edição 48 | outubro de 2014
temas:  uma andorinha só | amuleto | old times

 

 

priscila merizzio | arrasta-pé de dois caranguejos | um deles está morto | nas areias de zimbros/sc | 2012

 

2 poemas oblíquos
nina rizzi 


uma andorinha só

 

tenho os lábios sangrados. uma amiga que conta como me quer em suas peripécias sexuais com uma garota, duas, três, quatro ou cinco caras. um amigo que quer fazer sexo comigo e com outra e outras, ao mesmo tempo. tenho um homem que acha que é meu companheiro, e por isso me quer como num filme sérvio. útero, ovários, orifícios vários além do verso. tenho uma lembrança asquerosa, cheiro de sexo junto aos pelos no ralo do banheiro. ganhei poemas cheios de dedos, um afago antes do tapa. quem disse que o sexo é libertação? quem disse a poesia, sim, as pessoas que a fizeram segundo o chamamento de mim. mas eu não sou meu duplo.

 

 

 

 

"please put down your hands 'cause I see you"

 

e como doesse o esquecimento e a inércia, caminho até à praia, que o frio cortante é tão raro como sua imagem de boneca russa, acrobata de filmes antigos, um vermelho vintage.

 

que seria um desperdício deixar o dia passar assim, depois da noite passada, dos lábios macios e das mãos por dentro da calcinha de florezinhas ou ursinhos ou qualquer dessas coisas delicadas.

 

então um maço de balões voa pela avenida e eu podia morrer correndo assim atrás de balões. mas todos os carros param pra uma moça passar com seus cabelos e euforia infantil e um homem lhe entrega o bouquet de balões e eu fico pensando nela, se já terá ido à paris, ela que é mais francesa que a menina que eu beijei num campo em construção como prêmio pelo cuspe à distância.

 

combina com ela, o chão que nunca vi, as pedras no calçamento como aquelas de copacabana ou de camboriú. o calçamento repleto de murta, os jardins repletos de cheiros que não de morte. e a menina que me acena no poema que recorda: quartier latin, rhümi e japamala.

 

era um convite à vida, a moça que afasta o caderno, levanta os óculos e diz: o play, tem velvet underground. vitrola, sim. e máquina de escrever e uma franja lisa e um falso corpo magro como gostava alberto vargas e eu sublimo. old times.

 

desço à praia com os balões e essa angústia tão própria de quem é gente e esses desejos escondidos tão próprios de ser o quê e essa paisagem de cinema. quando a noite cai.

 

passo os dedos pelas pontas do cabelo e é áspero, como uma resignação profunda, um constatar quase-patético: viver a música, viver o cinema, viver o poema. quando o corpo suspende.

 

 

foi você
sabina mayfair 


Que me disse para escrever uma carta de despedida. Segurou a minha mão e assoprou as palavras. Eu não queria aceitar o final, mas na ironia me perdi. Lembro da ponte que atravessávamos todos as noites, flutuávamos no lago ouvindo qualquer coisa, cantávamos sob as rodas que eu guiava. Colei o envelope com o seu beijo e enderecei à sua casa. Você gargalhava. Eu soluçava aos prantos. Teu prédio incendiaria, por um papel e algumas palavras. Diria de longe adeus a você e seus vizinhos. Mas não, aproveito as rodas e colo o teu crânio no asfalto. Seu grito ainda ecoa quando tomo chá de ervas para os nervos. Mas toda terça, quando o correio chega, me atinge um tiro no peito, o carteiro tem os seus olhos, levo-o até a cozinha e coloco o jantar na mesa. Ele calça as suas meias. Eu me dobro. Ele me carrega em sua bolsa e, mesmo sem destinatário, me entrega com batom borrado, letra torta e pedido de socorro. Eu que sempre afirmei que não era uma garota que colecionava papel de cartas.

 

 

houve uma vez um verão
silvana guimarães 


fumava minister

usava azzaro

mascava ping-pong

 

seu nome no obituário antigo

lembrou-me o caminho da ilha

a árvore com nossas letras

entrelaçadas dentro de um coração

 

quem recolheu suas asas, meu anjo torto?

quem contou suas fraturas, catou os ossos?

 

guardo para sempre

os estilhaços que vi em seus olhos claros

na hora da despedida

 

um gosto de naufrágio

o coração submerso

o lenço vermelho — inútil patuá

 

a tristeza é um passarinho que não sabe voar

 

priscila merizzio | "o sobrevivente" | guarapuava | 2014

 

3 poemas
sonia viana 


*

 

Naquele dia uma andorinha só

Pousou junto aos meus pés

Trazia mensagem de vida

Bicando o farelo do pão

Anunciava o amor

 

 

 

 

*

 

Meus tentáculos

Absorvem o mundo

Passo a senti-lo

A grandiosidade me assusta

Sou um grão de areia

Nessa imensidão

Preciso de proteção

Um amuleto me inspira

Acalma meu ser de impureza

A bela flor de lótus

Surge da água lodosa

Tornando-se pura beleza

 

 

 

 

*

 

Uma menina charmosa

Vive a sorrir

Tudo que vê lhe encanta

Que menina é essa?

Fico confusa

Vejo minha mãe mais velha que eu

Mas a menina não sai do seu ser

Penso em mim

Quando no espelho ela me acena matreira

Gosto e me surpreendo

Vejo minha filha que cresceu

Sempre a sorrir

Seu jeito menina permanece

Estou no tempo do romance familiar

Sabor de old times

Que se realiza enquanto lembro

Da face que reflete a menina feliz

 

 

 

 

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