turma da 
      pizzaria, como os chamávamos. Nós duas, ao contrário, aos fins de semana 
      campeávamos pelas estepes solitárias da cidade. "Quinhentas pessoas por 
      metro quadrado e nós sem ninguém". Mas entre a pizzaria e a ronda 
      solitária, sempre escolhíamos a alternativa B de batom, beijo, boca vazia. 
      Já entre os problemáticos lobos que encontrávamos e os pacatos colegas de 
      serviço, marcávamos a alternativa A de amor, aflição, 
      ansiedade. Não me lembro quando me percebi apaixonada 
      por Clara, mas a constatação deu-se sem susto. Na minha vida a paixão 
      sempre irrompe de golfada e não costumo impedir-lhe o fluxo. Abro as 
      comportas e deixo encher as cisternas. O difícil é fechar as torneiras 
      depois da inundação. Mas entre a seca e a inundação, a resposta correta é 
      a alternativa C de casos complicadíssimos. Certa manhã deixei um bilhete na caixa de 
      correspondência de Clara: "Acho que nossa relação dá o maior pé. Te 
      quero. Assinale a alternativa correta: a) esqueça essa 
      história; b) me esqueça; c) I 
      love you too; d) deixa rolar, o que tiver que ser 
      será". Temi que minha declaração pudesse chocá-la, 
      mas não, ela sorriu ruborizada e foi tomar café. Ao toque do segundo sinal 
      saí correndo e entrei na primeira sala que encontrei aberta. Dei a melhor 
      aula que já se teve notícia no sistema solar: os desertos floriam, as 
      geleiras pegavam fogo, os oceanos estavam de novos cristalinos. A 
      devastação terminara. Ao final do período, quando fui guardar o 
      avental no armário, vi ali um minúsculo papelucho que rapidamente coloquei 
      dentro da bolsa. Eu o leria em casa, depois da 
vodca. Resposta absolutamente certa. No dia 
      seguinte, enviei-lhe a questão número dois: "Venha jantar comigo esta noite. Tomaremos 
      vinho e morreremos de rir falando da vida alheia. Assinale a alternativa 
      correta: a) convite aceito, às oito estarei 
      chegando; b) hoje não posso, talvez outro 
      dia; c) não quero; d) deixa rolar, o que tiver que ser 
      será". Para minha alegria, a resposta estava certa 
      de novo. No dia seguinte enviei-lhe a terceira. "Assinale a alternativa 
      correta: a) isto é um sonho e já vai 
      passar; b) isto não é um sonho, mas já vai 
      passar; c) isto não vai passar; d) deixa rolar o que tiver que ser 
      será"; Não erra uma, a danada! Estávamos na mesa de um bar quando rabisquei 
      a próxima: "Comprei um cd da Cássia Eller para ouvirmos 
      juntas. Assinale a alternativa correta: a) excelente ideia, pode pedir a 
      conta; b) não posso, tenho de acordar às 
      sete; c) detesto a Cássia 
      Eller; d) deixa rolar o que tiver que ser 
      será". Resposta absolutamente certa. Celebrávamos 
      antecipadamente a colheita que teríamos no equinócio da primavera, quando 
      o eixo da terra estiver enfim rolado até o limite máximo de aproximação 
      com o sol; os frutos seriam saborosíssimos tínhamos certeza. Nunca tive 
      aluna tão aplicada em vinte anos de magistério. Hoje, depois de tanto tempo, eu lhe passo a 
      questão de número 826 num guardanapo de papel: "Assinale a alternativa 
      correta: a) atum; b) muzzarela; c) gorgonzola com catupiry; d) 
      deixa rolar, o que tiver que ser será". 
 
 Ivana Arruda Leite (Araçatuba/SP, 1951). Publicou Histórias da mulher do fim do século (contos, Editora Hacker, 1997), Falo de mulher (contos, Ateliê Editorial, 2002), Confidencial — anotações secretas de uma adolescente (juvenil, Editora 34, 2002), Eu te darei o céu - e outras promessas dos anos 60 (romance, Editora 34, 2004), Ao homem que não me quis (contos, Editora Agir, 2005, finalista do Prêmio Jabuti, em 2006), Hotel Novo Mundo (romance, Editora 34, 2009). Participou, dentre várias, das antologias Geração 90: os transgressores (Editora Boitempo, 2002), Ficções fraternas (Editora Record, 2003), Antologia M(ai)S Sadomasoquista da literatura brasileira. Org. Antonio Vicente Seraphim Pietroforte e Glauco Mattoso (Aix Editorial, 2008), Blablablogue. Org. Nelson de Oliveira (Editora Terracota, 2009). Escreve o Doidivana. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 Pink tinha o salão sempre lotado. 
      Sobrancelha, alisamento e escova eram suas especialidades. A cada mês ela 
      própria desfilava um visual diferente. A propaganda é a alma do negócio, 
      meu bem. Hoje Pink era loira, franja repicada e barba por fazer. Hoje é 
      domingo, dia decisivo do campeonato municipal, quando Pink tira o esmalte 
      e entra  Hoje também é o dia mais esperado da vida de 
      Pink. Ela ainda não sabe, mas o namorado, cinco anos mais novo, vai pedir 
      sua mão  
 
 
 Milena de Almeida (Nepomuceno/MG, 1980). Jornalista e editora da Mininas, publicação de bolso — 10 x 10cm — de literatura e artes visuais. Publicou na web Da gastrite e da ira, seu livro de estreia. Clique aqui e leia. 
 
 
 
 » Imagens 
 Juca Filho (José Fagundes Filho). Carioca, roteirista, poeta, músico, fotógrafo, "bicho" de criação. Como compositor, em 20 anos, juntou mais de 80 músicas gravadas, jingles, trilhas para publicidade, teatro, curtas. Como autor e roteirista, são quatro livros e quase 15 anos de textos em programas, principalmente de humor, como "Sai de Baixo", "A Grande Família", "Casseta & Planeta", "Sob Nova Direção", "Toma Lá Dá Cá", "Carga Pesada". Como fotógrafo, tem fotos publicadas no Brasil e no exterior, em livros, revistas e sites, e quatro exposições coletivas. Um amador dedicado à arte da escrita com a luz, somando sua sensibilidade ao que aprende observando e convivendo com os mestres, sempre. "Uma foto vale por mil palavras, mas diga isso sem usar uma palavra". Millôr 
 
 
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