edição 5 | abril de 2006
uma cor

 

10 poemas 
valéria tarelho

rouge

 

se o poema

assalta o cinza

de surpresa

 

a cor [neutra]

explode em outra

à queima-roupa

 

vermelho-feel-me

abala

na crime scene

 

 

 

martírio ao alvo

 

o poema em punho

tem dois tons 

tirantes ao cinza

:

um saco à luz do dia

outro aponto

em noites frias

de chuva [pl]ácida

 

 há uma mistura de ambos

- tendendo ao chumbo -

quando a palavra [a ponto de bala]

nubla o dedo no gatilho

 

geralmente essa última

- plúmbea -

é a que trago na agulha

e atiro [certeiro]

na nuca da folha pálida

[pelada de medo]

 

a virgem ruge

espargida de vermelho

 

 

 

chamado


o branco

encobre cores

que a brasa abraça

e abrevia em cinzas

 

havia um poema

na folha em chama

 

há meus ais

nos sinais de fumaça

 

 

 

blue note

 

ouço um blues
e busco
verdes dreams
no lusco-fusco

: qualquer mint
que se aproxime
ao [gradiente]
relva-fresca-tua-iris

atrás das lentes
lembro:
era eu
no espelho green

ante a mim
- and so mines -

: your eyes

[olhos tão meus
just once]


note:

a noite tem a nuance do teu nome
escorrendo pela face

 

 

 

portrait

nem tão triste
que me apague
nem alegre a ponto
do branco
causar espanto

poso na estante
no indelével estilo
amarelo-verniz
[impermeável]

vão-se os dentes
fica o velho retrato:
permanente
sorriso de giz

 

I'm sad again

trago na ponta dos dedos
teus traços
e ainda guardo nos lábios
teu gosto
me ocorre o som da tua voz
toda vez que a languidez da chuva
entoa um blues no telhado

[chove
e eu aqui, à toa
você aí, então]

saudade de teus azuis
cingindo
meu verso nublado

confesso:
I'm crying in the rain

 

happy hour

há uma hora azul
permeando de poesia
minha existência cinza;
uma hora hortênsia
que se abre em fins de tarde
(maybe in my mind)

existe
(I think)
esse instante celeste
ornando de safira
o meu cenário sáfaro

e nessa hora H:
água-marinha
azulzinha
azul piscina
minha torpe sina
- cinza-sozinha -
é aleg(o)ria
turquesa-hope

 

 

danúbio azul

blues, ouvia
de vez em quando.
choro, todos os dias.
meses atrás,
dançava tango.

olhos azuis-siameses,
há mais de ano
a (en)cantam.

em compasso de espera
pelo toque do gato,
ela marcou passo
a três por quatro.

"straussada",
val
sou.

 

 

 

 

azul-farne

ele tem
um olhar
azul-taful
que arde em
meu mar
de saudade.

ele vem
com contrastes
nas nuances
azul-leneu
azul-heu
azul-sandeu

ele está
ao meu alcance
usando o disfarce
azul-quase-teu

ele:
esse
azul-cinzel
azul-encarne
azul-meu-céu

navalha na carne.

 

 

 

 

divagando

 

bastaria

teu corpo

ondulando

de encontro

a minha

loucura

 

seria

íntimo-blue

o tom da pintura

dessa hora nua

:

vestida de vaga

brancura

 

 

alma 
verônica couto

Leu na revista sobre a palestra do antropólogo - os modos do povo Tixõpim. Prestou atenção na foto dele e fisgou-se na cor dos olhos. Hum. Sensação estranha, indo e vindo, que não a deixou continuar. Por isso, despediu-se. E, dia seguinte, seguiu o instinto mutante.

 

Alma foi lá na universidade e se inscreveu como ouvinte. Depois, entregou-se à bibliografia básica, viajou, consultou antigos namorados. Preparou-se. Tanto leu, que descobriu afinidades drásticas com os modos meio sem-modos dos Tixõpim.

 

Quase podia ouvir os cantos, sentir o cheiro das comidas, do úmido das casas de palha pajuçara, os tremores dos ritos sangrentos de passagem. Os Tixõpim, desconhecidos, haviam atravessado a história do país e o tempo, nômades e inextinguíveis. Desembarcavam agora cúmplices e assemelhados nas fantasias dela, que lhes percebia nitidamente o segredo.

 

Segredo publicado e que era o tema mesmo de que ia tratar o professor. Sobreviveram mais e melhor os Tixõpim camaleônicos, tomando e vestindo doutras tribos os traços todos, físicos e místicos, as dores e as vontades, o corte de cabelo e até os ódios que não eram os seus. A ponto de, em alguns casos, parecer que em toda a parte tudo foi Tixõpim; e a ponto de não se saber mais o que era, realmente, Tixõpim. Pode ser que esse dom de se desdobrar, infelizmente, também tenha facilitado o trabalho dos colonizadores, que sucediam os Tixõpim nas ocupações, e completavam a desfiguração. Mas isso - faça-se justiça - os Tixõpim não podiam prever, e Alminha também não viu. Viu o camaleão, viu a imagem dele ao seu lado, espelhada na poça da praça, e achou, de novo, que Tixõpim era ela.

 

No fim da apresentação, abaixou os olhos, como se fosse de vergonha - mas não tinha vergonha de nada. A bata rendada colava de suor, e a pupila de virgem Tixõpim oferecia-se pronta a ser catequisada. O professor tomou um susto, mas relativizou.

 

Ela deu naquela tarde mesmo. Perdidamente apaixonada. Tudo em nome da ciência e das possibilidades infinitas da verdade, encontravam-se depois dos jantares acadêmicos, para reescrever os tabus.

        

É verdade que ele mentia. E tinha uns exageros de vaidade, que ela tolerava solidária. Também abusava um pouco das generosidades dela. "Alminha, empresta o carro?". Ela emprestava, dias a fio, nem perguntava para quê. Sabia que essa prestança incomum causava dependência. Queria ele viciado - e carregou nos molhos especiais, óleos aromáticos, hortênsias, e muitas sugestões inteligentes para as pesquisas de campo dele.

 

Os amigos se pasmavam. Alma tinha jeito de menina, a cada ano mais jovem, num repertório sem fronteiras, e com a ambição esganada do artista, eventualmente perdoável. Arrojada nos riscos, sucumbia vez em quando na lama, aquele marinho pegajoso das madrugadas, liquidificador dos matizes fortes. Lance totalmente Tixõpim. Avisava, com ar grave: "Vou me jogar". E se jogava. Saía de lá resgatada por gente capaz de perceber, além das pernas bonitas, uma certa atitude essencial.

 

Só que, pela noite, acontecia muito da Alma olhar outra vez uma superfície reflexiva e, pronto, era um nada para se confundir, tão sinceramente convencida do que lhe dizia, nessa hora, algum desses novos amigos. Impossível distinguir quem falava. Pois que era exatamente isso mesmo que ela sentia, que ela queria dizer, que ela faria. Para não deixar dúvidas de que pensavam a mesma coisa, misturavam o resto. Os sentidos do mundo eram tantos, e ela podia senti-los todos.

 

Tudo sem dia seguinte. Lavou, passou, estava outra. Acordava satisfeita com a vida, e num degrau a mais da admiração que a tomava, por si mesma. Da esbórnia, sobravam livros de tiragens limitadas, presentes personalizados, menções honrosas na internet, projetos futuros e um extenso caderno de telefones e e-mails. Alma construía uma rede de encantados, livres eles, e ela também, para as horas de precisão.

O professor era em linha reta. Não demorou muito, teve medo daqueles modos, vendo espapaçar o mundo; muita passoca amor moída. E Alminha não pôde concluir a proposta do doutorado sobre os Tixõpim. Consolou-se, contudo, com uma rara coleção de artefatos originais, agora dispostos na prateleira da sala, e com os agradecimentos especiais que ele fez a ela no seu último livro. "À Alma e aos seus olhos furta-cor, que os de espírito cordial adoram sem julgar". E isso basta pra ela.

 

 

rouge 
virna teixeira

Vestido turco de lantejoulas. Batom carmim. Esmalte Revlon.

Um coração vermelho de cristal Swarovksi. Bloody Mary

Queen of the Scots. In my end is my begginning.

O planeta Marte, visto a olho nu. Bélica.

A paixão sua pedra de toque: dois rubis

indianos presos nas orelhas, um cinturão de diamantes -

também a frieza é humana. Não há visão sem fogo,

é incandescente a fúria, a labareda. A cor púrpura, império.

Nobreza. Veludo. Um buquê de magnólias.

 

 

herança de amores negros
eliana mora

nuvens góticas

de um negro estranho em dimensões opostas

colidiram

da explosão cobriu o escuro um raio

exótico

 

engravidado

à luz doou estrela dançarina

de estética diáfana 

e mente libertina

 

musa

cor de cinza prateado

guardiã eterna de um amor caótico

moderno

 

[e apaixonado

 

 

Eliana Mora nasceu no Rio de Janeiro. Formou-se na "Arte de Dizer" no Curso Olavo Bilac aos 17 anos. Jornalista, trabalhou em revista, rádio, televisão, e faz assessoria de imprensa. Está no movimento modernista Poetrix, cuja primeira antologia já foi editada. E no grupo Escritas, com duas antologias. Com 152 poemas do período entre 1999 e 2002, Mar e Jardim é seu livro de estréia, editado em 2003.

 

 

8 poemas 
líria porto

as uvas estão verdes

 

arrumou amá-la

depois desistiu

 

munique é fria

e sobretudo

ele não tem

 

 

 

 

almodóvar

 

outubro outubra-me

e sempre de assalto

vestido encarnado

sapatos vermelhos

 

a rosa que dança

aberta no asfalto

tem cheiro de carne

tem jeito de chaga

o tango penetra-a

sangra-a cruel

 

 

 

 

amor ao primeiro eclipse

 

entre mim e o sol

parou um óvni

piscou o farol

 

pensei comigo

não tenho íntimos

no paraíso

 

desceu um verde

beijou-me a boca

falou julieta

 

tremi-me inteira

mordi-lhe a orelha

gemi r-o-m-e-u

 

e desvesti-me

 

 

 

 

atração

 

são joão tão bonito

naquela bandeira

e eu tão aflita

 

entrei na fogueira

a vida era boa

tirei tal aproveito

 

subi no seu colo

deitei no seu leito

queria um beijo

 

primeiro da fila

dos seus olhos verdes

bebi clorofila

 

agora moreno

não sei de mais nada

paixão é veneno

 

 

 

 

imensidão

 

no azul a liberdade

de voar como se queira

mudar de forma lugar

recortar bordas e beiras

trovejar soltar faísca

permitir-se o arco-íris

o sol as nuvens as pipas

os aviões pára-quedas

as asas deltas

delícias

 

 

 

 

a cor azul-escura do cobalto

 

pode ser bomba

pode ser míssil

pode ser íngua

debaixo da língua

 

se houver tempo

registre-se o fato

se não o houver

faça-se o possível

no verso na rima

no estribilho

 

pode ser bomba

pode ser míssil

pode ser íngua

debaixo da língua

 

engula-se a saliva

e o desatino

 

 

 

 

é um deus-nos-acuda

 

quem lá no céu esparrama

as nuvens depois do almoço

semeia no azul barroco

flocos e flores brancas

 

tem santo pra todo lado

tem anjo a fazer bagunça

a espalhar no assoalho

algodão doce e açúcar

 

menino deus dá risada

entre as penas e plumas

 

 

 

 

achados e perdidos
 
um verso azul
de rima celeste
daquelas afundadas
quando o mar se encrespa

um verso vermelho
na ponta do punhal
qual caldo borbulhante
no peito do amante

um verso verde
jogado no deserto
a morrer de amores
entre os galhos secos

um verso amarelo
qual pena de canário
deixada na gaiola
pelo gato inácio

um verso branquinho
caído da minha asa
em tempo longínquo
quando eu era o máximo

 

Líria Porto. Professora, mineira, vive em Belo Horizonte. Inédita, tem poemas publicados no Cronópios e na Germina - Revista de Literatura e Arte.

 

 

de veludo e sangue 
marize castro

Porque declino do seu amor, o véu das torres me invade.

Já engoli espermas. Já voei muito alto.

Aos santuários de meninos-lodos e meninas-ostras.

 

Neste hemisfério, o tempo é vermelho.

A fé: andrógina. A inocência: anônima.

O amante: cego e corcunda.

 

O meu leite rega a flor que o inimigo trouxe.

Aqui não há solidão

há bosques de lágrimas

unicórnios reunidos para falar de amor

aranhas flutuando num mar

de veludo e sangue.

 

 

Marize Castro (1962), poeta, jornalista, autora dos livros Esperado ouro (2005), Poço. Festim. Mosaico. (1996), Rito (1993) e Marrons Crepons Marfins (1984). Tem textos publicados em revistas nacionais e internacionais, como as norte-americanas International Poetry Review e The American Voice. No Brasil, a poeta publicou em jornais e revistas como Exu (BA), Nicolau (PR), O Galo (RN), Estado de São Paulo (SP), Jornal do Brasil (RJ) e Poesia Sempre (RJ). Sobre sua poesia disse Haroldo de Campos: "Em seus versos há algo de fundamental, algo entre o belo e o verum, a verdade em beleza, um cuidado especial com a síntese, um encontro com a poesia".

 

 

 

 

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