edição 41 | julho de 2010
temas:  memória de futebol | paródia | o beijo da mulher aranha

 


©márcio cabral de moura

 

 

used to love her

lilith damm

 

 

[Ao som de Used To Love Her, G'N'R]

 

 

Ela era gordinha, parecia um menino com aquele jeitão dela, mas eu gostava. Ria muito de suas frases imprevisíveis.

Nos acabávamos na cama como duas patifes, como duas assassinas.

Até que aconteceu. Eu não queria, mas ela veio sem tato nenhum, cravando aquele michê enorme no meu rabo.

Enfiei goela abaixo.

Fiquei em cima dela. Gritando, rasgando a carne dela, mordendo as orelhas e o pescoço, até a pele arroxear.

Ela se debatia, me arranhava com suas unhas roídas, me puxava os mamilos — e eu gozava vezes seguidas.

Ela demorou pra burro até ficar quietinha.

 

 

Saí do banho pronta pra uma noite que nem papai sonha possível. Preparava a primeira carreira quando lembrei do que tinha feito.

Ela estava na cama com o puta consolo estufando a traqueia. Puxei com força e acabei arrancando um dos caninos.

Achei melhor botar ela pra fora do apartamento antes que ficasse fria.

Mas primeiro, brinquei de salãozinho. Vesti e maquiei como se fosse uma boneca.

 

 

Carregar aquela gordinha bêbada pelos corredores tudo bem, mas descer aquele peso morto pelas as escadas, nem pensar.

Era uma decisão difícil, mas ninguém ia se meter no meu esquema.

Virei uns goles de Jack Daniel's, bati umas cavalas na mesa e cheirei até não sentir o maxilar.

Apoiei o traseiro dela no beiral da janela, lambi seu lóbulo e soltei.

 

 

Isso foi há três anos.

Acabo de sair de um centro de reabilitação para drogaditos. Namorei bastante as enfermeiras, mas elas só aprenderam a abrir as pernas.

Não vejo a hora de ser cravada no rabo. O problema é que agora sou de maior.

 

 

 

 

Lilith Damm (São Paulo/SP, 1946). Professora aposentada e viúva de um desembargador que atuou na Vara de Família. Completou seus estudos normais no Instituto Educacional da Beata Sant'Anna, onde foi professora. Escreve há pouco mais 3 três anos.

 

 

 

 


©márcio cabral de moura

 

 

 

 

auto-oxidação

luci collin

 

quando nasci não veio anjo nenhum e portanto não se disse vai ser isto ou aquilo. "de sete meses cria, de oito é difícil!", a madrinha repetiu durante uma semana. sobrevivi. e acabei crescendo graças a bife de fígado, geléia de mocotó e ao calcigenol.

 

*

 

tenho: sogro e sogra, cirurgia adiada, conta de luz-água-telefone-celular-tv a cabo, freezer combinando com a geladeira, convite pra festa de aniversário de criança aos sábados, toalha de natal com rendinha, estrias discretas, receita de pão de queijo, seguro contra incêndio, jogo de porcelana inglesa completo menos a terrina que a empregada derrubou, cabelo precisando de um banho de óleo, liquidificador no conserto. e o pior de tudo: saudades.

 

*

 

lembro de uns vidros de perfume com tampa em forma de pêssego, presente de aniversário, infalível para meninas comportadas. eu tinha três frascos em cima da penteadeira (tinha penteadeira claro) e ficava horas olhando para os rótulos: paris, roma, tóquio, new york.

 

*

 

herança do avô italiano: "Quem guarda tem, quem não guarda a pedir vem!", "Quem muito se abaixa mostra o rabo...", "Vassoura nova varre bem". filosofia pura que a família seguia à risca. ele era um chato.

 

*

 

aos dezesseis anos se é macrobiótica, fuma maconha, rói as unhas, é socialista, só usa calça da moda, queima incenso, adora a natureza, fica trancada dentro do quarto lendo a obra completa de alguém, usa as joias que ganhou aos quinze anos junto com um colar feito de macarrão torrado. é católica roxa e zen budista. diz frases incompletas. ri como nunca mais rirá.

 

*

 

um ano inteiro chorei a morte do Cristóvão Colombo. dos sete aos oito anos. tão triste a história que a freira contou: "morreu pobre e esquecido na cidade longínqua de Valladolid...".

 

*

 

nas insônias invejo os ratos que escuto no forro da casa. movem-se, fedem. multiplicam-se. sinto o frio dos filhotes. a cada noite ouço. espero. sei o quanto estão ali. nós.

 

*

 

quando apareceu a tv a cores: "A imagem é uma beleza mas não pode assistir mais do que uma hora por dia. Faz mal pra vista". em são paulo uma criança tinha ficado cega.

 

*

 

todo verão afãs de transparência. este ano inadiavelmente serei fêmea. comprar: cremes miraculosos, vestidos indianos com estampa de flores miudinhas, duas saias curtas uma amarelo ouro outra não sei, blusas cavadas, brincos extravagantes, sandálias de saltos altíssimos. não adianta. nunca deu tempo pra usar.

 

*

 

prova de português: grafia correta das palavras. tirei dez. chegando em casa ouvir a avó falando: "Juca, seje homem e troca o fuzil que eu tô ocupada botano a roupa no quarador".

 

*

 

não tenho: marido com gota, blusinha que mostra a barriga decadente como se não fosse, chaveiro de instituição de caridade, aula de ginástica, nem mecha nem franjinha, unhas compridas e/ou vermelhas, enxaqueca, amante mais novo, jogo de panelas que cozinham sem óleo. deixo um pouco para as outras.

 

*

 

nunca pude com esta história de "clássicos". "Esperava encontrar os clássicos entre os seus livros!". clássico é o degredo das expectativas. é esta chuva lá fora, a tarde se esgarçando, a umidade das palavras envelhecendo por dentro da gente. clássico é o silêncio, a necessidade de três pontos. clássica é a sístole. é o verde tornado amarelo e o amarelo verde a cada ano. são os buracos. carneiros na escuridão. a respiração contra o vidro nas madrugadas geladas. mão tremendo. são as cinzas. clássico mesmo — não importa a ausência na estante, volumes raros, mensagens lidas — que eu saiba, clássico mesmo é o pó.

 

*

 

nunca mais ouvi: "Preciso visitar a comadre incontinenti!". nem "Esta foi formidável!". nunca mais uma tia-avó mandou: "Ponha já um barrete que está sereno!". nunca mais alguém disse sequilhos, alfazema, xale, levado da breca, farnel, valha-me Deus. nem resguardo, nem sianinha, nem carro de praça. nunca mais ninguém tropicou. (...) pior cego é aquele que lê.

 

 

*

 

as palavras são areias e se perdem. folhas enlouquecidas dançando contratempos antes da tempestade. consciências. vislumbres. quem se interessa pelos destinos? embrulho para presente? ah, está sem trocado? ofício de eterno mendigar; por que as flores se o asfalto é tão bom? por que os tambores derramando mensagens, discursos tristânicos? por que estar aqui cravando desenhos nas paredes, esculpindo sentenças, acenando aqui estou?

 

Enquanto escrevo amanhece.

 

 

Luci Collin (Curitiba, 1964). Graduada em Piano, Letras e Percussão. Doutora em Letras. Dez livros publicados. Recebeu premiações em concursos de literatura no Brasil e nos EUA. Representou o Brasil no Projeto Literário da EXPO 2000 em Hannover. Participa de antologias nacionais e internacionais (EUA, Alemanha, Uruguai e Argentina) e tem artigos e traduções publicados em diversos jornais e revistas. Mora em Curitiba e é Professora de Literaturas de Língua Inglesa e de Tradução Literária na UFPR.

 

 

 

 

 

 

 

 

compartilhar:

 
 
temas | escritoras | ex-suicidas | convidadas | notícias | créditos | elos | >>>