edição 4 | março de 2006
traição

 

revôo
valéria tarelho

dia desses
deixei um bilhete
na porta do freezer:

"fui ali ser feliz
e já volto"

aí saí afoita
ao encontro
dessa tal felicidoida

o curioso foi que a vi
frente a frente

o triste
é que voltei
como disse

 

odisséia 
virna teixeira

            "se vos ordenasse de soltar-me, com nós
            mais numerosos, apertai-me". (Canto XII)

o corpo de Ulisses,
amarrado
na embarcação que
circunda
Circe

desliza entre
recifes

         devaneios

 

em sentido inverso
o canto -
das sirenas
nos seus cabelos e olhos
tristes
perder-se

recuo, melancolia

não escaparia
incólume, a razão
na viagem

de retorno


 

 

raimundo, regina e o repentista 
ayla andrade

Numa dessas cidades ordinárias, do interior ordinário desse Estado, vive ou vivia, não se sabe ao certo, uma daquelas figuras também ordinárias; povoadoras que são de todas as cidades, que se quedam a vida inteira a contar histórias, sem nunca descobrirmos se são as tais verdadeiras ou oriundas da imaginação tão desacreditada desse tipo de homem.

 

Pois esse homem vivo ou defunto, não sei, pegava de uma viola e repentia de lá um caso que de tanto contado e recontado, toda a cidade já toava junta.

 

O caso nos fala de um improvisador que se embeveceu de uma, digamos assim, dama da noite.

 

Homem honesto, trabalhador, possuía família. Três filhos pequenos e mais um pra nascer. Não era da noite conhecedor, e embora tocasse lá suas cantigas, o fazia com os companheiros no pé da calçada e aos pés da boniteza que era sua Almerinda.

 

E a toada que o povo de cor contava junto era assim, segundo me chegou a conhecer:

 

"Rendido, um rebotalho de rabequista repensava e repensava:

 

A Rameira Regina roubara-lhe o regalo rápido como rebojo resfolegando qual uma rês, com a ralé ou com a realeza.

 

Raivoso como uma rapina repreendeu a rameira:

 

- retira-te desse ramo!

 

A rameira Regina, já repaginada para o randez-vous, rapou do roupeiro as roupas e ressentida ralhou:

 

- au revoir, Raimundo.

 

Resguardando ainda, nas reentrâncias, rimas rosas para a rameira Regina, relutante resistia o repentista.

 

Ressabiado, resistia.

 

Os resquícios de ramalhetes, ainda num recanto, reavivavam-lhe o remorso. Revirava-se no roncó. Remoendo, remoendo.

 

Retraído e revezado restou-lhe nada. O regato ressequiu, o roçado ruiu-se, nem romaria nem reisado retornaram. Rodou e rodou a vida em redondilhas.

 

Riscaria das rimas a radiante rameira?

 

Reconsiderava: Religião?, remédios?, roça?...

 

Ria-se.

 

Ridículo!

 

A renitente recordação da rameira remoeria os restos do seu resumido reviver, no Rio Jaguaribe ou em Rondonópolis.

 

Resolvido.

 

Reencontraria Regina. Revelando-lhe a realidade.

 

Regina, sou um retirante, um rufião, um retalho, um remedo. Reviraste a razão desse reles repentista remexendo o rabo num rala-bucho ruidoso, rompendo o riscado da rua.

 

Réu, ressurjo rezando réquiens de raro religiosos, mas rogo que reconsideres e eu revolvo ao teu rebolar, requentado repetidamente com os meus rivais.

 

E o rosto da rameira Regina ressurgiu-lhe redondinho e risonho:

 

- Raimundo... ".

 

 

Há quem diga, na cidade, que o velho repentista apenas conta sua história. Mas quem sabe se de tanto cantar apropriou-se da idéia e da paixão pela rameira, já que há sempre corações, no interior do mundo e de nós, que carecem de amor e cantoria sem fim.

 

Ayla Andrade, 28 anos, assistente social. Natural de São Paulo, mas à vontade no Ceará. Ex-integrante do grupo de poesia e artes plásticas "Parafernália", que atuou em Fortaleza de 1997 a 2000. Na época, mais dedicada às artes plásticas do que à escrita, mas arriscando alguns escritos nos zines do grupo, como Z Parafernália. Com a morte da "Parafernália" e sucessivos enterros depois, decide lançar o zine "Dama da Noite - Apontamentos sobre outros universos que não o seu". Contendo poesias, infogravuras, ilustrações e dor. Participou das Rodas de Poesia no Dragão do Mar e dos recitais da Bienal do Livro de 2002. Participou das récitas de lançamentos das revistas Arraia Pajeúrbe 03 e Gazua 00, onde teve publicado o poema "Inacabada". Lançou o cd de poesias + samplers Gravidade do Som com Uirá dos Reis, em 2004. Tem contos publicados no sítio Releituras e na e-revista Corsário. Participou, com Henrique Didimo, do Projeto da Funcet "Inéditos e Dispersos", em setembro de 2005. Tentando insistentemente lançar o livro de poesia Flor de Espinhos e outro de contos, ainda sem título. Atua na ONG "Mediação de Saberes", na produção do "Programa Poesia em Revista" que acontece no CCBNB, mensalmente.

 

surpreeeeesa...
jeanette rozsas

Ei, que é isso, todos aqui olhando pra mim. Será que morri? Ou estou no hospital de novo. Esses meninos, ai, ai ,ai, o que vocês estão fazendo aqui? Eu estava dormindo, não dormi nada de noite, nunca durmo, peguei no sono de manhãzinha. Bom-dia, claro que estou bem, por quê? Chama a Xucra que eu quero me levantar. É assim que eu chamo ela e vou continuar chamando, Ledinha, não adianta mandar eu ficar quieta. Desisti de aprender os nomes, tantas já passaram, então é Xucra e pronto. São  iguais, malvadas e brutas, só vocês que não acreditam. Eu? Difícil? Difícil é chegar aos noventa e morar sozinha com uma xucra que muda a toda hora, e vocês que quase não vêm me visitar. Quatro filhos e pra quê? Acabar sozinha, jogada nesse apartamento. Não estou sendo ranzinza, não, Marta, vocês não sabem o que é solidão, um dia vão ficar velhos, já estão quase, olha o Geraldo, já sessentão e avô. Aí eu quero ver. Bom, eu não vou estar mais neste mundo, mas vou rir lá de cima, vocês vão se lembrar de mim. Será possível que não tem um canto na casa de nenhum de vocês? Eu não vou durar muito, não, seria só por um pouquinho de tempo. Um colchão num canto qualquer e está muito bom. Eu sei, eu sei, cada um tem sua família, as crianças fazem barulho, os cachorros, os namorados, o entra e sai, mas quem liga? Prefiro a ficar aqui tão sozinha, nas mãos dessas xucras que não tem paciência. Pare de falar nessa bobagem, Geraldo, não vou para casa de repouso alguma, tenho meu apartamento e o dinheiro por enquanto é meu. Só depois que eu me for é que vocês botam a mão. Eu sei, eu sei, vender o apartamento e com isso pagar a casa de repouso melhor da cidade, com todos os cuidados, durante as 24 horas do dia. Sabe qual o nome disso? Asilo. Não criei quatro filhos pra acabar num asilo. Fico aqui até o fim. Ledinha, você que é a mais velha, não arranja um canto para a mamãe? E você Gustavo, meu caçulinha, meu dodói, que tal um espacinho pra sua velha? Não? Ninguém? Tá bom, mas ainda não entendi por que vocês estão aqui. Nossa, quanto presente. O que é isso? Meu aniversário? Desculpa, meninos, mas não estou lembrando. É hoje? Não? Uma surpresa? O que é, vão falando, quero saber. Dá aqui a caixa, deixa eu abrir. Que vestido lindo, Marta. E sapatos novos, Geraldo! Por que tudo isso? Deixa eu ver o que a Ledinha tem aí. Ai, um colar de pérolas, minha filha, pra que você foi gastar tanto. Não são verdadeiras? Mas parecem. E meu Gustavinho, deixa a mamãe ver o que você comprou para mim. Ah, que lindo roupão! Tão macio, dá vontade de ficar agarradinha nele. Obrigada, meu filho, obrigada vocês todos. Vou, sim, para o banho e depois quero pôr as roupas novas. Vai ter festa com bolo e salgadinhos e doces, como todo ano? Mas cadê seus filhos? Aniversário sem os netos não tem graça. O quê? Ah, não é aniversário, é uma surpresa. Vocês não querem me contar, por quê? Senão estraga? Entendi, então, vem aqui, Xucra, me leva para o banho que quero ver logo essa tal surpresa. Isso, isso, com calma, mulher, desse jeito eu caio. A água menos quente, assim, não, um pouquinho mais fria. Esfrega com cuidado, você sabe qual é a surpresa que os meninos vão me fazer? Não? Sabe sim, danada, estou vendo o teu risinho. É coisa boa, é? Já sei. Um deles vai me levar para morar junto. Não? Não é? Então, o quê? Ai, você está me beliscando. Está sim, então eu não senti? Enxuga com calma, mulher de Deus, aos noventa dói tudo, até a pele. Pega o vestido com jeito, pra não amassar, isso, primeiro um braço, ai, passou, agora o outro. Não me machuca, veste devagar. Ah, isso, deixa eu ver no espelho. Que vestido bonito! Agora as meias, os sapatos e o colar. Os meninos gastaram de verdade nesse meu aniversário. Hã? Não é meu aniversário? Então, por que tanto presente? Surpresa, surpresa, todo mundo fica só dizendo surpresa e ninguém me conta, já estou ficando nervosa. Não puxa o meu cabelo, menina, desembaraça com cuidado. Pronto, assim está mais do que bom, chega, pára de me cutucar, de mexer em mim. Pára! Deixa eu ver como ficou: hmmm, está bom, muito bom para uma velha que já viveu demais, gostei. Chama os meninos, agora. Certo, me senta na poltrona enquanto eu espero. Fala baixo, malcriada, não precisa gritar que não sou surda, viu?

 

Hã, hã, acho que cochilei, ah, meninos, olha como ficaram bonitos os presentes. Coube tudo direitinho, estou chique? Vamos aonde? Cadê meus netos? Não vêm? Porque não? Eles sempre vêm assoprar velinhas com a vovó e tirar fotografia. Não é meu aniversário? Então o que é? Calma, me levanta devagar, Geraldo, minhas juntas têm noventa anos. Ai, hã, ai, assim, pronto, vamos devagarinho, Ledinha segura meu outro braço. Isso. Para onde que nós vamos, hein? Gustavo, que mala é essa na sua mão. A minha? E por que a Marta está levando a minha televisão? E a Xucra, o que está fazendo com o meu rádio? Espera, deixa eu descansar um pouco. Pronto, vamos. Mas para onde? Surpresa? Já sei. Vou para casa de um de vocês, não é? Eu sabia, meus filhos queridos, eu sabia que vocês não iam abandonar sua velha mãe, finalmente Deus ouviu minhas preces, obrigada Senhor, me dá um lenço alguém aí que estou chorando, velha boba que sou, mas é que estou tão feliz, tão aliviada. Vou para a casa de quem? Ledinha? Geraldo? Marta? Gustavo? Por que vocês não respondem, hein? Por que não me olham? Não quero entrar nesse elevador, não vou sair dessa casa, me soltem, me deixem, não quero, não me empurrem, eu não vou, eu não vou. Do que você está rindo, Xucra maldita? O que você disse? Que eu me acostumo logo? Hein? Não ouvi, a porta do elevador está fechando, fala depressa. Onde eu vou me acostumar, onde? Esperem, deixem a Xucra me dizer...

 

Jeanette Rozsas, advogada e escritora, vem recebendo inúmeros prêmios em concursos literários, inclusive no exterior. Participa de várias antologias e sites de literatura. Publicou com o grupo Contares, do qual é fundadora, as coletâneas Contares, Outros Contares e Contares conta o Natal. Seu livro de contos Feito em silêncio (Ed. Vertente, 1996) obteve segundo lugar no concurso de obras publicadas, promovido pela Academia de Letras de São Lourenço. Em 2003 publicou Autobiografia de um crápula (Ed. Limiar), romance premiado no Concurso Literário Alphonsus de Guimaraens, da Associação dos Magistrados do Brasil/RJ e no Concurso Internacional Cidade de Conselheiro Lafayete-MG. Acaba de lançar, pela editora 7Letras (RJ), o livro de contos Qual é mesmo o caminho de Swann?, dentro da Coleção Rocinante. Tem trabalhos publicados na revista de contos Ficções, nas revistas Germina, Bestiário e Literatura, nos jornais Rascunho, de Curitiba, e Diário de Aveiro, de Portugal.

 

 

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