edição 46 | março de
2014 #carpacciosdefridaenquantoselfier bernadete reutman Elfos, selfs, selfinas, sereias, serinas: palavras que se conjugam diferentes de verbos, todas a ver com o que está fora, mas se tramando com o dentro, reais e mitos, gasosas, enevoadas, ao mesmo tempo flutuantes como todo verbo, que confirmem os ulisses por aí espalhados. Os pretéritos não chegam ao perfeito porque Elisa usa uma Sony digital com boas lentes, zoom ótico potente de 250x, afanada temporariamente do padrasto, mas não conhece seus recursos. Corpo coalhado de tatuagens, flana desnuda do quarto no final do corredor até o banheiro antigo de azulejos azulclarinhos, posta-se à frente do bisotado gigantesco que era da bisavó paterna de sua mãe e clica. A imagem brota da pequena tela e denuncia que a dona do corpo nu fotografado mede perto dos 1,65m e não pesa mais do que 45, quem sabe a imagem daquilo que chamam de estética da precariedade, cartilagens e ossos tentando vir para a superfície do mundo real. Ossos e cartilagens ousam mais que eu, compartilhou enc(l)a(u)sulada. Lembrou-se das aulas que iniciou na graduação. Lá descobriu que, de acordo com a cromodinâmica quântica, os quarks podem se formar ligados em pares ou em trincas. Não imaginou a razão de precisar de saber daquilo, mas suspeitou-se quântica o bastante para prescindir de pares ou trincas. Flashmob de uma só, vê-se no lcd da Sony mostrando as faces que deseja, zapping de cliques: a curva de uma nádega em que repousa um dragão a despejar matizes de verde com labaredas vermelaranjas vomitadas da boca escancarada; o repouso inferior de um seio esquerdo promete brancuras fantasiosamente imaculadas e curtidas masculinas, eventualmente preteridas (o verbo "preterir" deve ter alguma ligação com pretérito, ela se pergunta quando ouve a voz rouca do narrador narrando) pelas femininas, brancura conspurcada por uma fênix sem preenchimento, só riscos tatuados se lançando no vazio, do nada a um mamilo, rascunho de bicho mitológico serpenteando-lhe a parte do corpo de que mais gosta e acaricia, fazendo bojos mornos com a mão, supostamente moldando curvas e cumes e mãos outras ali imaginadas (pensando bem, "preterir", se ligado a passado, tem alguma lógica: passado é tudo aquilo que preferimos deixar no passado, quem sabe); a curva fechada de um tornozelo em que se espalham flores de cerejeiras em tons de rosa e lilás, presente de amigo oculto do ex-namorado de seu pai. Tira as fotos, arqueóloga, como quem tira lascas, carpaccios da alma, a tela de três polegadas multiplicando-a em ângulos, geometria pós-cartesiana, como os totens gigantescos da ilha de Páscoa, as esculturas radiculares daquele artista plástico de Oslo de quem se esqueceu o nome, os romances daquele escritor espanhol que lhe tiraram os pés do chão, os quadros daquela Frida que não cansa de se pintar, a cabeça de uma estátua de Santo Antônio abandonada numa cidadezinha perdida nas profundas do Ceará, a partícula de deus que não dura mais que um bilissegundo, tudo isso está em cada clique, ela pensa, como o gesto que se forma na intenção, as vidas que poderia ter vivido, as mãos trançadas de Escher, os penduricalhos aparentemente inexplicáveis de Bispo do Rosário, as esfinges de palavras de Rodrigo de Souza Leão, a loucura de Foucault, um labirinto que se basta desde que alguém se perca nele. É como escutar vozes de mortos: um deslocamento, uma impossibilidade, tortuosidades do tempo, figurações no espaço, assombro de silêncios, um sopro, o último, palavra, letra, teta, buraco negro que suga tudo à volta e se resume a uma figura indiscernível, colorida, descansando para sempre esquecida num livro escolar distribuído pelo governo a crianças que, de semelhantes com ela, Elisa, só têm os mesmos ossos e cartilagens borboleteando por baixo da pele emaciada. Enfim sorri, orgulhosa e plenamente compartilhada, pupilas regozijadas com as curtidas multiplicando-se feito partículas quânticas na tela do tablet, lido enquanto flana, ainda nua, de volta ao casulo do fim do corredor. Curtir (clique aqui).
estado carla diacov E.
e ter de
estar nua
aos pés da
estante
para poder te
dizer
sou
canibalesca
e gosto muito
de chupar os ossinhos dos ouvidos humanos
gosto de
comer pelada
e não lavo as
mãos antes de ler
este é o dia
de hoje
veja
bem
é o meu
Estado
estou
sujeita
S.
sim
é pelada
o Estado onde
posso
fazer as
unhas
abrir bem as
pernas
e lixar as
unhas dos pés
posto que
neste Estado
posso
cantar como
cantava uma perereca que conheci
dar de
túnel
imitação de
túnel
como um túnel
que conheci:
que aturdido
obelisco de infantaria inculta!
T.
totem:
um cavalo
está parado diante das minhas mãos
e não
posso:
estou
pelada
uma criança
me vê pelada
e não
posso:
estou
imaculada
sou
invisível
escorrego e
me espatifo toda no chão de cimento cru
estou
lá
pelada e me
sinto terrível
uma
megera
o chão é cru!
o chão é cru! e eu não me caramujo nem um tanto.
A.
aforismo e
autuação
este é o meu
Estado
sou a
pelada
e um lagarto
passa por mim
(adotei o
lagarto de um antigo encantador de serpentes que
conheci)
(o encantador
de serpentes que conheci também encantava fumaças e
lombrigas)
passam por
mim minhas memórias a despeito de um livro irritante
o lagarto
ainda passa
das memórias
uma de
especial
MIGRAR A
LÁBIA PARA O LADO ONDE BANDEIRA ALGUMA INSISTA
o lagarto
ainda passa
e ai
como gosto do
tempo que o lagarto usa
trocando as
bases de seu próprio tempo de pele
nas
proximidades do meu tempo nos limites do meu Estado
D.
dizem
digo
já é de
tradição
quase
autoritária
sonhar que
chegando
pelado à escola
o indivíduo
deite-se numa gigantesca língua púrpura
seja
ainda que por
três ou quatro litros de segundos
um tanto
hermético em sua maneira de rolar pela dita
deixe
que seu couro
todo sinta os pólipos e os périplos
esbarrando no
adjetivo mais inadequado
esfregue sua
genitália
nas áreas
mais coibidas da filosofia no paladar
levante-se e
deite-se e levante-se e sente-se e role
pressinta a
narrativa ordinária e a prepotente
ou que pelo
menos
numa espécie
rara de dança tribal
acorde todo
salivado nos olhos e nas canelas.
tradição!
O.
ouço
voltando ao
meu Estado
pelada
os urubus
circundando, gritando, pedindo
imagino
voltando e
saindo do meu Estado
uma camisa
vestindo a mim
uma calça e
uma calcinha e um chapéu e um sonho
vestindo a
mim
pelada
botinas de
homem e um cinto de couro de crocodilo
pelada
tudo vestindo
a mim
ao meu
couro
em pleno
Estado meu
eu,
pelada
tudo numa
ordem zanzada
hora inexata
de ser
um tanto
menos de ser
(como ser
justa com os cabelos no Estado de onde me vou
saindo?)
uma cabeça de
gente na janela da frente
uma de bicho
no vão da
porta
(não
estávamos no telhado?)
(eu, meu
Estado, aquele livro, a tradição, os ossinhos e o
lagarto?)
(a criança e
o cavalo?)
(não
estávamos lá?)
tudo numa
ordem penitente, amargada
eu
pelada
sumariamente
chorosa
ai, chorar
pelada! cantar pelada.
pelada, tomar
chuva ou tapa na orelha!
já voltando e
já saindo
do meu
Estado
pelada
tendo
devorado
a tudo o que
é vivo ou relativo
e voltar a
mascar a nudez como a um ursinho de goma
uma palestra,
filhotes melados
procissão,
dedos lambrecados
rachos
arabescos e vingança
tudo dentro e
fora da jurisprudência do meu Estado
mas veja bem
o Estado:
eu
pelada
pareço porca
esquematizada
ponto a
ponto
imito a tua
silhueta ao me despojar dos panos?
sou o
fantasma nos limites do meu Estado
estou no meu
Estado
sou
a memória da égua da noite.
marés carla luma Afastou-se. O
andar macio e sem pressa de quem, ato consumado, jamais olha pra trás.
Enxugou suor ou improvável lágrima. Talvez o encoberto gesto tangesse um
inseto ou limpasse um grão de areia da face que, momentos antes, acarinhei
com a ponta dos dedos, com os olhos, até ver nos dele a impaciência da
despedida.
Dane-se, eu
disse. Disse sem palavras para que ele não ouvisse. O vento parou, mas o
cheiro de mar entranhara-se definitivamente no meu corpo. Canícula. O sol
assoma entre pequenas nuvens alvíssimas. Urubus bicam a carniça de um
peixe.
Esgotei
silenciosamente as possibilidades desta melancolia marítima. Bebi o mar.
Já é agora um pequeno ponto sumindo na outra ponta da praia. Nunca foi
mais que um grão de areia.
Fechei meus
olhos até que se apagasse o poente e as constelações me cobrissem com
novos sonhos, mas ele os invade, chega sem que eu perceba, vem sem que eu
o chame, possuí-me e parte e, enquanto não volta, tudo é vazio,
saudade.
inveritas carmem de maio Levamos você
e eu
a vida entre
degustações
e embriaguez
provamos
os doces e os
dissabores
Hoje trago o
peito
à meia-taça e
na língua
2 poemas, 1 poema em prosa daniela delias coyoacán
I
não dei pelo
azul de casa e rio
também
atravessava portas de vidro
veludo
vestido coberto de ouro e sangue
eu e meus
risinhos vermelhos
meu bailar
sem peso algum
II
eu sei,
Magdalena,
não há outro
azul.
lembra quando
sua boca
soprava o ar
sobre as janelas
e você
desenhava portas
para ter de
onde se ir?
estou aqui,
Magdalena,
e meus pés
flanam
como os
seus.
deste lado do
espelho,
eu escrevo
para você.
escombros
Eu moraria em
seus olhos. Olhos-pesos-de-papel deitados sobre os meus em uma carta-poema
de delicada caligrafia. Não pela impossibilidade de existir feito coisa
que se junta a outras coisas em casas-amálgamas de paredes, retratos e
paraísos perdidos. Mas pela saudade de um lugar que me habitasse.
Lugar-casa, lugar-coisa, lugar-peso, lugar qualquer de légua percorrida
com os pés descalços sobre a bruta pedra dos dias. Eu moraria em seu passo
largo e em seu riso contido — também me habitam distâncias e discretas
alegrias. Eu sucumbiria às fomes de dentro, às sedes desmedidas. Ofertaria
fogueiras e aquela sua dança de línguas aos deuses do outono e seus
caprichos. Aliás, eu morreria em seu corpo e sua língua. E nasceria no que
em nós resistisse palavra e restasse evidência. Não que prescinda da arte
a pele. Não que prescinda da vida o gozo que ampara e dilacera. É que em
versos reinvento o seu corpo. E só então deslizo suave entre os
escombros.
a
dança
diremos das
pedras
dos pés e do
limo
até que tudo
reste ínfimo
e castas
palavras dancem nuas
sob um céu
vermelho-vivo
de nossa
sede
não
diremos
nem das
noites em que vens
e farta de
não ser
sangro em tua
língua
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