edição 49 | dezembro de
2014
2 poemas
nina rizzi vário
som
entendi que
não devo
soltar a
fumaça pelo nariz
eu vi a
sorrah na tv
e saquei
aquelas rugas
que você me
disse e eu penso
saiba tragar
bem forte numa
respiração
completa além-pulmões
do que você
me disse
brincam as
palavras
na caixa de
música francesa
é eu consegui
guardar
a sua voz na
caixa
do meu
telefone portátil
e passo as
horas com medo
de esquecer a
sua voz
ao passo que
não esqueço
a fome que
arde nuns
desconhecidos
que me são
tão próximos
como nossa fome
de um café
marcenaria
e fico a
ouvir repetidas vezes
as
laranjeiras e o vento
e essa
ausência que é ruído e é
silêncio a
presença da tua presença
a lembrança
da tua voz
um rio que te
intuía
entre as
pernas minhas pernas
e todas essas
coisas
que não se
pode dizer
kleine koffer patty flag Esta noite
sonhei em alemão, tenho sonhado muito em alemão. O engraçado é que durante
o sonho tudo faz sentido, mas quando acordo, percebo que já não entendo
mais meu idioma pátrio. Não deveria ser o contrário? Na velhice — digo, na
caduquice, falando o português claro, esse que ainda entendo — lembrar-se
do que há muito tempo, da infância, da língua? Pois
não...
Meu médico já
me recomendou um psiquiatra, mas como ando querendo morrer em paz, não
vou. Fico em casa criando as próprias teorias. Agora já manobro a cadeira
com alguma facilidade, pelo menos já consigo abrir as portas do buffet,
pegar a garrafa de whisky. O congelador não alcanço, os copos sim, mas,
pra quê? Garrafa na mão, ficou imaginando Sigmund Freud, que podia ser meu
pai, podia mesmo — Ah, um psiquiatra me amaria! — Fico imaginando Sigmund
em uma sessão: "Certamente esqueceu o alemão por algum bloqueio traumático
em sua infância". "O senhor já esteve no Brasil?". "... Amnésia
Dissociativa". "Ah, Sigmund, minhas pernas! Eu tinha pernas de Marlene
Dietrich!". "Ou talvez a senhora seja muito mais corporal que cerebral".
"Fui rainha do Cassino da Urca por cem dias!". "... sintomas de Transtorno
Dissociativo Motor?". Espio a caderneta de Sigmund por cima de seu ombro e
o mando embora.
A nostalgia,
o whisky, durmo, sonho em alemão, acordo, não recordo. Faço um esforço.
Ich liebe dich mein Baby Vogel, Ich liebe dich...
São as mãos
de meu pai em meus cabelos, são as mãos de Guilherme em meus pelos — um
psiquiatra me amaria!
Uma velha
canção entra por alguma janela que esqueci aberta há mais de setenta anos,
posso sentir a brisa, os vidros quebrados cortando meus pezinhos de
menina:
Ich hab noch einen Koffer in Berlin
deswegen muß ich da nächstens wieder
hin
die Seligkeiten vergangener Zeiten
sie sind alle immer noch in diesem kleinen Koffer drin
A nostalgia, o whisky, durmo, sonho em alemão, acordo, não recordo. Recordo: deixei uma mala, pequena, em Berlin, tantas alegrias estão lá. Guardadas. Ainda. Preciso voltar. Preciso voltar.
©cristina arruda
o ritual priscila lira Naquele
dia, eles acordaram com um sentimento que deslizava entre o medo, a
ansiedade e a preguiça. O tempo era curto, mas sentiram-se no dever de ir
à padaria e comer aquela empada de frango pela última vez. Tomaram o café
da manhã com um sorriso no canto dos lábios, respiraram fundo e voltaram
para casa.
Ela
tinha medo de, entre as aulas que tinha para assistir e lecionar, a casa
para varrer de cabo a rabo, os móveis e caixas para carregar, ser
acometida por um de seus acessos de irritação e estragasse tudo já no
começo. Ele tinha medo do mesmo. Sentaram no colchão, já separado da cama
e conversaram um pouco sobre o funcionamento do cosmos e um possível
apocalipse extraterrestre, respiraram fundo mais uma vez e se
levantaram.
Na
noite anterior, foram a casa da primeira amiga que fizeram na cidade, ela
ganhara um binóculo de presente. Boa parte do horizonte visto pela janela
eram prédios e, por entre um daqueles quadradinhos, encontraram dois
amigos ou amantes que, ao som de uma música desconhecida ou do silêncio,
levantaram-se e começaram um dança ridícula que incluía muitos risos na
execução.
Ela
comentou que na casa nova eles teriam espaço para dançar, espaço de sobra,
porque com os móveis que eles e os outros amigos tinham, mal dava para
mobiliar um cômodo que não fossem seus quartos. Imaginaram-se dançando na
casa nova e aproveitaram a sala espaçosa da amiga para acompanhar os
observados. Voltam para a casa, ela, na cozinha, colocando os talheres na
caixa, ele a abraça e ambos olham a janela, aquela exata vista, pela
última vez. Dançam a gargalhar e se bater pelos móveis desmontados e as
pilhas de caixas. Caem no colchão, ainda com alguns acessos de risos e
sonham.
Descarregaram
tudo para o térreo, ela observou a poeira do apartamento e percebeu que já
estava atrasada. Deu um beijo estabanado nele, que carregava a geladeira
com o fretista e correu para a universidade. Voltou correndo, contando os
minutos no relógio e abriu a porta do apartamento vazio, com apenas uma
vassoura e alguns panos. Não podia sujar aquele vestido, porque seus
alunos podiam até não ver o desleixo, mas os pais perceberiam.
Descalçou
os sapatos, tirou a roupa, só a calcinha permaneceu, colocou Le Premier
Bonheur Du Jour, com Os Mutantes, pegou uma ponta que tinha guardada
na bolsa, sentou em um canto da sala e fumou, cantarolava a música com seu
francês inexistente, baixinho e batia com a ponta dos dedos no chão,
respirou fundo, pegou a vassoura, prendeu o celular na lateral da calcinha
e começou a passear pela casa, imaginava os móveis todos, o que tinha
acontecido em cada canto, o dia em que ele chegou e ela, de braços
abertos, havia colocado balões na parede, o recebeu em seu primeiro
paraíso.
Varria,
balançava a cabeça ao som dos Mutantes, o movimento se alastrava pelo
quadril e a música, em seus ouvidos, se espalhava pela casa. O celular
tocou Desculpe, baby e ela deslizou os pés no chão e cantou: "Eu
vou correndo, buscar a glóriaaaa, minha glóriaaaa!" e varria, os
cantinhos, o teto e cantava e deslizava: "glóriaaa, glóriaaa!".
Dançou
pelos dois cômodos que o tamanho do apartamento permitia, em cada cantinho
deslizava e inventava um passo que ninguém veria, a vassoura a guiava, era
como se vingar daquele caixão de concreto, que a impediu de se mover por
meses, que deixava todas as suas extremidades roxas de se chocarem com
maçanetas, esquinas, quinas de móveis. Rodopiou várias vezes no meio da
sala, percoreu o quarto inteiro com seu par até pingar suor do
corpo.
Olhou a casa, limpa como nunca esteve (a corretora de
imóveis discordaria) e correu para o chuveiro, estava atrasada de novo.
Deitou no meio da sala, abriu braços e pernas e esperou que a água
secasse. Recolocou o vestido, pegou a bolsa e fechou a porta pela última
vez, com a esperança de que os novos moradores fossem igualmente
acometidos pelo demônio da dança e saíssem de lá o mais rápido
possível.
radioesquizofrenia priscila merizzio O corpo se expande na desmedida calculada de um albatroz silenciando asas nas águas do abismo. Tubarões com implantes de porcelana nos dentes brincam com pequerruchos leões-marinhos. Montanhas de gelo fazem do sol refém em seu tórax envidraçado. Ele alumia e trinca os ossos da velha descendo escadas caracóis. O porão do paraíso faz do quimérico desenfreado Síndrome de Estocolmo. Pâncreas explodindo nos ávidos triglicerídeos. Vícios se extinguindo nas boias dos bombeiros e pesadelos de maremotos lambendo o inconsciente. Alguns dias são desperdício de vida. A câmera endoscópica é a longa raiz da gérbera adentrando o estômago. Vísceras análogas aos lábios vaginais: róseos, úmidos, brilhantes. Jardins gástricos. Carmem Miranda no dulcíssimo sono atemporal do benzodiazepínico. O anjo devora um roxo buquê de H. pylori e enterra-se no cemitério com árvores de grandes sombras. Muda enxertada em vasos de terras podres no mundo que desacolhe a beleza das Tacca chantrieri. Lugares que meus tecidos arruinados não tateiam. Os equinócios de seus pelos ruivos balançando no rabo com pedigree e os olhos escuros vazando-se no infinito abrem lacunas edípicas. Dor que começa e finda em si mesma. Ruína sôfrega do corpo na impossibilidade de abarcar excessos emocionais invisíveis. Hipocondria patinando aos obscuros detalhes do vazio ou ao céu de verão preenchendo poros lassos. Lânguida fera estendendo-se à primavera, espreguiçando juntas, nervos e músculos à luz da claraboia. Aves extinguindo-se nos prados solitários. Surrealismo posto em altar e água benta nos sonhos ultrapassando os limites da pele. Corpo rasgando-se ao contrário, transmutação macabra de placentas, tal jiboia expelindo cães engolidos nos parques. Galope de velas queimando bocas na antissabedoria. Crânios de Hamlet afugentando os búfalos mal-assombrados da memória. A chuva de Atropa belladonna L. rasga o ventre da baleia azul que pari tesouros de donzelas afundadas. Pó de arroz, chá de calêndula e vinho tinto suave às donas dos joelhos macios como manteigas. Vomita a sobremesa no vaso chinês e beija de língua o mordomo debaixo do aparador do hall de entrada. A velha do porão tricota casacos aos polvos apalpando os espíritos vagando nos museus pictóricos. Nenhuma cama de necrotério aquece a cólera dos corpos levianos ao deleite da existência.
©cristina arruda estranha máquina ro druhens Estranha
máquina que lubrificada pela intensidade que nasce de seus dedos, bate
descompassada ao encontro de seus desejos, que tocada pela intensidade de
seus desejos se lubrifica ao encontro de seus dedos, sabor de pecado em
sua língua.
Estranha
máquina posta em repouso no silêncio de seu sono, acelerada na sinfonia de
meus sonhos.
Estranha
máquina, que a qualquer toque se recusa que não o das melodias que você,
maestro dos meus desvarios, faz vibrar em acordes
dissonantes.
Estranha
máquina onde guardo e resguardo coração e
buceta.
distância sabina m Ainda era
noite quando acordei descoberto, passava a mão pelo corpo e como uma
lâmina me arrancava os pelos pela raiz. Patino os dedos pelo crânio, já nu
de qualquer molde. Desfio-me sem intenção. Meus lábios rompem em pânico.
Em silêncio, peço socorro em segredo, não atinjo nenhum santo. Meus dentes
caem e espalham-se pelo quarto desaparecendo um a um. Alcanço o espelho e
não me reconheço. Desejo fumaça e acendo um cigarro, mesmo na fuga, não
evaporo. Perco o tato. E o que me sobra são dedos sem unhas, sem digitais,
insensíveis. Um trem freia, escuto-o com atenção, mas em pensamento estou
nos trilhos, partido ao meio. A casa desperta, uma luz solar atinge meus
olhos e me faz perder os cílios, já não enxergo. Já não estranho estar
assim, desfigurado. Sinto distâncias. Reconheço o mapa em meu peito, mas
me perco novamente e não recordo a última imagem que vi no espelho. Volto
pra cama e me afundo, lentamente, me afundo. No fundo tudo se acaba.
Desapareço.
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