edição 3
| dezembro de 2005
8 poemas (co)ração cachorra &
carente procura: pessoa que
alimente anymais dia & noite ciclo
não demora,
solilóquio
(quis)era
uma vez...
*princesa Aurora: a bela adormecida ausência o sol se
nega a sair e não
venta há dias fico
à sombra mofando
idéias úmidas e desculpas
idem penduradas no cabide break-even-point mesmo o que pulsa lento,
lento... eu
sou há
braços vulto
as aleluias
Tudo na vida, aleluias. As criaturas misturadas, metidas barro a dentro, populosas, zumbideiras. De mais de um tipo, que é só olhar: com asas, e rasteiras — andadeiras, rés do chão. E algumas diferentes fôrmas. A dos reprodutores, gordos, principais. E a dos secos soldados, de crânios blindados, ou, secos também, montões e montões operários. Habitam a terra há milhares de anos. Para a comunicação
dos indivíduos, lances sutis: mensagens químicas, gotas
hormonais, boca a boca. Depois, pó. Despedem um dia as asas, não-duráveis, e caem de si, depostos, rastejantes, retornados ao chão. Das altitudes da memória, têm vontades de calor, e se aninham — com os fortes abdômens encaixados. Dessa lembrança de asas em uns, que é só vontade em outros, explodem outras criaturas, misturadas, metidas barro a dentro, zumbideiras. Há mais, muito mais, dos sem-asa, subterrâneos, de solo, as legiões dos que se lambem, de si pra si. Esfaimados, famintos, menos voam, mais varam — até o concreto — por alimento. Embrenhados comendo, e sempre magros. Ultrapassam barreiras internacionais, devorando baobás, acácias, secóias, seringueiras, carvalhos, buritis, amendoeiras, fotografias, capim, mato molhado, pelicanos, bibliotecas alexandrinas, bandeiras, cipós, folhas de qualquer espécie, pontes, palafitas, a cama e a mesa posta para o jantar, prédios históricos, obras de arte, maços e maços de notas frias, carrancas, embarcações, a namoradeira da bisavó, o banco da praça da matriz, a matriz e a filial. Não param nunca de comer. E sempre magros. O que resta do mundo é um fino pó de tudo, em montinhos, pelos cantos. Não é o mundo destruído, pulverizado em gesto grande de fúria. Não. Esses montinhos de pó são, tão somente, os resíduos fecais das criaturas. O lixo. As aleluias.
os cinco sentidos de sara -
Cochilei nada. Fechei os olhos. Dá-me nos nervos essa água pingando
da torneira. - Coisa parecida aconteceu com minha
amiga Sara. Parecida, mas diferente. Pinc,
pinc, pinc... O
ruído voltou e não é uma gota repicando no esmalte da banheira, embora
a tanto se assemelhe. O ruído vem das entranhas de Sara. Indolor, persistente,
repartindo o tempo em quadrantes regulares, ele atormenta Sara com seu
monocórdio pinc, pinc. Dois anos já dura a excrescência. Dois anos,
doze médicos e nenhum diagnóstico decente. Enquanto isso, tome tranqüilizante,
calmante, chá de rabo de elefante. Tome novena, macumba, simpatia. E
tome ruído que não cessa, insônia que não cede. Duas
da manhã. Sara desliga a tevê, toma um cálice de cherry, receita para
sono roubada a um romance inglês. Toma outro cálice e outro e mais um.
O torpor alcoólico atua como caixa de ressonância e aumenta a maldita
bulha. Pinc!
pinc! pinc! Sara
fica bêbada. Deitada no carpete, aspira poeira, delira, levanta, quer
vomitar. Procura o banheiro. Diferente o banheiro hoje... Mais largo
que o de ontem, mais comprido, labiríntico. Aço rotativo. Azulejos elásticos.
Sara se olha no espelho e vê a máscara facial decomposta em milhares
de esquírolas amebóides. Há necessidade de um grito de pânico, agora,
nessa linha, mas a voz não sai ou, se sai, Sara não sabe, ou, se sabe,
não ouve, pois suas orelhas, exasperadas pela agonia, acabam de abandonar
o mundo exterior e avançam cabeça adentro em busca do ruído. Ultrapassando
os argumentos anatômicos, os conceitos da razão, os obstáculos naturais
da lógica, as orelhas de Sara vão murchando, penetrando no crânio, rebentando
os tímpanos e desabrochando numa mixórdia de sons. Na trilha do pinc,
as orelhas seguem a pista de cada letra, de cada pê, cada i, os enes
e os cês, as reticências e exclamações, até identificarem afinal a fonte
emissora do ruído: um tumor abstrato, seqüela de uma velha paixão mal
resolvida. Pausa para euforia. Curta, pois o dilema persiste. Mesmo
recorrendo a todos os recursos da medicina moderna, a todas as bruxarias
do universo ou a um milhão de novos amores, não há como extirpar o tumor
sem causar danos fatais ao ego. O ruído, pinc! pinc! pulsa com redobrada
ironia, debochando da impotência de Sara. Tensa, angustiada, ela limpa
da boca os restos de vômito, as sobras de incredulidade. De repente,
pelo espelho, percebe a ocorrência de um novo milagre. Fendas minúsculas
abrem-se na epiderme das mãos, deslocando as células, fazendo aflorar
entre os vãos uma teia de glândulas, músculos e vasos, num refluxo doido
que avessa completamente a pele e atira dez dedos alucinados a tatear
dentro do corpo em busca do tumor. Manobra perigosa, de altíssimo risco,
pois, cegos, os dedos acabarão destroçando o organismo inteiro. É vital
provê-los com algum tipo de orientação. No limiar do desespero, brilha
uma idéia. Sara força os olhos a iniciarem um movimento pendular, deixa
o balanço tomar impulso e ganhar vida própria, atingindo um nível crescente
de aceleração, para lá, para cá, paraláparacá, pralápracá, pracatá,
pracatá!!!... A velocidade vertiginosa rompe as malhas óticas e, quando
cessa o movimento inercial, os globos oculares remetem furiosos contra
os feixes de nervos internos, explodindo em golfadas de gelatina. Mas
as ligações são refeitas com rapidez, pouco se perde da baba e Sara
começa a vislumbrar suas sombras interiores. Suspira fundo, procurando
relaxar antes da fase seguinte. Através dos olhos e ouvidos invaginados,
tentará dirigir os dedos e arrancar o tumor (como sempre, a fé espanta
a razão e sem a razão, tudo é admissível). Entretanto, espicaçada, a
natureza destrava suas armadilhas e coloca ao alcance dos pulmões uma
pitada do pó aspirado no carpete. O reflexo é instantâneo: uuuaaatchiiim!!!...
Com o impacto de tão formidável espirro, o septo nasal implode e a cartilagem
afunda, expelindo blocos amarelos de muco. Todo o conjunto vai parar
nas proximidades da adenóide e, como os nervos olfativos acompanham
a trajetória do nariz, Sara começa a sentir estranhos odores. Estranhos,
mas atrativos. Dão água na boca. Atiçam o paladar. Sugestionada, a língua
rebenta o freio, vira sobre o próprio dorso e vai explorar os novos
estímulos, lambendo garganta abaixo, arrastando atrás de si duas carreiras
afiadas de dentes. Sara sente a primeira mordida. Nhac!
Grunch, grunch, grunch... Hum,
nada mal. Gulosa, experimenta mais um pedaço. Unzinho só, não há de
fazer falta. Nhac! E vai se comendo. Grunch, grunch... Excelentes essas
amígdalas. Nhac! Divino esse rim. Nhoc! O pâncreas. O coração. O útero.
As tripas. Terminada a carne, chupa o caldinho dos ossos. Slurp! Rói
os ossos. Rect-rect. Põe um dente a roer o outro. Ré-ré-rect... Sara
acaba comendo-se toda. Sobram, por indigestos, o band-aid do calcanhar,
o esmalte das unhas, um piercing metálico. Quatro
da manhã. Em ausência total, Sara acomoda no piercing o espírito apaziguado
e passa a aguardar a oxidação do metal. FIM -
Ei, um momento! E o ruído? Você esqueceu do ruído! - Não esqueci. Ruídos são como deuses, crias de suas crias. Sem crente, não há credo.
orkney Arquipélago,
extremo norte. A praia deserta. Light summer. De suéter e botas
de caminhada. Um piquenique sobre as pedras, sanduíches. Focas tomam
sol na costa. De vez em quando se movem, levantam a cabeça quando escutam
ruídos. Observava
pássaros, quieta. As asas bicolores dos puffins, voavam em bando. Gaivotas.
O desenho de um navio ao longe. Por
ali passaram crusaders e vikings, templários. Agora a solidão, o silêncio.
Longe de guerras e bárbaros, apenas ruínas. Neolíticas. Rochas.
A quietude do mar, sem ondas.
paula Está
amarelado, sujo, e a moldura acobreada perdeu o brilho. Foi pendurado no teto para que não notássemos
a rachadura em seu canto direito. Parece ter mais ou menos um metro
e meio de comprimento. Pelo menos, consigo enxergar Rodolfo dos pés
à cabeça. Como estou por baixo, não enxergo meu corpo, vejo apenas o meu rosto com restos de maquiagem,
os cabelos desalinhados e minhas unhas cravadas nas costas dele. Meu
caso com Rodolfo começou há um ano. Sou professora de Direito e ele,
meu aluno. Rodolfo é noivo de uma menina, quinze anos mais nova do que
eu, conhecida na universidade por tentar o suicídio mais de uma vez.
Rodolfo ama a sua noiva Paula e eu procuro não questioná-lo. Nos
vemos duas vezes por semana, na segunda e na quarta-feira, enquanto
Paula está na academia. Depois que transamos, Rodolfo vai buscá-la.
Eu pego um táxi pra casa, pois ele não pode se atrasar. Caso
Paula tenha de estudar com as amigas ou de visitar a avó que mora no
interior, nos vemos também nos finais de semana. Enquanto
estamos juntos, Rodolfo não desgruda os olhos do relógio e do celular.
Celular. Relógio. Relógio. Celular. Teve uma vez que ele estava realmente
muito cansado e pegou no sono. Atrasei o relógio em meia hora. Desliguei
o seu celular. Paula foi
parar no hospital, crise nervosa. Rodolfo nunca mais fechou os olhos. Eu
conhecia Paula apenas de vista. Fiquei imaginando como ela teria conseguido
o meu endereço. A conversa foi rápida: ela estava pensando em mudar
a rotina da academia para terças e quintas e queria me consultar. Por
mim, tudo bem, pois fiquei com a quarta-feira livre para ir ao cinema.
Dia em que o preço do ingresso cai pela metade. Rodolfo
e Paula estão indo passar quinze dias no Rio de Janeiro, com a turma
da faculdade. Paula não quer prejudicar o seu condicionamento físico
e decidiu ir à academia
todos os dias, durante a semana que antecede a viagem. Finjo uma empolgação maior do que a normal na hora do clímax. Rodolfo grita de dor. Suas costas sangram. Espero que Paula aproveite o passeio.
Adriana Oliveira (1973), gaúcha, roteirista. Participou das antologias Contos da Oficina 29 (produto da Oficina de Criação Literária ministrada pelo escritor Antônio de Assis Brasil), 102 que contam e Brevíssimos (organizadas pelo escritor Charles Kiefer).
o cozimento dos suspiros Tu
és divina e graciosa. Sem dúvida. Ao passar pelo hall do prédio, me
vi no espelho num relance estudado e pude perceber perfeitamente a beleza
que ainda tenho e que faz os homens virarem a cabeça e me seguirem com
o olhar e o desejo. É sem dúvida uma beleza o que me mostra o espelho,
o que eu mostro a todos, uma beleza que tenta desesperadamente se grudar
à minha pele. É uma luta feroz, cotidiana, corpo a corpo, trincheira
a trincheira, minha beleza é uma palestina chorando filhos. Minha pele
vai perdendo o viço, perdendo, perdendo e se eu prestasse mais atenção
poderia ver os restos de minha beleza escorrendo a cada manhã, descendo
pelo ralo da pia, cada vez que lavo o rosto. Eu poderia ver, sim. Mas
evito. Tanta
coisa evito. Mesmo assim, pareço cada vez mais com esses celulares,
essas centrífugas, esses televisores, esses computadores. Ah, minha
modernidade de cristal líquido! Eu e eles e nossas quarenta, cinquenta
possibilidades, das quais só umas cinco acabam sendo usadas. E olhe
lá! Mas eu me recuso a ser guardada no fundo do armário, me agito, tenho
que achar modos de pôr em prática o maior número possível de utilidades,
e quem sabe até chegar à perfeição de usá-las todas, todas. A perfeição
é a mãe de todas as virtudes. Ou então é só a mãe, o que já é muita
coisa, coisa demais. E o resultado é que não durmo à noite com essa
angústia e sem a tomada pra desligar da parede. Nunca contarei a mim
mesma que o problema não são mais as possibilidades, o problema é que,
como qualquer eletrodoméstico de alguns anos, devo estar obsoleta. Nunca! De
manhã, não. De manhã sou leite de caixinha, anúncio de iogurte. Uma
vitalidade! O marido já foi pro trabalho, o filho mais velho já foi pra
faculdade, a caçula já foi pegar surf. Até o cachorro já foi, junto com a
filha surfista. Resta a empregada. O que fazer com a empregada? A essa
altura ninguém mais diz que é como se fosse da família. Dizer o que,
então? A luta de classes virou uma espécie de linholene, piada antiga e
saudosa. É melhor saltar esse capítulo. Viver
é saltar capítulos, não é mesmo? Já disse isso na terapia. E de qualquer
forma, todos já foram. Eu já tive mais utilidades nessa casa. Nossa!, me
repito, só me repito, me repito só. Mas com charme, com charme, é o que
conta, não é? Não sabemos pra que, mas conta. Será sinal de decrepitude,
uma daquelas doenças que vão nos desligando? Cremes, cremes, eu preciso é
de cremes. Cremes esticam, relaxam, resolvem. Meu filho está feliz com a
faculdade? Ele diz que sim. Minha filha está feliz com o surf? Ela diz que
sim. Meu marido está feliz com o trabalho? Ele diz que sim. E com o
casamento? Não pergunto mais, vou logo dizendo que sim, sim, sim. Assim
estamos todos felizes. Até o cachorro. Vamos todos abanar o rabo, somos
uma família. Mais iogurte. Mais iogurte! Droga! Quebrei a unha. É o que dá
me emocionar. Teu
mal é comentar o passado, ninguém precisa saber. Pelo menos é o que o Ney
me diz, lá do cd, uma vez por semana. O que houve entre nós dois? Ninguém
devia perguntar, não é mesmo? Tanta pergunta boa pra se fazer. Por
exemplo, que tal um proseco agora? Não, não, vamos rever os processos.
Pela milésima vez, vamos rever os processos. O
pedido da ré não se justifica, está tudo arquivado, sem direito a apelação.
Mas meretíssimo, eu sou vítima de uma injustiça, uma não, várias, dezenas,
centenas. Só há injustiças na minha vida, meretíssimo. Eu preciso voltar
atrás, refazer tudo, voltar à ativa, chega de aposentadoria, chega de
cuidar de filhos, chega de juntar dinheiro, fazer planos, fazer peeling,
fazer o que, meu Deus? O quê? A
ré está deliberadamente fazendo gênero. Caso encerrado! Quando
eu chego em casa nada me consola, você está tão... E eu que nem saio de
casa? Ninguém aqui está tão. Ninguém precisa de meus cuidados, meus
serviços, meus carinhos, nada. Tudo deu certo e acabou, pronto! Por que
não me avisaram que quando dava certo, acabava? Eu teria me esmerado
menos, não me esforçava tanto, teria cometido alguns deslizes, por que
não? Quebrar umas coisas, deixar o arroz queimar, roubar uns trabalhos
escolares de meus filhos, subornar seus professores pra que reprovassem
aqueles miseráveis inteligentezinhos. Dizer umas verdades para uns três ou
quatro chefes e perder uns quatro ou cinco empregos. Ou quem sabe
contratar um lutador de jiu-jitsu pra dar uma surra no meu marido, quebrar
um dente dele cada vez que viajasse a negócios, cada vez que fizesse
plantão, cada vez que desse uma desculpa esfarrapada pra sair com alguma
vagabunda. Pra fuder mesmo, vamos dizer, não é? São quantos? Trinta e
tantos dentes? Nunca fui boa com números nem com dentes. E hoje em dia já
tem implante. Mas não. Agüentei. Agüentar,
o que é? Uma religião, por acaso? É, deve ser, uma religião que vem de mãe
pra filha per secula e a gente, sempre um monumento tão moderno, nem
percebe que perpetua. E não agüentar, é o quê? Qual o tempo certo para o
cozimento dos suspiros? Enfim,
se a vida não segue adiante, os bingos reabriram. Vamos lá, é tão bom
acompanhar o resultado, os números, perseguir alguma vitória, o friozinho
na barriga quase chega ao ponto g. Agora sim um proseco cai bem. Mamãe,
mamãe não chore... Ah,
nada como relaxar. Vou tirar a tarde para arrumações. Arrumações são muito
boas, um santo remédio. É impressionante, tenho uma saúde de ferro. Nenhum
distúrbio hormonal, nenhum sinal de menopausa, nenhum caroço no seio. Nada
nesse pulmão, nada no outro! O clínico manda dizer que não está, o
ginecologista troca de calçada quando me vê. Eu mendigo pelas clínicas,
pelas ruas, uma ecocardiografia, pelo amor de Deus! E nada. Gente ingrata!
Individualistas! Deus, então, nem se fala, esse cretino! O jeito é
arrumar, tirar pó, empilhar. O
ciúme lançou sua flecha preta e acertou no meio exato. Ou então é a poeira
que me faz pigarrear, tossir. Essa maldita poeira. Toda vez que arrumo ela
chega e desarruma. Inferno! Vou fazer suspiros, ele gosta de suspiros. Ele
gosta de comer meus suspiros mas de noite, na cama, vive reclamando que eu
suspiro muito. De noite, na cama, eu fico pensando, faço suspiros ou não
faço suspiros? Que
destino ou maldição, manda em nós? Se eu fizer suspiros estarei dizendo
amém. Se eu não fizer suspiros estarei engolindo em seco. É difícil
decidir. Eu não quero mais decidir, pensar, atuar. Também não quero ficar
sentada à beira do caminho, olhando a banda passar, a vizinha, o síndico,
o ex-namorado, as amigas... Como passa gente! Parece até o tempo passando.
Ou será ele mesmo? Se
a lágrima é tão maldita que a pessoa mais bonita cobre o rosto. Minha avó
cantava, minha mãe cantava, lá no asilo ela cantava, elogiava "as moças",
como ela chamava e me dizia, Deodoro ia gostar de me ver aqui, feliz,
mesmo sem ele. Meu pai abandonou minha mãe quando eu e meu irmão tínhamos
três e dois anos, respectivamente. E até o fim da vida ela falava dele.
Comigo isso não vai acontecer. Vou fazer suspiros. Eu
não canto, mas em compensação tenho o estranho hábito de raciocinar por
música. A qualquer hora do dia ou da noite uma música começa a martelar
minha cabeça. Se repete, não pára. Às vezes acordo de madrugada assim.
Antes fazia de tudo pra sumir com isso. Até que percebi que é uma
mensagem. De quem?, de onde?, não faço a menor idéia. Podia fundar o
espiritismo musical. Mas agora, pelo menos, eu paro tudo que estiver
fazendo e me concentro até descobrir o que a música está me dizendo.
Amanheceu,
que surpresa, me revelava a tristeza. Na verdade já anoiteceu. Os suspiros
estão prontos. Houve algo de anormal, tua voz habitual não ouvi dizer bom
dia. Ficaram no ponto certo, com a brancura exata. Teu travesseiro vazio
provocou-me um arrepio. Hum! Provei um e ele se desmanchou na minha boca.
Acertei em cheio. Corri até o banheiro pra te encontrar, que ironia.
Ele não esqueceu a toalha, ele não esquece de nada. Nem eu. Queria tanto esquecer, mas não. Aqui, na cabeça, martelando. Ele foi embora. E eu aqui, parada, com meus suspiros. Estátua majestosa.
Alice Barreira nasceu em Barura, no Amapá, em 1968. Trabalha como enfermeira, publicou por conta própria Pequena Enciclopédia de Inutilidades (contos, 1987) e vem colaborando com alguns sites como o coralsemvozes e o vivernavespera.
resíduos Minha mãe morreu aos vinte e oito anos acometida de uma mudez aguda. Um dos piores silêncios que já baixou sobre a minha família. Desses que a palavra fica presa dentro e se multiplica agilmente. Assim como se um pensamento descritivo minucioso. Eu via isso quando ela penteava o cabelo, aquele olho vítreo pro espelho, era a doença. Eu. Meu olho via o olho dela. É um sinal que a doença dá. Principalmente nesses momentos de início. É uma doencinha muito danada, essa. Afeta muito as mulheres da minha família. E não é loucura. Louca, mesmo, teve uma minha tia avó chamada Joana. Mas Joana falava muito. Os homens diziam que era ela a desvairada. Aceitou bem o diagnóstico. Tomou veneno e, antes de morrer, urinou-se na sala grande da casa vomitando impropérios. O demônio da palavra a habitava. Minha mãe começou com os silêncios dela, eu tinha oito anos. Os fios de cabelo que ficavam no pente, tristeza infinita em cada gesto. Mínimos. Ínfimos. Olhava. As mãos de dedos longos juntando cada sobra de existência. Os fios de cabelo quando se morre ainda permanecem. A prova inorgânica. Minha mãe tinha o cabelo longo e os olhos tristes e distantes. Era já a doença. Olho pensante. Um dia ela me deu um caderno com capa de flores. Ali, decidi. O que a doença deixava escapar, eu juntava. Teve uma manhã, me arrumando pra escola, ela disse: "estudo é uma coisa muito importante pra pessoa". Eu sorri transbordante da figurinha para a coleção. Escrevi. Letras minhas. O remédio bom da palavra saindo dela. Cura. Minha mãe não falava nada que não significasse. Meu pai era diferente. "Cuidado o carro"; "Olhe de um lado e outro". Meu pai sempre foi um homem matemático; pensava muito em ficar rico. Má temática. Esquecia-se dos outros nessa idéia infame. E mesmo porque matemática deste modo cru, mulher desfaz. Minha vó, que também quando decidiu silenciar enganou todo mundo, matou-se no devagar do secreto, entendia muito bem contar luas e adivinhar ocultos mistérios. Dela anotei: 'a língua é o chicote do corpo'. Talvez pensasse em tia Joana, a desvairada. Porque mulher gosta muito da palavra. E quando falta, a doença chega. Sorrateira. Sedutora. Eu sei que há muitas maneiras de se pegar essa doença. Ainda mais que as mulheres da minha família têm muita facilidade para o silêncio. É um descuido, e pronto! começam a parar olho demais numa coisa só, boca cerrada, minimalismos. A última filha que a minha mãe teve já veio com a doença de nascença. A primeira palavra que falou foi 'não'. Minha avó chamou minha mãe ao lado. Só se olharam. Porque também, por mais que se tenha já essa coisa latente, esse silêncio aguardante, às vezes é outra palavra que um diz pra aquela pessoa e já finca raiz a mudez absurda. A palavra que não diz. Não adiantava nada meu pai falar. Trazer as coisas da rua, do mundo, grugurejar notícias. O silêncio da doença não aceita forma alguma palavra sem peso. Eu sei. Pois aquele dia mesmo. Eu ali, tanta espera o coração. Ouvi a voz. Aguardei. Atardescia sinfonicamente. Não era? Lembras? Eu e tu. Tantas outras vezes. Me ouves, agora? Pois aquela tarde tão grande e pronta pra sustentar a exata palavra. Por que não a disseste? É impossível às mulheres da minha família suportar a falta da palavra. Veio com uma força estúpida: o sintoma. Espalhou-se liquidamente o silêncio rasgante dentro de mim. Foi por esse tempo, meus olhos desistiram de ti; meus braços desistiram de ti. Meu corpo todo adoeceu da ausência de teu gesto. Talvez aqui dentro há muito tempo venha eu tentando entender o início desse meu esquecimento de vontade. São de uma inutilidade tremenda as novidades que me trazes do mundo. A estúpida palavra pronunciada fisicamente. As mulheres de minha família sofrem do mal da palavra. Não há repouso em tua alma às coisas que eu digo. Tua palavra não me atinge. Minha mãe morreu aos vinte e oito anos de idade acometida de um silêncio absurdo. Somos, tu e eu, inimigos muito íntimos. Meu olho no espelho vê.
Assionara Souza nasceu em Caicó (RN), em 1969. Mora em Curitiba. Leciona Literatura Brasileira e Produção Textual. É mestranda em Estudos Literários pela UFPR e estuda trânsitos entre literatura e artes plásticas na obra de Osman Lins. Em 2005, publicou o livro de contos Cecília Não é um Cachimbo, pela editora 7Letras.
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