edição 4
| março de 2006
revôo
dia desses
odisséia
o
corpo de Ulisses,
devaneios em
sentido inverso
raimundo, regina
e o repentista Numa dessas cidades
ordinárias, do interior ordinário desse Estado, vive ou vivia, não se sabe
ao certo, uma daquelas figuras também ordinárias; povoadoras que são de
todas as cidades, que se quedam a vida inteira a contar histórias, sem
nunca descobrirmos se são as tais verdadeiras ou oriundas da imaginação
tão desacreditada desse tipo de homem. Pois esse homem
vivo ou defunto, não sei, pegava de uma viola e repentia de lá um caso que
de tanto contado e recontado, toda a cidade já toava junta.
O caso nos fala de
um improvisador que se embeveceu de uma, digamos assim, dama da noite.
Homem honesto,
trabalhador, possuía família. Três filhos pequenos e mais um pra nascer.
Não era da noite conhecedor, e embora tocasse lá suas cantigas, o fazia
com os companheiros no pé da calçada e aos pés da boniteza que era sua
Almerinda. E a toada que o
povo de cor contava junto era assim, segundo me chegou a
conhecer: "Rendido, um
rebotalho de rabequista repensava e repensava: A Rameira Regina
roubara-lhe o regalo rápido como rebojo resfolegando qual uma rês, com a
ralé ou com a realeza. Raivoso como uma
rapina repreendeu a rameira: - retira-te desse
ramo! A rameira Regina,
já repaginada para o randez-vous, rapou do roupeiro as roupas e ressentida
ralhou: - au revoir,
Raimundo. Resguardando ainda,
nas reentrâncias, rimas rosas para a rameira Regina, relutante resistia o
repentista. Ressabiado,
resistia. Os resquícios de
ramalhetes, ainda num recanto, reavivavam-lhe o remorso. Revirava-se no
roncó. Remoendo, remoendo. Retraído e revezado
restou-lhe nada. O regato ressequiu, o roçado ruiu-se, nem romaria nem
reisado retornaram. Rodou e rodou a vida em
redondilhas. Riscaria das rimas
a radiante rameira? Reconsiderava:
Religião?, remédios?, roça?... Ria-se.
Ridículo!
A renitente
recordação da rameira remoeria os restos do seu resumido reviver, no Rio
Jaguaribe ou em Rondonópolis. Resolvido.
Reencontraria
Regina. Revelando-lhe a realidade. Regina, sou um
retirante, um rufião, um retalho, um remedo. Reviraste a razão desse reles
repentista remexendo o rabo num rala-bucho ruidoso, rompendo o riscado da
rua. Réu, ressurjo
rezando réquiens de raro religiosos, mas rogo que reconsideres e eu
revolvo ao teu rebolar, requentado repetidamente com os meus
rivais. E o rosto da
rameira Regina ressurgiu-lhe redondinho e risonho: -
Raimundo... ". Há quem diga, na
cidade, que o velho repentista apenas conta sua história. Mas quem sabe se
de tanto cantar apropriou-se da idéia e da paixão pela rameira, já que há
sempre corações, no interior do mundo e de nós, que carecem de amor e
cantoria sem fim.
Ayla
Andrade, 28 anos, assistente social. Natural de
surpreeeeesa... Ei,
que é isso, todos aqui olhando pra mim. Será que morri? Ou estou no
hospital de novo. Esses meninos, ai, ai ,ai, o que vocês estão fazendo
aqui? Eu estava dormindo, não dormi nada de noite, nunca durmo, peguei no
sono de manhãzinha. Bom-dia, claro que estou bem, por quê? Chama a Xucra
que eu quero me levantar. É assim que eu chamo ela e vou continuar
chamando, Ledinha, não adianta mandar eu ficar quieta. Desisti de aprender
os nomes, tantas já passaram, então é Xucra e pronto. São iguais, malvadas e brutas, só
vocês que não acreditam. Eu? Difícil? Difícil é chegar aos noventa e morar
sozinha com uma xucra que muda a toda hora, e vocês que quase não vêm me
visitar. Quatro filhos e pra quê? Acabar sozinha, jogada nesse
apartamento. Não estou sendo ranzinza, não, Marta, vocês não sabem o que é
solidão, um dia vão ficar velhos, já estão quase, olha o Geraldo, já
sessentão e avô. Aí eu quero ver. Bom, eu não vou estar mais neste mundo,
mas vou rir lá de cima, vocês vão se lembrar de mim. Será possível que não
tem um canto na casa de nenhum de vocês? Eu não vou durar muito, não,
seria só por um pouquinho de tempo. Um colchão num canto qualquer e está
muito bom. Eu sei, eu sei, cada um tem sua família, as crianças fazem
barulho, os cachorros, os namorados, o entra e sai, mas quem liga? Prefiro
a ficar aqui tão sozinha, nas mãos dessas xucras que não tem paciência.
Pare de falar nessa bobagem, Geraldo, não vou para casa de repouso alguma,
tenho meu apartamento e o dinheiro por enquanto é meu. Só depois que eu me
for é que vocês botam a mão. Eu sei, eu sei, vender o apartamento e com
isso pagar a casa de repouso melhor da cidade, com todos os cuidados,
durante as 24 horas do dia. Sabe qual o nome disso? Asilo. Não criei
quatro filhos pra acabar num asilo. Fico aqui até o fim. Ledinha, você que
é a mais velha, não arranja um canto para a mamãe? E você Gustavo, meu
caçulinha, meu dodói, que tal um espacinho pra sua velha? Não? Ninguém? Tá
bom, mas ainda não entendi por que vocês estão aqui. Nossa, quanto
presente. O que é isso? Meu aniversário? Desculpa, meninos, mas não estou
lembrando. É hoje? Não? Uma surpresa? O que é, vão falando, quero saber.
Dá aqui a caixa, deixa eu abrir. Que vestido lindo, Marta. E sapatos
novos, Geraldo! Por que tudo isso? Deixa eu ver o que a Ledinha tem aí.
Ai, um colar de pérolas, minha filha, pra que você foi gastar tanto. Não
são verdadeiras? Mas parecem. E meu Gustavinho, deixa a mamãe ver o que
você comprou para mim. Ah, que lindo roupão! Tão macio, dá vontade de
ficar agarradinha nele. Obrigada, meu filho, obrigada vocês todos. Vou,
sim, para o banho e depois quero pôr as roupas novas. Vai ter festa com
bolo e salgadinhos e doces, como todo ano? Mas cadê seus filhos?
Aniversário sem os netos não tem graça. O quê? Ah, não é aniversário, é
uma surpresa. Vocês não querem me contar, por quê? Senão estraga? Entendi,
então, vem aqui, Xucra, me leva para o banho que quero ver logo essa tal
surpresa. Isso, isso, com calma, mulher, desse jeito eu caio. A água menos
quente, assim, não, um pouquinho mais fria. Esfrega com cuidado, você sabe
qual é a surpresa que os meninos vão me fazer? Não? Sabe sim, danada,
estou vendo o teu risinho. É coisa boa, é? Já sei. Um deles vai me levar
para morar junto. Não? Não é? Então, o quê? Ai, você está me beliscando.
Está sim, então eu não senti? Enxuga com calma, mulher de Deus, aos
noventa dói tudo, até a pele. Pega o vestido com jeito, pra não amassar,
isso, primeiro um braço, ai, passou, agora o outro. Não me machuca, veste
devagar. Ah, isso, deixa eu ver no espelho. Que vestido bonito! Agora as
meias, os sapatos e o colar. Os meninos gastaram de verdade nesse meu
aniversário. Hã? Não é meu aniversário? Então, por que tanto presente?
Surpresa, surpresa, todo mundo fica só dizendo surpresa e ninguém me
conta, já estou ficando nervosa. Não puxa o meu cabelo, menina,
desembaraça com cuidado. Pronto, assim está mais do que bom, chega, pára
de me cutucar, de mexer em mim. Pára! Deixa eu ver como ficou: hmmm, está
bom, muito bom para uma velha que já viveu demais, gostei. Chama os
meninos, agora. Certo, me senta na poltrona enquanto eu espero. Fala
baixo, malcriada, não precisa gritar que não sou surda,
viu? Hã,
hã, acho que cochilei, ah, meninos, olha como ficaram bonitos os
presentes. Coube tudo direitinho, estou chique? Vamos aonde? Cadê meus
netos? Não vêm? Porque não? Eles sempre vêm assoprar velinhas com a vovó e
tirar fotografia. Não é meu aniversário? Então o que é? Calma, me levanta
devagar, Geraldo, minhas juntas têm noventa anos. Ai, hã, ai, assim,
pronto, vamos devagarinho, Ledinha segura meu outro braço. Isso. Para onde
que nós vamos, hein? Gustavo, que mala é essa na sua mão. A minha? E por
que a Marta está levando a minha televisão? E a Xucra, o que está fazendo
com o meu rádio? Espera, deixa eu descansar um pouco. Pronto, vamos. Mas
para onde? Surpresa? Já sei. Vou para casa de um de vocês, não é? Eu
sabia, meus filhos queridos, eu sabia que vocês não iam abandonar sua
velha mãe, finalmente Deus ouviu minhas preces, obrigada Senhor, me dá um
lenço alguém aí que estou chorando, velha boba que sou, mas é que estou
tão feliz, tão aliviada. Vou para a casa de quem? Ledinha? Geraldo? Marta?
Gustavo? Por que vocês não respondem, hein? Por que não me olham? Não
quero entrar nesse elevador, não vou sair dessa casa, me soltem, me
deixem, não quero, não me empurrem, eu não vou, eu não vou. Do que você
está rindo, Xucra maldita? O que você disse? Que eu me acostumo logo?
Hein? Não ouvi, a porta do elevador está fechando, fala depressa. Onde eu
vou me acostumar, onde? Esperem, deixem a Xucra me
dizer... Jeanette Rozsas, advogada e escritora, vem recebendo inúmeros prêmios em concursos literários, inclusive no exterior. Participa de várias antologias e sites de literatura. Publicou com o grupo Contares, do qual é fundadora, as coletâneas Contares, Outros Contares e Contares conta o Natal. Seu livro de contos Feito em silêncio (Ed. Vertente, 1996) obteve segundo lugar no concurso de obras publicadas, promovido pela Academia de Letras de São Lourenço. Em 2003 publicou Autobiografia de um crápula (Ed. Limiar), romance premiado no Concurso Literário Alphonsus de Guimaraens, da Associação dos Magistrados do Brasil/RJ e no Concurso Internacional Cidade de Conselheiro Lafayete-MG. Acaba de lançar, pela editora 7Letras (RJ), o livro de contos Qual é mesmo o caminho de Swann?, dentro da Coleção Rocinante. Tem trabalhos publicados na revista de contos Ficções, nas revistas Germina, Bestiário e Literatura, nos jornais Rascunho, de Curitiba, e Diário de Aveiro, de Portugal.
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