edição 3 | dezembro de 2005
solidão

 

8 poemas 
valéria tarelho

(co)ração

 

cachorra & carente

procura:

 

pessoa que alimente

anymais

dia & noite

 

 

 

 

ciclo


o tempo estende-se,
dias a fio,
contíguos,
que perduram
- pendentes -
pelas barras do destino.

 

não demora,
o tempo exíguo,
recolhido,
será passado
a ferro brando.


[enquanto uma nova era
de horas aguadas,
na máquina do tempo,

espera...]

 

 

 

 

solilóquio

que falta me faz
um ocaso
com pano de fundo
ouro e púrpura
um esvair raso
em cenário
espelho e prata
faltam adereços
branco-espuma
e um denso manto
envolvendo o palco
onde, à toa, atuo

no fundo
falta alga no contexto
alguma água salgada
refletindo um doce texto

e nessa peça vaga
falta a sensação
[insana]
de mergulhar em brasa

falta
a tua ação
em cena

 

 

 

 

(quis)era uma vez...

notívaga tecelã de auroras,
teço manhãs
entrelaçando sonhos
nos vãos dos dedos.
tranço agoras que urgem,
urdindo horas impacientes
nas tramas de prementes
amanheceres.
enlaço, com temperança,
tênues fios de esperança.
desfaço nós,
disfarço o gris,
bordando, no brocado,
sóis dourados
e céus azuis:
matizes que, porventura, surjam,
entre os novelos
de minha vida emaranhada,
entremeada de estrelas frias
e luas vazias.

noturnal, refugo a luz do dia,
por sabê-la fugidia
e sigo, anoi tecida,
(desa)fiando auroras,
cruzando pontos
com a linha desse meu des(a)tino
de Aurora*, arte(in)sã(na),
sonhadora
e só.

 

 

*princesa Aurora: a bela adormecida

 

 

 

 

ausência

  

o sol se nega a sair

e não venta

 

há dias fico à sombra

mofando idéias úmidas

e desculpas idem

penduradas no cabide

 

 

 

 

break-even-point

 

mesmo o que pulsa
um dia cansa
desanda descompassa
pausa & pára

o break
nem sempre causa dano
nem sempre a quebra
repulsa
simplesmente acaba
vira nada disso
finda sem lucro
ou prejuízo

muda o disco
como se nunca
um mísero

 

 

 

 

lento, lento...

 

eu sou
aquela
garota
do adeus
debruçada
na janela

à espera...

eu sou
aquela
moça
- sem visão -
mirando
o horizonte
do nada
do vão
da vidraça

há espera

eu sou
aquela
senhora
- sem mãos -
íntima
de quem
não fui
tricotando
a hora
última

[á spera]

espreguiço
o sono
lento nó
das eras

à janela
sou
todas elas:
pássaro

aceno
ao vento
[ameno]
enlaço
o tempo
[vasto]
vôo

há braços

 

 

 

 

vulto

palavra,
não estou sozinha.
essa minha clausura
admite companhia
: poesia que me povoa,
verso que apavora,
fantasma, que é Pessoa.

 

 

as aleluias
verônica couto

Tudo na vida, aleluias. As criaturas misturadas, metidas barro a dentro, populosas, zumbideiras. De mais de um tipo, que é só olhar: com asas, e rasteiras — andadeiras, rés do chão. E algumas diferentes fôrmas. A dos reprodutores, gordos, principais. E a dos secos soldados, de crânios blindados, ou, secos também, montões e montões operários. Habitam a terra há milhares de anos.

Para a comunicação dos indivíduos, lances sutis: mensagens químicas, gotas hormonais, boca a boca.

Cada um, sozinho, é todo cabeça, peito, estômago. Uns mais, outros menos. Nem sempre nessa ordem, quase sempre, desordem. De repente, com cheiro de chuva, luz de entardecer, levantam aos milhões, em revoada de festa. Aleluias. Mas só os de largos abdômens, peso a favor, que ajuda a voar. E patinam o ar nas alturas, atraídos, provocados, incitados pela luz, clareados e aquecidos. Aleluias.

Depois, pó. Despedem um dia as asas, não-duráveis, e caem de si, depostos, rastejantes, retornados ao chão. Das altitudes da memória, têm vontades de calor, e se aninham — com os fortes abdômens encaixados. Dessa lembrança de asas em uns, que é só vontade em outros, explodem outras criaturas, misturadas, metidas barro a dentro, zumbideiras. Há mais, muito mais, dos sem-asa, subterrâneos, de solo, as legiões dos que se lambem, de si pra si. Esfaimados, famintos, menos voam, mais varam — até o concreto — por alimento. Embrenhados comendo, e sempre magros. Ultrapassam barreiras internacionais, devorando baobás, acácias, secóias, seringueiras, carvalhos, buritis, amendoeiras, fotografias, capim, mato molhado, pelicanos, bibliotecas alexandrinas, bandeiras, cipós, folhas de qualquer espécie, pontes, palafitas, a cama e a mesa posta para o jantar, prédios históricos, obras de arte, maços e maços de notas frias, carrancas, embarcações, a namoradeira da bisavó, o banco da praça da matriz, a matriz e a filial. Não param nunca de comer. E sempre magros.

O que resta do mundo é um fino pó de tudo, em montinhos, pelos cantos. Não é o mundo destruído, pulverizado em gesto grande de fúria. Não. Esses montinhos de pó são, tão somente, os resíduos fecais das criaturas. O lixo. As aleluias.



 

os cinco sentidos de sara
virgínia vieira

- Cochilei nada. Fechei os olhos. Dá-me nos nervos essa água pingando da torneira.

-  Coisa parecida aconteceu com minha amiga Sara. Parecida, mas diferente.

 

Pinc, pinc, pinc... O ruído voltou e não é uma gota repicando no esmalte da banheira, embora a tanto se assemelhe. O ruído vem das entranhas de Sara. Indolor, persistente, repartindo o tempo em quadrantes regulares, ele atormenta Sara com seu monocórdio pinc, pinc. Dois anos já dura a excrescência. Dois anos, doze médicos e nenhum diagnóstico decente. Enquanto isso, tome tranqüilizante, calmante, chá de rabo de elefante. Tome novena, macumba, simpatia. E tome ruído que não cessa, insônia que não cede.

 

Duas da manhã. Sara desliga a tevê, toma um cálice de cherry, receita para sono roubada a um romance inglês. Toma outro cálice e outro e mais um. O torpor alcoólico atua como caixa de ressonância e aumenta a maldita bulha. Pinc! pinc! pinc! Sara fica bêbada. Deitada no carpete, aspira poeira, delira, levanta, quer vomitar. Procura o banheiro. Diferente o banheiro hoje... Mais largo que o de ontem, mais comprido, labiríntico. Aço rotativo. Azulejos elásticos. Sara se olha no espelho e vê a máscara facial decomposta em milhares de esquírolas amebóides. Há necessidade de um grito de pânico, agora, nessa linha, mas a voz não sai ou, se sai, Sara não sabe, ou, se sabe, não ouve, pois suas orelhas, exasperadas pela agonia, acabam de abandonar o mundo exterior e avançam cabeça adentro em busca do ruído.

 

Ultrapassando os argumentos anatômicos, os conceitos da razão, os obstáculos naturais da lógica, as orelhas de Sara vão murchando, penetrando no crânio, rebentando os tímpanos e desabrochando numa mixórdia de sons. Na trilha do pinc, as orelhas seguem a pista de cada letra, de cada pê, cada i, os enes e os cês, as reticências e exclamações, até identificarem afinal a fonte emissora do ruído: um tumor abstrato, seqüela de uma velha paixão mal resolvida. Pausa para euforia. Curta, pois o dilema persiste. Mesmo recorrendo a todos os recursos da medicina moderna, a todas as bruxarias do universo ou a um milhão de novos amores, não há como extirpar o tumor sem causar danos fatais ao ego. O ruído, pinc! pinc! pulsa com redobrada ironia, debochando da impotência de Sara. Tensa, angustiada, ela limpa da boca os restos de vômito, as sobras de incredulidade. De repente, pelo espelho, percebe a ocorrência de um novo milagre. Fendas minúsculas abrem-se na epiderme das mãos, deslocando as células, fazendo aflorar entre os vãos uma teia de glândulas, músculos e vasos, num refluxo doido que avessa completamente a pele e atira dez dedos alucinados a tatear dentro do corpo em busca do tumor. Manobra perigosa, de altíssimo risco, pois, cegos, os dedos acabarão destroçando o organismo inteiro. É vital provê-los com algum tipo de orientação. No limiar do desespero, brilha uma idéia. Sara força os olhos a iniciarem um movimento pendular, deixa o balanço tomar impulso e ganhar vida própria, atingindo um nível crescente de aceleração, para lá, para cá, paraláparacá, pralápracá, pracatá, pracatá!!!... A velocidade vertiginosa rompe as malhas óticas e, quando cessa o movimento inercial, os globos oculares remetem furiosos contra os feixes de nervos internos, explodindo em golfadas de gelatina. Mas as ligações são refeitas com rapidez, pouco se perde da baba e Sara começa a vislumbrar suas sombras interiores. Suspira fundo, procurando relaxar antes da fase seguinte. Através dos olhos e ouvidos invaginados, tentará dirigir os dedos e arrancar o tumor (como sempre, a fé espanta a razão e sem a razão, tudo é admissível). Entretanto, espicaçada, a natureza destrava suas armadilhas e coloca ao alcance dos pulmões uma pitada do pó aspirado no carpete. O reflexo é instantâneo: uuuaaatchiiim!!!... Com o impacto de tão formidável espirro, o septo nasal implode e a cartilagem afunda, expelindo blocos amarelos de muco. Todo o conjunto vai parar nas proximidades da adenóide e, como os nervos olfativos acompanham a trajetória do nariz, Sara começa a sentir estranhos odores. Estranhos, mas atrativos. Dão água na boca. Atiçam o paladar. Sugestionada, a língua rebenta o freio, vira sobre o próprio dorso e vai explorar os novos estímulos, lambendo garganta abaixo, arrastando atrás de si duas carreiras afiadas de dentes. Sara sente a primeira mordida. Nhac! Grunch, grunch, grunch... Hum, nada mal. Gulosa, experimenta mais um pedaço. Unzinho só, não há de fazer falta. Nhac! E vai se comendo. Grunch, grunch... Excelentes essas amígdalas. Nhac! Divino esse rim. Nhoc! O pâncreas. O coração. O útero. As tripas. Terminada a carne, chupa o caldinho dos ossos. Slurp! Rói os ossos. Rect-rect. Põe um dente a roer o outro. Ré-ré-rect... Sara acaba comendo-se toda. Sobram, por indigestos, o band-aid do calcanhar, o esmalte das unhas, um piercing metálico.

 

Quatro da manhã. Em ausência total, Sara acomoda no piercing o espírito apaziguado e passa a aguardar a oxidação do metal.

 

 

FIM

 

 

- Ei, um momento! E o ruído? Você esqueceu do ruído!

 

- Não esqueci. Ruídos são como deuses, crias de suas crias. Sem crente, não há credo.

 

 

orkney
virna teixeira

Arquipélago, extremo norte. A praia deserta. Light summer. De suéter e botas de caminhada. Um piquenique sobre as pedras, sanduíches. Focas tomam sol na costa. De vez em quando se movem, levantam a cabeça quando escutam ruídos.

Observava pássaros, quieta. As asas bicolores dos puffins, voavam em bando. Gaivotas. O desenho de um navio ao longe.

 

Por ali passaram crusaders e vikings, templários. Agora a solidão, o silêncio. Longe de guerras e bárbaros, apenas ruínas. Neolíticas. Rochas.

 

A quietude do mar, sem ondas.

 

 

paula
adriana oliveira

Está amarelado, sujo, e a moldura acobreada perdeu o brilho. Foi  pendurado no teto para que não notássemos a rachadura em seu canto direito. Parece ter mais ou menos um metro e meio de comprimento. Pelo menos, consigo enxergar Rodolfo dos pés à cabeça. Como estou por baixo, não enxergo meu corpo, vejo apenas  o meu rosto com restos de maquiagem, os cabelos desalinhados e minhas unhas cravadas nas costas dele.

 

Meu caso com Rodolfo começou há um ano. Sou professora de Direito e ele, meu aluno. Rodolfo é noivo de uma menina, quinze anos mais nova do que eu, conhecida na universidade por tentar o suicídio mais de uma vez. Rodolfo ama a sua noiva Paula e eu procuro não questioná-lo.

 

Nos vemos duas vezes por semana, na segunda e na quarta-feira, enquanto Paula está na academia. Depois que transamos, Rodolfo vai buscá-la. Eu pego um táxi pra casa, pois ele não pode se atrasar.

 

Caso Paula tenha de estudar com as amigas ou de visitar a avó que mora no interior, nos vemos também nos finais  de semana.

 

Enquanto estamos juntos, Rodolfo não desgruda os olhos do relógio e do celular. Celular. Relógio. Relógio. Celular. Teve uma vez que ele estava realmente muito cansado e pegou no sono. Atrasei o relógio em meia hora. Desliguei o seu celular.  Paula foi parar no hospital, crise nervosa. Rodolfo nunca mais fechou os olhos.

 

Eu conhecia Paula apenas de vista. Fiquei imaginando como ela teria conseguido o meu endereço. A conversa foi rápida: ela estava pensando em mudar a rotina da academia para terças e quintas e queria me consultar. Por mim, tudo bem, pois fiquei com a quarta-feira livre para ir ao cinema. Dia em que o preço do ingresso cai pela metade.

 

Rodolfo e Paula estão indo passar quinze dias no Rio de Janeiro, com a turma da faculdade. Paula não quer prejudicar o seu condicionamento físico e decidiu  ir à academia todos os dias, durante a semana que antecede a viagem.

 

Finjo uma empolgação maior do que a normal na hora do clímax. Rodolfo grita de  dor. Suas costas sangram. Espero que Paula aproveite o passeio.

 

 

 

Adriana Oliveira (1973), gaúcha, roteirista. Participou das antologias Contos da Oficina 29 (produto da Oficina de Criação Literária ministrada pelo escritor Antônio de Assis Brasil), 102 que contam e Brevíssimos (organizadas pelo escritor Charles Kiefer).

 

 

o cozimento dos suspiros 
alice barreira

Tu és divina e graciosa. Sem dúvida. Ao passar pelo hall do prédio, me vi no espelho num relance estudado e pude perceber perfeitamente a beleza que ainda tenho e que faz os homens virarem a cabeça e me seguirem com o olhar e o desejo. É sem dúvida uma beleza o que me mostra o espelho, o que eu mostro a todos, uma beleza que tenta desesperadamente se grudar à minha pele. É uma luta feroz, cotidiana, corpo a corpo, trincheira a trincheira, minha beleza é uma palestina chorando filhos. Minha pele vai perdendo o viço, perdendo, perdendo e se eu prestasse mais atenção poderia ver os restos de minha beleza escorrendo a cada manhã, descendo pelo ralo da pia, cada vez que lavo o rosto. Eu poderia ver, sim. Mas evito.

Tanta coisa evito. Mesmo assim, pareço cada vez mais com esses celulares, essas centrífugas, esses televisores, esses computadores. Ah, minha modernidade de cristal líquido! Eu e eles e nossas quarenta, cinquenta possibilidades, das quais só umas cinco acabam sendo usadas. E olhe lá! Mas eu me recuso a ser guardada no fundo do armário, me agito, tenho que achar modos de pôr em prática o maior número possível de utilidades, e quem sabe até chegar à perfeição de usá-las todas, todas. A perfeição é a mãe de todas as virtudes. Ou então é só a mãe, o que já é muita coisa, coisa demais. E o resultado é que não durmo à noite com essa angústia e sem a tomada pra desligar da parede. Nunca contarei a mim mesma que o problema não são mais as possibilidades, o problema é que, como qualquer eletrodoméstico de alguns anos, devo estar obsoleta. Nunca!

 

De manhã, não. De manhã sou leite de caixinha, anúncio de iogurte. Uma vitalidade! O marido já foi pro trabalho, o filho mais velho já foi pra faculdade, a caçula já foi pegar surf. Até o cachorro já foi, junto com a filha surfista. Resta a empregada. O que fazer com a empregada? A essa altura ninguém mais diz que é como se fosse da família. Dizer o que, então? A luta de classes virou uma espécie de linholene, piada antiga e saudosa. É melhor saltar esse capítulo.

 

Viver é saltar capítulos, não é mesmo? Já disse isso na terapia. E de qualquer forma, todos já foram. Eu já tive mais utilidades nessa casa. Nossa!, me repito, só me repito, me repito só. Mas com charme, com charme, é o que conta, não é? Não sabemos pra que, mas conta. Será sinal de decrepitude, uma daquelas doenças que vão nos desligando? Cremes, cremes, eu preciso é de cremes. Cremes esticam, relaxam, resolvem. Meu filho está feliz com a faculdade? Ele diz que sim. Minha filha está feliz com o surf? Ela diz que sim. Meu marido está feliz com o trabalho? Ele diz que sim. E com o casamento? Não pergunto mais, vou logo dizendo que sim, sim, sim. Assim estamos todos felizes. Até o cachorro. Vamos todos abanar o rabo, somos uma família. Mais iogurte. Mais iogurte! Droga! Quebrei a unha. É o que dá me emocionar.

 

Teu mal é comentar o passado, ninguém precisa saber. Pelo menos é o que o Ney me diz, lá do cd, uma vez por semana. O que houve entre nós dois? Ninguém devia perguntar, não é mesmo? Tanta pergunta boa pra se fazer. Por exemplo, que tal um proseco agora? Não, não, vamos rever os processos. Pela milésima vez, vamos rever os processos.

 

O pedido da ré não se justifica, está tudo arquivado, sem direito a apelação. Mas meretíssimo, eu sou vítima de uma injustiça, uma não, várias, dezenas, centenas. Só há injustiças na minha vida, meretíssimo. Eu preciso voltar atrás, refazer tudo, voltar à ativa, chega de aposentadoria, chega de cuidar de filhos, chega de juntar dinheiro, fazer planos, fazer peeling, fazer o que, meu Deus? O quê?

 

A ré está deliberadamente fazendo gênero. Caso encerrado! 

 

Quando eu chego em casa nada me consola, você está tão... E eu que nem saio de casa? Ninguém aqui está tão. Ninguém precisa de meus cuidados, meus serviços, meus carinhos, nada. Tudo deu certo e acabou, pronto! Por que não me avisaram que quando dava certo, acabava? Eu teria me esmerado menos, não me esforçava tanto, teria cometido alguns deslizes, por que não? Quebrar umas coisas, deixar o arroz queimar, roubar uns trabalhos escolares de meus filhos, subornar seus professores pra que reprovassem aqueles miseráveis inteligentezinhos. Dizer umas verdades para uns três ou quatro chefes e perder uns quatro ou cinco empregos. Ou quem sabe contratar um lutador de jiu-jitsu pra dar uma surra no meu marido, quebrar um dente dele cada vez que viajasse a negócios, cada vez que fizesse plantão, cada vez que desse uma desculpa esfarrapada pra sair com alguma vagabunda. Pra fuder mesmo, vamos dizer, não é? São quantos? Trinta e tantos dentes? Nunca fui boa com números nem com dentes. E hoje em dia já tem implante. Mas não. Agüentei.

 

Agüentar, o que é? Uma religião, por acaso? É, deve ser, uma religião que vem de mãe pra filha per secula e a gente, sempre um monumento tão moderno, nem percebe que perpetua. E não agüentar, é o quê? Qual o tempo certo para o cozimento dos suspiros?

 

Enfim, se a vida não segue adiante, os bingos reabriram. Vamos lá, é tão bom acompanhar o resultado, os números, perseguir alguma vitória, o friozinho na barriga quase chega ao ponto g. Agora sim um proseco cai bem. Mamãe, mamãe não chore...

 

Ah, nada como relaxar. Vou tirar a tarde para arrumações. Arrumações são muito boas, um santo remédio. É impressionante, tenho uma saúde de ferro. Nenhum distúrbio hormonal, nenhum sinal de menopausa, nenhum caroço no seio. Nada nesse pulmão, nada no outro! O clínico manda dizer que não está, o ginecologista troca de calçada quando me vê. Eu mendigo pelas clínicas, pelas ruas, uma ecocardiografia, pelo amor de Deus! E nada. Gente ingrata! Individualistas! Deus, então, nem se fala, esse cretino! O jeito é arrumar, tirar pó, empilhar.

 

O ciúme lançou sua flecha preta e acertou no meio exato. Ou então é a poeira que me faz pigarrear, tossir. Essa maldita poeira. Toda vez que arrumo ela chega e desarruma. Inferno! Vou fazer suspiros, ele gosta de suspiros. Ele gosta de comer meus suspiros mas de noite, na cama, vive reclamando que eu suspiro muito. De noite, na cama, eu fico pensando, faço suspiros ou não faço suspiros?

 

Que destino ou maldição, manda em nós? Se eu fizer suspiros estarei dizendo amém. Se eu não fizer suspiros estarei engolindo em seco. É difícil decidir. Eu não quero mais decidir, pensar, atuar. Também não quero ficar sentada à beira do caminho, olhando a banda passar, a vizinha, o síndico, o ex-namorado, as amigas... Como passa gente! Parece até o tempo passando. Ou será ele mesmo?

 

Se a lágrima é tão maldita que a pessoa mais bonita cobre o rosto. Minha avó cantava, minha mãe cantava, lá no asilo ela cantava, elogiava "as moças", como ela chamava e me dizia, Deodoro ia gostar de me ver aqui, feliz, mesmo sem ele. Meu pai abandonou minha mãe quando eu e meu irmão tínhamos três e dois anos, respectivamente. E até o fim da vida ela falava dele. Comigo isso não vai acontecer. Vou fazer suspiros.

 

Eu não canto, mas em compensação tenho o estranho hábito de raciocinar por música. A qualquer hora do dia ou da noite uma música começa a martelar minha cabeça. Se repete, não pára. Às vezes acordo de madrugada assim. Antes fazia de tudo pra sumir com isso. Até que percebi que é uma mensagem. De quem?, de onde?, não faço a menor idéia. Podia fundar o espiritismo musical. Mas agora, pelo menos, eu paro tudo que estiver fazendo e me concentro até descobrir o que a música está me dizendo.

 

Amanheceu, que surpresa, me revelava a tristeza. Na verdade já anoiteceu. Os suspiros estão prontos. Houve algo de anormal, tua voz habitual não ouvi dizer bom dia. Ficaram no ponto certo, com a brancura exata. Teu travesseiro vazio provocou-me um arrepio. Hum! Provei um e ele se desmanchou na minha boca. Acertei em cheio. Corri até o banheiro pra te encontrar, que ironia.

 

Ele não esqueceu a toalha, ele não esquece de nada. Nem eu. Queria tanto esquecer, mas não. Aqui, na cabeça, martelando. Ele foi embora. E eu aqui, parada, com meus suspiros. Estátua majestosa.

 

 

 

Alice Barreira nasceu em Barura, no Amapá, em 1968. Trabalha como enfermeira, publicou por conta própria Pequena Enciclopédia de Inutilidades (contos, 1987) e vem colaborando com alguns sites como o coralsemvozes e o vivernavespera.

 

 

resíduos
assionara souza

Minha mãe morreu aos vinte e oito anos acometida de uma mudez aguda. Um dos piores silêncios que já baixou sobre a minha família. Desses que a palavra fica presa dentro e se multiplica agilmente. Assim como se um pensamento descritivo minucioso. Eu via isso quando ela penteava o cabelo, aquele olho vítreo pro espelho, era a doença. Eu. Meu olho via o olho dela. É um sinal que a doença dá. Principalmente nesses momentos de início. É uma doencinha muito danada, essa. Afeta muito as mulheres da minha família. E não é loucura. Louca, mesmo, teve uma minha tia avó chamada Joana. Mas Joana falava muito. Os homens diziam que era ela a desvairada. Aceitou bem o diagnóstico. Tomou veneno e, antes de morrer, urinou-se na sala grande da casa vomitando impropérios. O demônio da palavra a habitava. Minha mãe começou com os silêncios dela, eu tinha oito anos. Os fios de cabelo que ficavam no pente, tristeza infinita em cada gesto. Mínimos. Ínfimos. Olhava. As mãos de dedos longos juntando cada sobra de existência. Os fios de cabelo quando se morre ainda permanecem. A prova inorgânica. Minha mãe tinha o cabelo longo e os olhos tristes e distantes. Era já a doença. Olho pensante. Um dia ela me deu um caderno com capa de flores. Ali, decidi. O que a doença deixava escapar, eu juntava. Teve uma manhã, me arrumando pra escola, ela disse: "estudo é uma coisa muito importante pra pessoa". Eu sorri transbordante da figurinha para a coleção. Escrevi. Letras minhas. O remédio bom da palavra saindo dela. Cura. Minha mãe não falava nada que não significasse. Meu pai era diferente. "Cuidado o carro"; "Olhe de um lado e outro". Meu pai sempre foi um homem matemático; pensava muito em ficar rico. Má temática. Esquecia-se dos outros nessa idéia infame. E mesmo porque matemática deste modo cru, mulher desfaz. Minha vó, que também quando decidiu silenciar enganou todo mundo, matou-se no devagar do secreto, entendia muito bem contar luas e adivinhar ocultos mistérios. Dela anotei: 'a língua é o chicote do corpo'. Talvez pensasse em tia Joana, a desvairada. Porque mulher gosta muito da palavra. E quando falta, a doença chega. Sorrateira. Sedutora. Eu sei que há muitas maneiras de se pegar essa doença. Ainda mais que as mulheres da minha família têm muita facilidade para o silêncio. É um descuido, e pronto! começam a parar olho demais numa coisa só, boca cerrada, minimalismos. A última filha que a minha mãe teve já veio com a doença de nascença. A primeira palavra que falou foi 'não'. Minha avó chamou minha mãe ao lado. Só se olharam. Porque também, por mais que se tenha já essa coisa latente, esse silêncio aguardante, às vezes é outra palavra que um diz pra aquela pessoa e já finca raiz a mudez absurda. A palavra que não diz. Não adiantava nada meu pai falar. Trazer as coisas da rua, do mundo, grugurejar notícias. O silêncio da doença não aceita forma alguma palavra sem peso. Eu sei. Pois aquele dia mesmo. Eu ali, tanta espera o coração. Ouvi a voz. Aguardei. Atardescia sinfonicamente. Não era? Lembras? Eu e tu. Tantas outras vezes. Me ouves, agora? Pois aquela tarde tão grande e pronta pra sustentar a exata palavra. Por que não a disseste? É impossível às mulheres da minha família suportar a falta da palavra. Veio com uma força estúpida: o sintoma. Espalhou-se liquidamente o silêncio rasgante dentro de mim. Foi por esse tempo, meus olhos desistiram de ti; meus braços desistiram de ti. Meu corpo todo adoeceu da ausência de teu gesto. Talvez aqui dentro há muito tempo venha eu tentando entender o início desse meu esquecimento de vontade. São de uma inutilidade tremenda as novidades que me trazes do mundo. A estúpida palavra pronunciada fisicamente. As mulheres de minha família sofrem do mal da palavra. Não há repouso em tua alma às coisas que eu digo. Tua palavra não me atinge. Minha mãe morreu aos vinte e oito anos de idade acometida de um silêncio absurdo. Somos, tu e eu, inimigos muito íntimos. Meu olho no espelho vê.

 

 

 

Assionara Souza nasceu em Caicó (RN), em 1969. Mora em Curitiba. Leciona Literatura Brasileira e Produção Textual. É mestranda em Estudos Literários pela UFPR e estuda trânsitos entre literatura e artes plásticas na obra de Osman Lins. Em 2005, publicou o livro de contos Cecília Não é um Cachimbo, pela editora 7Letras.

 

 

 

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