edição 9 | agosto de 2006
sonhos

 

1 poema
virna teixeira

no sonho era um ford antigo desgovernado

em uma cidade estrangeira

na direção do mar

uma ponte partida, colisão de corpo e metal na água

instinto de nadar até a margem

trâmite & perda, trânsito

de plutão retrógrado

(esgotamento)

 

& ter que consolar o luto, afogar a mágoa em recuo

subir outra vez a mesma ponte

recomeçar no mesmo ponto

após os destroços

 

 

memórias da divina tragédia
cláudia borba

De repente meu quarto se tornou um tanto claustrofóbico e as idéias na minha mente não cabiam mais dentro da minha cabeça, elas precisavam sair. Então, como se abrisse uma gaveta, fechei meus olhos e joguei os pensamentos no chão. 

 

Dormi 24 horas.

 

Nenhuma preocupação, não atendi a telefonemas de ex-namorados enchendo o saco querendo me comer para depois dar no pé (ah aquilo era tão previsível que o melhor que eu fazia era gozar sozinha). E não liguei para o trabalho para avisar se estava viva ou morta, simplesmente tomei uns comprimidos: anticoncepcionais, aspirinas, purgantes, tudo o que tinha dentro do espelho do banheiro, misturei com um pouco de cachaça, whisky e balas de goma.  

 

A princípio o sono custou a vir, mas quando chegou, foi uma pseudomorte. Era um estado de consciência inconsciente ou inconsciência consciente, ai não sei bem... ó meu terapeutinha safado, que só queria abusar de mim e tomar todo meu dinheiro. 

 

Só sei que quando vi, meu corpo flácido, meus peitos moles e semi-caídos estavam lá embaixo e eu, como uma musa angelical, saí daquele amontoado de carne, que julgava ser eu, com uma camisola sexy branquíssima como aquelas de propagandas de sabão em pó, esvoaçante e até um certo ponto amedrontadora. 

 

Saindo do quarto e deixando aquela senhorita solteirona gorda caída no chão como uma bolota signo de filme de terror, segui pelo corredor e ao olhar no espelho meus olhos cintilavam um tom esverdeado, meu cabelo era macio, meus peitos eram enormes e não havia pentelhos na virilha. Realmente, era uma musa, musa, musa, musa!  

 

Alimentada pelo ego, continuei a desvendar a leveza daquele instante pela casa que antes parecia tão escura e fria. Os móveis estavam em melhor estado do que o normal, e estranhamente organizados e sem poeira. Passo a passo, cheguei à cozinha e lá algo mais ocorreu: Brad Pitt tomava café completamente nu e me cumprimentou em português. Depois da minha feliz surpresa o mais interessante foi foder com ele de forma intensa. Eu perguntava:  

 

— Mas e a Angelina? Cadê a tua mulher? 

 

— Ah, no stress, baby! Ela é lésbica! 

 

Num amontoado de situações fenomenais eu sentia um intenso êxtase naquele momento, tinha uma certa noção de que aquilo era sonho, mas não me importava, e não queria acordar. Preferia continuar sonhando do que ter que voltar à minha vidinha fútil com caras cheirando a cigarro vindo beijar meu pescoço. Argh! 

 

No meio desses pensamentos sonambulóides apareceu um velhinho: 

 

— Olá, moça! 

 

— Oi? Quem é? 

 

— Chame como quiser! Coelho Branco, Deus, Freud... o que quiser! Sou teu criado e criador! Teu terapeuta e símbolo signo da tua mente, vim lhe fazer uma proposta. 

 

— Hum, fala. 

 

— Você pode continuar vivendo no mundo dos sonhos para sempre, se quiser, mas terá que deixar a vida terrena. 

 

Encurtando o bate papo com o Todo Poderoso, porque não estou com paciência de escrever um romance no momento, aceitei, é claro, a proposta. Orgasmos múltiplos, homens pauzudos e eu uma gostosona? Imagina se não! 

 

Por um tempo indeterminado, fodi com muita gente linda e perfeita que nem eu. Todos eram inteligentes, mas, é claro, que não superavam meu Q.I. Todos fodiam do jeito que eu gostava, na hora que eu desejava. Eu comia o que eu queria e não engordava. Não tinha gente assaltando nem estuprando, a não ser que fosse por um bom motivo, caso eu quisesse ler uma notícia nova no jornal. Mas eu senti um vazio, vazio de não ter o inesperado, de não conseguir reclamar de algo que me surpreendesse realmente. Era o meu mundinho de fodelança, de loucura e só, mesmo inventando tragédias, sangues, guerras, era tão perfeito e imaginável.  

 

Falei com o velhinho da barba branca e desabafei pra ele tudo isso que eu acabei de contar, ele disse: 

 

— Se é assim, minha filha, de agora em diante eu mando aqui. Baixou as calças, tirou a dentadura e meio que me comeu não sei bem. Aquilo não era normal. Não desejei aquilo, mas ele continuou a meter aquele troço cheio de pele enrugada em mim e eu não entendia por que não conseguia gritar, nem bater nele, sei que eu fazia cara de sexy, olhava em direção a uma câmera, lambia os lábios e gemia feito uma doida: meu Deus! Eu estava num filme pornô! 

 

Acabada a atividade desagradável, fui tomar um banho de rio, ó aquele rio paradisíaco que eu sempre sonhei, mas ao entrar percebi que só restara lama! E meu corpo então?! Celulites, barriga de chope, espinhas, cabelo tosco! É, talvez a lama me fizesse bem... Fiquei ali por um tempo e deixei as lágrimas lavarem um pouco meu rosto atormentado.  

 

Quando decidi sair, percebi que estava envolta numa esfera de vidro transparente, onde comecei a bater e gritar: 

 

— Eu quero sair! Eu quero sair daqui! Eu quero sair! 

 

O senhor que tinha me comido antes voltou a aparecer e disse sorrindo com sarcasmo: 

 

— Ok, bela, você pode sair.  

 

E num flash back apareceram Angelina, Brad Pitt, Johnny Depp, Rick Martin, o bonitinho da novela das oito, entre tantos outros, até que eu acordei. 

 

Aliviada por um momento, desesperada em outro. 

 

O túmulo já havia sido fechado. 

 

— Filhos da puta!

 

(Final alternativo: Acordei de novo, de volta à vida normal.)

 

 

 

Cláudia Borba. Vulgo Pomba Suicida ou vice-versa, nasceu em 1985, em Porto Alegre. Escreveu, desenhou, pintou e criou diversas coisas que nunca foram expostas. Já pensou em formar uma banda, em organizar um projeto, lançar um zine, fazer um curta, montar uma peça teatral, escrever um livro, pular de pára-quedas e criar um cachorrinho. De fato, mesmo, escreve num tal de Pelotão Suicida, há 4 anos, blogue que criou com uma amiga de colégio, faz Letras, "cartuniza" e interpreta. A parte trágica que fique na memória e na ficção.

 

 

 

 

quero me casar com george clooney 
constança guimarães

Ela sonhava com astros de Hollywood. Sonhava em se casar com um astro de cinema. Desde mocinha, acordada ou dormindo, esse era seu projeto, seu desejo, seu futuro traçado e definido. Os pais, a princípio, achavam que isso ia passar, que com o tempo ela ia se interessar por meninos da rua, da escola ou, pelo menos, por galãs da novela das oito.  

 

Mas Cíntia era irredutível, só podia ser um astro de Hollywood. Imagina sonhar com um mortal! Nem pensar. Casar com alguém assim nem em sonho. Tinha até uma lista: os jovens galãs solteiros, os que se separavam, os mal casados segundo seu ponto de vista, e que iam se separar logo, e até os solteirões irredutíveis (possíveis de ser conquistados, achava ela, por um amor arrebatador e singelo como o que tinha para oferecer, aos 15). A lista era organizada, com recortes, datas, cidades, carreira, fotos e todo o histórico dos possíveis futuros maridos.  

 

A mãe se preocupava. Nem ela era tão bonita assim e o tempo estava passando. De mocinha virou moça e não mudava de idéia, nem em sonhos, devaneios, suspiros. "Que será dessa menina", pensava a mãe. E Cíntia aprendeu inglês, francês, espanhol. Falava que era uma beleza, com um acento fluente e sem pestanejar. Via todos os filmes e tomou tanto gosto que começou a ver todos e tomou tanto gosto que começou a ver filmes de vários países e tomou tanto gosto que começou a escrever e a viajar e a trabalhar em filmes e a dirigir filmes e parou, um dia qualquer, num festival europeu bem do lado dos astros de Hollywood.  

 

E daí, com um grito no quarto ao lado, a mãe acordou do seu sonho porque era a televisão que anunciava outro filme de um pop star e Cíntia, que mal falava português, gritava muito alto e suspirava mais alto ainda. E então, a mãe, muito nervosa, proibiu televisão naquela casa e mandou a menina pra rua. Fazer qualquer coisa, mas na rua. 

 

E a moça foi e sentou-se na calçada e choramingava e suspirava e quase sonhava de novo quando Álvaro chegou e sentou-se do lado, desenxabido como o quê. Mas, bem na real, ele começou a conversar e eles conversaram a tarde toda e todas as tardes seguintes também e ela lhe mostrou as listas e ele viu e ela falou dos astros de Hollywood e ele ouviu e foram ao cinema e ela gostou e a mãe a deixou ver televisão com  Álvaro do lado e eles se casaram e tiveram três filhos e ele deixou colocar nomes hollywoodianos e Cíntia, feliz da vida, continuou a fazer sonhando sua lista de possíveis maridos pop stars. E Álvaro nem liga. Acha a maior graça. 

 

Constança Guimarães (1969), mineira, mãe de uma linda filha paulistana, e jornalista. Prepara um livro, sem nacionalidade.

 

 

dois contos
vanessa maranha

contagem regressiva  

 

Vem. Você vem e me devassa. Vem, você chega e vai, não sei se volta, se gosta, se quis mesmo. Não me olha nos olhos, você nunca me olha nos olhos que é talvez para eu não ver o fundo irisado intransponível que te habita, ou o que de fato não há – nenhum sinal, nada, signo, símbolo, aceno, uma chama? Pálida? Evanescente? Não. Eu fico, não vou, não te amarro nem te encaro. Não diz. Você não diz nem que sim, nem que não, peut être? Pode ser. No que você nos fez, transformou, jogou? Que coisa informe sou eu agora? 

 

Corre dentro de mim sangue duro e ácido, sem crença, só nisso perene e exato. Queria muito, eu sempre quis muito, tudo, de tudo, de todos, sobretudo aquilo que nem você sabe. Sou de soslaio, e se bobear eu te pego e não solto, mastigo e engulo, não alivio não, cravo dentes unhas. 

 

Tua carne dura — bétula jacarandá tília. Tua carne narcose — é você me mostrando a treva em mim. Só queria isso: perder a memória dos meus muitos passados e viver presente.  

 

É que muito cedo as coisas cedem. Muito rápido elas se dissolvem oxidam, a idade avança e eu hoje nervosa como uma adolescente pelo desnorteio das horas, esperando um telefonema dele. Coisa breve, dar notícia, nenhuma resolução, me chamar, lembrar, ao menos. Ele tem 39 anos e eu, um tanto mais, não digo. Com alguma generosidade me darão bem menos anos do que tenho, talvez uns... melhor calar. Eu viúva, remediada sem grandes esplendores de viço, nem materiais, porque num dado ponto da vida, uma dessas interseções traiçoeiras, como nessa que pressinto estar agora, bem, num ponto anterior, perdi tudo, até a dignidade. Ele, firmeza de músculos, moreneza de pele, cabelos já grisalhando, uma beleza de homem. Pobre. Casado. Esposa de 33 anos, desleixadamente obesa, 5 filhos, e é a mim que ele procura, é comigo que ele se perde, e se encontra, e desvaira, para de novo se reencontrar, e me fazer encontrar qualquer coisa que há muito perdi também. Aqui ele vem todo e demora, mas demora tanto a ressurgir. 

 

Acontece que ela não sabe e eu não digo, porque me perfura a carne fazê-la sofrer, deixá-la saber. E sair como por aí, de mãos dadas? Com esse jeito de mãe e filho? Separar-me de que maneira, cinco meninos pequenos, nem ao menos dela um dinheiro extra para compensar? Nem ao menos uma beleza apresentável na mesa de um bar, para os meus amigos. Os peitos. E ela cobra e cobra fazendo as vezes da patroa que me malassombra em vida na casa já ruindo em que vivemos, a naja. E eu fujo, volto então para ela, quero, depois não quero mais. 

 

Ele traz flores sem luxo, catadas pelo caminho, vem vestido ralé mesmo, daquele jeito ralo e intenso e eu perco o rumo, a compostura. Digo que não, que o que ele tem mesmo é vergonha da minha idade. Ele responde que imagina!, jamais, que até me acha classuda demais para lhe fazer par. Ele não sabe, mas não me importa mais trajar a personagem. Trinta anos na faculdade, a reitora, ele mecânico, ele o que me resta de bom, de ruim, a pele pedindo mais (será que essa sede nunca se vai?), aqueles olhos que me espelham de certa forma tão bela, me devolvendo tonicidade, vontade, vaidade. Não me iludo, ele poderia tranqüilamente ter outra, outras, várias, mocinhas. Quase sempre de uma incompreensão total ao que digo, quase aéreo. Me iludo sim. No que me segurar? Ainda que ligeiro, mudo, passeia pelos meus adentros, sem saber. Sim, ele me ama. O telefone toca, mas não é ele. 

 

Um vestígio de traição no meu carro e a mulher encontrou. Eu a traio e não temo que ela saiba. Não pode nunca é saber com quem. Vai me gozar até a morte, me atormentar, fofocar por aí, falar para os meninos que dei agora para gostar de velha, capaz de nem ciúme sentir, a caninana. E a outra, cheiro de flores de ontem, o rosto encovado enquanto dorme, a morte correndo mais rápida nas veias. Mas quente. E uma tristeza sem jeito no modo como às vezes ela olha vago para as coisas, um olhar que me comove, me move, uma paciência, um toque mais certeiro, certeiras as sensações das coisas matinais, e ela, toda manhã, quando, cronologicamente, seria noite. Carência gulosa do que vive: ligo, sim.    

 

 

 

comer flor 

 

Tão absorta em si ela estava depois do sonho que o olhar permaneceu vago, embaçado, quase assustador, por um bom tempo. Fixo nalgum ponto infinito do qual, ela esperava, se salvaria. Acordou para a flor à sua frente. Uma bromélia pontiaguda e alaranjada com rajadas de vermelho leve em seu cerne. De repente, assim, sem mais, entrou na flor, tão selvagemente quanto a presumia, adentrando-lhe o silêncio e a luminosidade que lhe pareceram, naquele instante, a sua última escala de sofisticação. Foi se fazendo flor, alaranjando-se toda em gotinhas vermelhas, afinal, o seu centro. Num zanzar de luzes, sentiu-se a própria macieza pontuda. E tão macia ficou que de repente o susto. Então de volta, vaga, absorta, embaçada, incompetente, olhando novamente acordada aquela coisa folhuda à sua frente: a insuportável beleza, indecente perfeição de cor sedosa a lhe fustigar uma inveja que sentia brotar no ventre, encarando aquele ramo de espada que se flor pode ser mesmo lâmina. Mas a tal parecia incorruptível em sua beleza, coisa feita de um silêncio todo sussurros. Ah que ela, a mulher, sem se saber bromélia, de repente caiu. E, caótica por dentro, rendida finalmente ao ventre, sem sofisticação alguma, devorou a flor, numa tentativa incorporante de alguma beleza.

 

 

Vanessa Maranha (São Caetano do Sul-SP, 1972). Jornalista cultural, psicóloga, vive em Franca-SP. Participou de 3 antologias locais de contos. Publicou, em 2003, o livro Cadernos vermelhos, numa edição pequena, sob patrocínio do jornal onde presta serviços free-lance. Viveu na Europa, participou de cursos relativos à escrita criativa. Verificou que é impossível aprender em curso o dito creative writing. Foi finalista no "Prêmio Guimarães Rosa da Radio France Internationale em 2001", e classificada em primeiro lugar no concurso de contos "Realismo Fantástico Locos de Atar", na Argentina, em 1999. Em julho de 2004, venceu concurso de contos da Universidade Federal de São João Del Rei-MG e, em 2005, teve texto publicado no livro +30 mulheres que fazem a nova literatura brasileira, organizado por Luiz Ruffato e editado pela Record.

 

 

 

 

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