edição 42 | setembro de
2010
graça
O
mundo é um jardim. Uma luz banha o mundo. A
limpeza do ar, os verdes depois das chuvas, os
campos vestindo a relva como o carneiro a sua
lã. A
dor sem fel: uma borboleta viva espetada. Acodem
as gratas lembranças: moças
descalças, vestidos esvoaçantes, tudo
seivoso como a juventude, insidioso
prazer sem objeto. Insisto
no vício antigo — para me proteger do inesperado
gozo. E
a mulher feia? E o homem crasso? Em
vão. Estão todos nimbados como eu. A
lata vazia, o estrume, o leproso no seu
cavalo estão resplandecentes. Nas nuvens tem um
rei, um reino, um
bobo com berloques, um príncipe. Eu passeio
nelas, é
sólido. O que não vejo, existindo mais que a
carne. Esta
tarde inesquecível Deus me deu. Limpou meus olhos e
vi: como
o céu, o mundo verdadeiro é pastoril.
Adélia Prado (Divinópolis/MG, 13 de dezembro de 1935). Uma das grandes vozes da literatura brasileira. Publicou os livros de poesia Bagagem (Imago, 1976), O coração disparado (Nova Fronteira, 1978), Terra de Santa Cruz (Nova Fronteira, 1981), O pelicano (Guanabara, 1987), A faca no peito (Rocco, 1988), Oráculos de maio (Siciliano, 1999) e A duração do dia (Record, 2010). Em prosa, Solte os cachorros (Nova Fronteira, 1979), Cacos para um vitral (Nova Fronteira, 1980), Os componentes da banda (Nova Fronteira, 1984), O homem da mão seca (Siciliano, 1994), Manuscritos de Felipa (Siciliano, 1999), Filandras (Record, 2001) e Quero minha mãe (Record, 2005). Participou de várias antologias, escreveu para o teatro e foi traduzida para o inglês e o espanhol. Vive em Divinópolis.
...
Vazia.
Vazia de palavras. Uma imensidão vazia de palavras. Silêncio de palavras.
Não, silêncio não. Silêncio não era feito de palavras, não continha
palavras, não reconhecia palavras. Era vazia de tudo. Menos do pensamento
de estar vazia. Mas
não só isso. Era mais. Era vazia do tamanho do mundo de palavras. Um mundo
feito de palavras vazias de palavras. Seca de palavras.
Seca. E a solidão ruminando cheias.
Ana Peluso, 1966, paulistana, sem livro, bloga no La Escena de La Memoria.
dela A
abandonada Um
dia abandona E
do nada Vira
dona De
si só Nega
os medos (e
se entrega aos dedos escorrendo líquida E
certa por ela aberta)
Neusa Doretto. Atriz e dramaturga (EAD/USP). No teatro, trabalhou com Renata Palottini, Fausto Fuser, Neide Archanjo, Guarnieri, Lourdes de Moraes e Teresa Aguiar. Paralelamente, mantém atividade literária em jornais como Diário de Sorocaba, Diário do Povo de Campinas, Revista Vivere e Boletim de Artes Plásticas. Como orientadora cultural, trabalha com projetos ligados ao teatro e de incentivo à leitura, apoiados pela Secretaria de Cultura de Campinas, desde 1991. Dirige o "Teatro Falado", de incentivo à leitura dramática, desde julho de 2007, trabalhando textos e poemas da literatura contemporânea. Escreve os blogues Poesia Rápida, Sinceridade Brutal e Poema Curta-Metragem, que edita.
a terra é boa
«A
terra é boa; ao meu ouvido volta
a dizê-lo». Eugénio
de Andrade Há
tanto tempo que não te encontro nem
às coisas que partilhámos — as
águas, a brisa, a sede, a
erva tenra afligida pelo
esplendor de um corpo aceso. É
quase inverno. Os dióspiros ardem; e
trazem um cheiro a fumo as
névoas, velando o entardecer. Lembrei-me
de ti: o lume, a cadência dos versos, um
peito moreno entrevisto entre
a brancura da camisa e as palavras de
um poema. Fica
ainda um pouco. Afasta o
deserto, o lamento, a sombra, onde o silêncio mastiga o tempo tenebroso.
Soledade Santos é portuguesa. Nasceu numa pequena vila rural da Beira Alta, onde passou a infância. Aos dezessete anos foi para Lisboa, cursar Letras, e aí viveu vários anos. Agora mora no concelho de Alcobaça, onde é professora. Foi publicada na coletânea Quatro poetas da net (Editora Sete Sílabas, 2002). Escreve o blogue Nocturno com Gatos.
» Imagens
Juh
Moraes (Curitiba/PR). Fotógrafa e
pintora. Trabalha com fotografia há dois anos, estudando suas várias
vertentes, com ênfase na fotografia autoral/subjetiva. Desenha e pinta há
mais de dez anos. Participou do Congresso Intercom 2010 e foi premiada na
categoria Ensaio Fotográfico,
com Sufoco, no Expocom Sul. Seus trabalhos podem ser
vistos em http://juhmoraesfotografia.carbonmade.com e http://www.flickr.com/photos/portfoliojuhmoraes. [Contato: jrs_moraes@yahoo.com | 55 41 9979
7961]
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