edição 12 | novembro de 2006
medo(s)

 

motivo para não dormir
marília kubota
 

todos os dias ela acorda

com tripas nos dentes e mordaça

porque  azul é antigo

olhando longe o céu de lavrador

 

entre restos de sonho, atos

dissolutos. nada se resolve todos os dias,

o dia todo mirar e admirar retratos

que captam a alma, a imagem

tratada duas vezes

a irrealidade aparece

e o mel é sol de antes

aparentemente distante

artificial

 

 

 

 

diário da chuva
mariza lourenço
 

ontem.


chove muito e eu não penso em fazer mais nada além de continuar sentada nesta cadeira, num canto escuro do quarto.

meu pai morreu, mas deixou sua cadeira. ele sabia das coisas.

esta cadeira é um ninho.

tenho medo de tempestades, mas a escuridão é velha companheira. gosto dela.

desde a barriga de minha mãe.

quando tenho medo, sinto raiva. uma raiva desordenada de tudo, sobretudo desta incompetência em lidar com meus pavores. quando fiz sete anos um bicho-papão enfiou-se debaixo da cama.

e nunca mais foi embora.

talvez esta seja uma boa hora para pensar nele e em sua ausência. embora o saiba presente do outro lado da porta. em maio é meu aniversário. o dele também. nosso inferno começa no mesmo dia.

e não tem data pra terminar.

chove ainda, mas é chuva mansa, de pouco barulho. o bicho-papão adormeceu sob a cama. do outro lado da porta, lá na sala, ele também dorme sobre o sofá.

como sempre.

de olhos abertos e sentada nesta cadeira, continuo acordada.

meu pai é que sabia das coisas.

esta cadeira é meu ninho.

 

 

 

 

 

medo da chuva  
roberta silva

Relampeava e todas as janelas tremiam com o vento. Um som ensurdecedor. Todo o estoque de borrachas vedantes não foi suficiente para silenciá-las. A casa era pequena, ainda assim, perdeu-se. Os relâmpagos previam onde estaria e era lá que a surpreendiam alucinada.

 

Custou a perceber a campainha. A tempestade ousaria tanto? Se lhe atendesse, como escaparia dela em seus poucos cômodos? Tocou novamente, antes que dissesse algo, ouviu: "Já estou a caminho, abra!". Instante final em que a presa exausta se entrega aos dentes da Coral. Abriu.

 

Não era a tempestade. Ele não passou da porta. Subiu até quase o topo da escada e sentou-se. Posicionou-a um degrau abaixo entre suas pernas, abraçando-a fortemente por trás. Falou-lhe sobre inevitabilidade. Contou sobre a mina de Chico Rei; 80 quilômetros chão adentro, cavados ao longo de uma vida inteira, muitas vezes longos caminhos onde se cabia apenas um homem só. Disse que esteve lá, não era lenda, percorreu o mesmo caminho. No caminho daquele rei, disse, sua-se a camisa, mas o ar é fresco. Chão adentro e o ar é fresco.

 

Mesmo que, no fim, lhe cortem a cabeça, seu caminho, muitas vezes negado, despistado, escondido por seus inimigos, um dia será descoberto. Por isso o ar em sua mina é fresco.

 

Ela contou seus pecados, não havia comprado a alforria de seus escravos, os havia traído quando lhe faltou o senso. Agora o inferno viera lhe cobrar a alma.

 

Ele riu: "Se o inferno a levar eu trago de volta". "O inferno é para sempre" — ela respondeu. "Já quebrei outros protocolos por sua causa, tantos que nem me lembro, não se preocupe, eu lhe trago de volta".

 

 

 

.

 

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