edição 15
| abril de 2007
jigoku Excetuados
os casos puramente orgânicos, o louco
é alguém que procurou forçar a libertação do aprendizado terrestre, por
indisciplina ou ignorância. Temos neste domínio um gênero de suicídio
habilmente dissimulado, a auto-eliminação da harmonia mental, pela
inconformação da alma
nos quadros de luta que a existência humana apresenta. Diante da dor,
do obstáculo ou da morte,
milhares de pessoas capitulam, entregando-se, sem resistência, à
perturbação destruidora, que lhes abre, por fim, as portas do túmulo.
A princípio, são meros
descontentes e desesperados, que passam despercebidos mesmo àqueles que os
acompanham de mais perto. Pouco a pouco, no entanto, transformam-se
em doentes mentais de
variadas gradações, de cura quase impossível, portadores que são de
problemas inextricáveis e ingratos. Imperceptíveis frutos da desobediência
começam por arruinar o patrimônio fisiológico que lhes foi confiado na
Crosta
da Terra, e
acabam empobrecidos e infortunados. Aflitos e semimortos, são eles homens
e mulheres que desde os círculos terrenos padecem, encovados em
precipícios infernais, por se haverem rebelado aos desígnios divinos,
preterindo-os, na escola benéfica da luta aperfeiçoadora, pelos caprichos
insensatos. André
Luiz Entrou
na revistaria temeroso. Grupos de jovens, com atrevidos topetes ruivos e
louros riam ruidosamente em
torno das mesas. O que faria aquele ojisan no meio da molecada? Se
tirassem os olhos dos tabuleiros ririam do tiozinho. Mas os topetudos
gritavam e gargalhavam apenas para o grupo fechado. Antes assim. Procurou
na estante de revistas e livros o título que queria. O vendedor
aproximou-se. -
Senhor, deseja alguma coisa? Ele
se assustou. Quis fugir, como um oni à luz do sol. Não podia: o
vendedor estacou diante dele como um dois de paus. -
Eo... Falava
mal português. Podia perguntar por um endereço. - Dokoni Iguaçu desuka. O
vendedor não ia entender. Tinha que pensar como era aquilo, onde é, estava
perdido. - Eo
perdi. O
vendedor fez cara de desentendido. Eu me
perdi. Onde fica a Rua Iguaçu?
Isto que devia perguntar. Tão fácil, mas o vendedor impaciente arrumava as
revistas e livros da estante como se não tivesse tempo pra ele.
-
Perdeu o quê , senhor? - Eo
perdi... Tinha
ido ali para quê, afinal? -
Perdeu alguma coisa aqui, senhor? -
...libro... hon desu
ne. O
vendedor chamou a mulher japonesa atrás da caixa registradora.
-
Mitsue, vem cá. A
mulher veio, com passos rápidos de gueixa. -
Este senhor japonês perdeu um livro aqui, parece. Você pode atender
ele? -
...ie... Eo faro porutuguesu.
A
mulher franziu a testa e apertou os olhos. - Não
entendo muito bem japonês. Mas posso tentar ajudar. Ojisan, perdeu um
livro? Agora
as coisas tinham se complicado. Ia ter mesmo que pedir o livro e explicar
porque queria ler ele. -
...ie, Mitsue-san. Eo quero um
libro. Mitsue
desfranziu a testa e sorriu. - Ah,
perfeito. Que livro ojisan
quer? -
Sobre guerra... otokonoko. - Um
livro que tem um personagem menino que conta a história da guerra? Não é
aquele, Carlos? -
Acho que é, disse Carlos, o vendedor, marido de Mitsue. Retirou um título
de história em quadrinhos entre os livros da
estante. -
...so desu... hai... Reconheceu
o personagem menino. Era ele. O menino, cujo pai era pacifista na Segunda Guerra*. Ia
ajudar ele a entender. Começou
a olhar os quadrinhos desenhados. Não conseguia falar em português, mas
havia aprendido a ler: a fome das famílias pobres, as injustiças contra os
pacifistas... Lembrou
o pai, orgulhoso de ser um súdito do imperador. Mesmo em Bastos, no interior de
São Paulo, tinha orgulho da katana de aço brilhante. No leito
de morte, disse: - Não
perdemos a guerra, nunca esqueça**. A espada é sua.
Até
há pouco tempo acreditava que mesmo humilhado, seu país havia sido
vitorioso. Apenas quando os filhos e netos começaram a zombar dele,
achando que já não tinha juízo por considerar-se um legítimo súdito do
imperador, seu coração baqueou. Os
netos falaram desta história em quadrinhos muito famosa. Teve curiosidade
em conhecer. - ...ii desu
ne... Ele
disse, sorrindo amarelo e pagando o livro. O pai do menino da história
faleceu, como o dele. O de
mentirinha foi morto pela bomba. O dele havia deixado o corpo fazia 40 anos. Porém seu espírito
continuou nele por muito tempo. Sentia-se nobre por ter sido herdeiro de
sua espada. Filhos e netos já não se importavam nem em falar a língua
japonesa nem em reverenciar a tradição. Ele era kitigai. Velho louco. Atama no
dame. O
neto mais novo disse que havia lido uma história que ele ia gostar. Aos
poucos se deixava envolver pela história do menino: a escravização de
coreanos e chineses, a
lavagem cerebral nas escolas japonesas, o cogumelo... Seu coração
estremeceu. Quando terminasse de ler o livro o espírito de seu pai talvez
pudesse descansar.
Jigoku -
inferno Ojisan
- tio,
senhor de idade, ou, conforme a grafia, "tiozinho" (pejorativo),
desconhecido Oni
-
demônio xintoísta Dokoni
Iguaçu desuka - onde
fica a Iguaçu hon
desu ne - é um
livro né ie
-
não otokonoko
- menino so
desu - é
isto hai -
sim katana
-
espada japonesa ii
desu ne - está bom kitigai
- maluco,
louco Atama
no dame - a
cabeça não funciona *Gen
Pés Descalços, história em quadrinhos de autoria de Keiji
Nakazawa. **Era
um katigumi, um vitorista. Acreditava na vitória do Japão mesmo após a
rendição aos países aliados. O confronto entre katigumi e makigui
(derrotistas) no Brasil resultou no episódio Shindo Renmei (Liga dos
Súditos do Imperador).
ponto cego
Duas vezes por semana, às
três da tarde, ela desligava o celular e desaparecia por quatro horas.
Chegava em casa às sete e não dizia nada, não respondia nenhuma pergunta.
Antes não era simples assim, havia questionamentos, olhares, brigas. Nunca
disse onde esteve. Encontros secretos, orgias, serviços voluntários, a
imaginação dos que a cercavam rotulavam-na cada instante de uma coisa.
Meio santa, meio puta... quem sabe? Sim, ela tinha amigos.
Pessoas em quem confiava, a quem respeitava e era grata. Os poucos que
sabiam da doçura atrás de seus gestos toscos, seus talentos e virtudes
mergulhados no mar de defeitos que sobressaiam à sua aparência disforme,
desleixada e andrógina. Estes não sabiam onde encontrá-la naqueles
dias. Seus filhos, carentes,
criados pela avó doente e tias rancorosas enquanto ela trabalhava,
sedentos do colo culpado da mãe, loucos por testar novas manhas e guiá-la
pela casa realizando seus desejos infantis, nem desconfiavam onde podia
estar. Oito horas semanais de ponto cego onde a desnaturada não podia ser
localizada para salvá-los do horror de não ter o cereal misturado à
quantidade exata de leite. Seu chefe, tão cheio de
razões superiores para monopolizar seus minutos com tarefas absolutamente
imprenscindíveis e urgentes, não era capaz de saber seu paradeiro. Nos
dias negros, nem sob ameaça de demissão, de colocar pessoalmente o seu
nome na lista negra de todas as maiores empresas do ramo, faziam-na
falar. Ameaças de infarto, empregos
por-um-fio, namorados enciumados, ex-maridos chantagistas, amigos
carentes, diarréias escolares não tiravam dela um olhar, um comentário,
uma escusa que desse pista, esboçasse um ponto-de-partida para descoberta
de seu destino nos momentos de neve eterna da sua existência
impecavelmente cristã. Especulações, conchavos,
tramas, pequenas traições, grandes, segredos revelados em troca, torturas
psicológicas dignas de aterrorizar mestres chineses não quebravam o
silêncio kamicase de sua boca samurai. Sua leitura, minha editora, minha expulsão da revista, minha escrita sob risco de ser rotulada como fraude, clichê, piada velha, não são capazes de revelar o que realmente acontecia com ela naqueles momentos. Sequer posso dizer se tinha ou não um motivo nobre por trás disso.
toda fuga é um caminho de volta E todas as cores se
misturam. Caleidoscópio. Como se houvesse neblina. Amanhece. Meus olhos
ardem e alguma coisa de gosto salgado arromba meus lábios. Decerto, são
lágrimas. Nítido, só o vestido vermelho. Nem ele. A lembrança
dele. E aquela mulher nem
combinava com vermelho. Era um tom pastel entre o azul e o lilás. Dormiu
de bruços em meu abraço, ombros largos, cabelo curto, parecia um homem.
Gestos bruscos. Unhas curtas. Uma nesga do vestido
vermelho pra fora da porta do carro. Talvez até varresse o asfalto. Com
fúria, nas curvas. A mesma com que curva, agora, a minha vida em direção
ao nada. Do nada se fez o nada. Sem
motivo. Se chovesse, eu abriria a janela e acreditaria que meu rosto se
molha com os pingos da chuva. Mas vai fazer sol de verão
vermelho. Talvez ela fosse vermelha e
o frágil encantamento com o qual revesti seus sorrisos a fizesse pálida e
entregue. Mas não era. Decerto que não. Se o fosse estaria aqui, ainda. E
não está. Estava perto da janela e
olhava o além do infinito. Colocou o copo no parapeito e procurou um
cigarro na bolsa. Ameaçou com a fumaça a distância que nos separava.
Tossiu. Eu ri e ela me viu. Sorriu. Dançamos e ela cheirava a lilases.
Talvez por isso eu pense que não era vermelha. Mas foi vermelha no
elevador, quando me beijou. Foi azul, quando se despiu do vermelho. Foi.
Acabou. Volto pra casa e esqueço
tudo isso. Compro um vestido vermelho pra minha mulher. Peço que corte os
cabelos e as unhas. Arrisco até mesmo que ela bata a porta e deixe outro
rastro de vermelho no azul da manhã. Talvez eu chore. Por ela, por elas. Por mim.
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