edição 47 | julho de 2014
temas:  gato escaldado tem medo de água fria | ilha | alçapão

 

 

medida cautelar
adília do rego castro 


deitou tanto tempo

depois da menarca

que a flor de cheiro

abriu o bico

óleo de rícino, costura

cozinha e o rame-rame

atritava em demasia

pediu ajuda, manteiga,

vaselina, pediu ao Pero

paciência, calmaria

até que um dia

atrás da horta

fez a descoberta

esfregou-se no caule

do pajé e a gruta

melou mais que manga

na boca da normalista

 

 

 

Adília do Rego Castro nasceu em Trás-os-Montes, no ano da graça de 1955. Da plantação de uvas, partiu para uma carreira literária, causando alvoroço. Foi expulsa da Escola Normal.

 

 

 

poema
hermetéria mariana 


chamaram-me ismael

chamaram-me de muitos nomes

desde os tempos imemoriais

chamaram-me aos poucos

e aos tantos

juntando muitas vozes

me chamaram

 

e eu ouvindo

desde o ponto em que me encontro

desde o chão em que me sento

eu ouvindo

concordando

com tristeza

com acenos de cabeça

e desencanto

 

chamaram-me ismael

os homens tolos

chamaram-me maria arrumadeira

disseram feiticeira tristeza morte desconjuntada imploraram

imploraram para que eu não rogasse praga

chamaram-me ismael e ninguém

ninguém sob este céu

ninguém do baixo céu me chamou baleia

mãe nutridora

 

ninguém neste chão rachado pegou areia

com ambas mãos

ninguém me tocou o centro

ninguém me chegou sequer

ao meu coração

 

chamaram-me ismael

mas eu

eu não respondi

 

 

 

Hermetéria Mariana nasceu cedo, no século XX, mas pouco se reconhece de seu destino. Viveu ou vive em uma gruta escura e prenhe de sal marinho, mariscos e cascas de caramujo, à beira de um mar profundo chamado subtropical. As coordenadas da ilha em que reside ou residiu foram traçadas, pela última vez, entre os anos de 1937 e 1938, pela expedição do então tenente da guarda costeira Quentin Roberto Walsh, a bordo do baleeiro norte-americano Ulisses. Estima-se que a expedição coletou mais de 190 mil barris de óleo de baleia.

 

 

 

 

 

3 poemas
luiza oliveira 


vira-lata

 

 

Chega

das caretices e dos puxa-saquismos

das divindades caídas

dos reinos unidos fragmentados

dessa porra desse computador

 

Ai que saudades

 

das simplicidades sem vistorias

de águas paradas, porém,

livres e libertas

da negra do cachimbo

do sertão agreste

sem veredas

das tabernas

de Máximo Gorki

 

da merda sem parasitas

do homem

do humano

que escarrou e sujou o tempo

embaçou os vidros

com seu hálito fétido

 

medidas inexpressivas

fazem

essa espécie híbrida,

incapaz, sonolenta,

sorrir.

com seus dentes amarelados, cheio de cáries...

 

eu vou pra Tucumã

aliciar meus tormentos

dormir com as cabras

e foder com os jumentos

 

 

 

 

sem garantias

 

 

pescoço duro

febres amarelas

sem dinheiro no bolso

amarga o dia que chega

 

roleta russa

e os meninos despencam dos morros

mato o jacaré

engulo o leãozinho

 

e sou fuzilado em praça pública

 

 

 

 

amor de uma nota só

 

 

Naquele quarto

É tudo tão calado

sem ruídos

 

o plástico na cadeira

o sapato sem par

 

as janelas fechadas

flores de plástico sem raízes

a goteira

vinis esparramados em poeiras

 

pesos de ferro mortos

 

esperanças

em cadeiras anárquicas

 

me estiro no sofá preguiçoso

em caminhos sem fé

amebas presas

 

em servidões...

 

 

 

Luiza Oliveira é advogada, socióloga, atriz e bailarina. Em 2011, lançou seu primeiro livro de poesia, Afetos Transgressores. O segundo, que deve se chamar Da menina que virou bicho, está em fase de negociação com editoras.

 

 

 

 

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