edição 15 | abril de 2007
fuga

 

são rodrigo
romina conti

Ainda alguma iguana

Anda desumana

Pela chuva de suas pegadas

 

Ainda alguém que sofre

Sofre no silêncio de uma escuridão de brasões em fuga na parede

 

Quem sabe um dia o que farão

a mim

quando eu surtar de novo

 

Me porão no porão

para comer estrelas com arroz doce com canela

e ver as estalactites pingando na minha cabeça

 

Eu que fui quem não quis

sei muito bem ser como quero

Acho que hospício

é meio um cemitério

 

 

2 poemas
samantha silva

desconhecidos

 

O prazer de desaparecer

no meio de pessoas comuns

que jamais me viram

começa já na viagem de ônibus.

 

Numa cidade desconhecida

posso caminhar pelas ruas

sem receio de me esbarrar

sem querer em algum estranho.

 

Posso ser eu própria.

Até gritar no meio da rua

sem estar presa a uma Samantha

cujas feições todos conhecem.

 

Posso ser outra pessoa.

Até desmaiar ao pôr-do-sol

sem estar presa a uma Samantha

que cada dia desconheço mais.

 

 

 

planalto

 

Havia chovido há pouco.

A terra exposta estava lavada

neste início de manhã.

 

O motor quase silencioso do ônibus

E o roncar de um ou dois passageiros

eram os poucos sons que ouvia.

 

Os rostos denunciavam um cansaço

que só o colo da saudade poderia salvar.

E todos pareciam ter alguém

que os esperasse na rodoviária.

 

Eu estava naquele ônibus há quase um século.

Ele rodava para lá e para cá.

Não encontrava ninguém nas rodoviárias

E continuava sem saber onde ia.

 

 

coisas que ninguém pode saber
santa maria

*

 

A cidade é tão linda que dói

pensou a moça sorridente

ao pular da ponte Rio-Niterói.

 

 

*

 

Não vão mais partir meu coração

prometeu o homem de olhos fechados

caminhando na contramão.

 

 

*

 

Na casa da mulher que muito ama

ninguém mais respira

além do vidro vazio sobre a cama.

 

 

*

 

Espero que você goste

desejou o motorista

acelerando rumo ao poste.

 

 

 

marcela
tereza yamashita

Hoje, após seis anos, três dias e dez horas eu estou aqui olhando esse imenso mar. Jogando flores para Iemanjá, ao lado desse estranho homem.  

Diz a crendice popular que se você pedir algo à deusa do mar com toda a sinceridade, ela concede o seu desejo.

 

O meu é que Marcela e Rodrigo, o homem estranho que entrou em nossas vidas, me perdoem, e que eu pare de ter os mesmos pesadelos: Marcela colocando suas mãos delicadas nos ouvidos e me olhando com seus olhos negros de jabuticaba. Um olhar triste que me pergunta: "Quando você irá ouvir os meus sentimentos?".

 

Hoje, somente hoje eu entendi a pergunta, e compreendi o seu desejo.

 

Quando Marcela tinha dez anos, ela ganhou de uma mulher de cabelo longo e negro uma concha. Daquelas em que se pode ouvir o som do mar. Foi em agradecimento. Marcela devolveu o livro que a mulher havia esquecido no banco da praça. Eu me lembro como se fosse hoje. Marcela ficou encantanda com a concha, principalmente quando a mulher a colocou em seu ouvido. Vendo a alegria e o espanto de Marcela, ela disse que o som da concha era o som do mar, e quando ela se sentisse triste era só escutar o som tranqüilo e harmonioso da concha. Desse dia em diante Marcela nunca mais se separou do presente, e se agarrou mais a ele depois que o seu pai a abandonou. Ele simplesmente não suportava o silêncio da filha.

 

Minha menina cresceu solitária com seus cabelos lisos e esvoaçantes. Sempre perdida em pensamentos, mas com um sorriso sempre estampado no rosto delicado.

 

Eu sempre quis protegê-la das pessoas, e principalmente dos homens. Mas aos dezessete anos não pude mais segurá-la. Ela partiu, assim como o seu pai. Não se despediu. Pegou algumas roupas, o dinheiro que eu escondia para as despesas pequenas da casa. Deixou em cima da mesa da cozinha uma outra concha, muito parecida com a sua.

 

Marcela foi em busca do seu sonho e me castigou da pior forma possível. Ela sempre se comunicou por meio de sinais, e deixando uma concha pra mim, ela foi direta e objetiva. Ninguém a impediria de realizar o seu sonho, nem mesmo eu.

 

Nunca consegui deixar a casa em que vivíamos, em Mato Grosso. Já tinha perdido o amor do meu homem, a vida fora traiçoeira comigo e com a Marcela. Então eu me agarrava com unhas e dentes aos móveis, às fotos nas paredes, aos quadros e às lembranças. Mas com a Marcela era diferente, ela queria estar longe dali, principalmente longe de mim, que não conseguia aceitá-la e a culpava por tudo. Ao contrário de mim, a minha filha nunca me culpou de nada. Ela só queria ser livre e realizar o seu sonho.

 

Marcela nunca compreendeu, eu nunca a deixei ir porque eu era egoísta e queria a minha menina só pra mim. Sem ela, a minha vida não teria mais sentido, e eu não suportaria vê-la feliz. A minha relação com Marcela era parasitária, eu precisava sentir a dor de Marcela para me sentir culpada, e assim me punir infinitamente.

 

Durante meses eu a procurei, nunca desisti. Sabia qual era o seu sonho e só havia um caminho, e eu segui esse caminho como um cachorro perdigueiro em busca da caça. Não demorou muito e eu a encontrei.

 

Ela estava linda, com seu cabelo longo e ruivo, o rosto sereno e bronzeado. Mas estava morta.

 

Mais uma vez a dor da minha filha me fez viver e me deu forças. Não sosseguei enquanto não encontrei o culpado.

 

Após enterrar minha filha eu fui para a casa da praia. A casa de Marcela. Mudei-me pra lá e novamente eu me agarrei com unhas e dentes aos móveis, às fotos nas paredes, aos quadros e às últimas lembranças que não pude ter da minha filha.

 

Anos depois, encontrei a concha da Marcela. A concha estava escondida em uma caixa dentro de um armário com um fundo falso. Imediatamente eu a coloquei no ouvido. Eu queria que o som da concha me acalentasse, como ela fazia com a Marcela. Infelizmente até a concha havia morrido. Nenhum som saía de dentro dela, e com ódio joguei-a no chão. Naquele instante eu ouvi a antiga da voz da Marcela se despedaçando junto com a concha. Recolhendo os pedaços da concha eu encontrei uma velha folha de papel.

 

Nesse pedaço de papel amarelado, Marcela conta como estava feliz ao lado de Rodrigo. Que pela primeira vez ela tinha se sentido amada, mesmo sendo como era. Ele não tinha pena dela e a amava. Que haviam feito planos, e iam se casar. Ele ia pedir a sua mão em casamento quando ela completasse dezoito anos. E assim que voltasse de uma viagem de negócios ele a levaria de volta pra casa, pois não achava correto a sua fuga. Queria que ela se acertasse com a mãe, e aí nós três formaríamos uma família.

 

Marcela sabia que eu a amava, mesmo este amor sendo possessivo e castrador. A minha menina só queria morar perto do mar, escutar o som do mar e pedir a Iemanjá que nós fossemos amigas, que eu aceitasse o seu silêncio, diferente de seu pai que nunca o fez.

 

Marcela era muda e só dizia uma palavra: Mar.

 

Eu não poderia cometer o mesmo erro duas vezes, e me lembrei dos olhos de jabuticaba de Marcela me questionando: "Quando você irá ouvir os meus sentimentos?".

 

O estranho não tinha seqüestrado nem matado a minha filha. Ela havia se afogado. Eu tinha que fazer algo. Foram anos procurando pistas, evidências e testemunhas. Enfim eu a encontrei, coincidência ou não, era a mesma senhora da praça.

 

Ela viu Marcela se despedir do homem e caminhar para o mar. Depois disso, a senhora foi embora. Já estava de partida e comentou com a sobrinha que ela conhecia a moça, mas não sabia de onde. Por sorte eu encontrei a sobrinha e a senhora. A sentença foi revogada. Eu consegui provar a inocência desse estranho homem.

 

Hoje, após seis anos, três dias e dez horas eu estou aqui olhando esse imenso Mar.

 

 

 

 

 

 

 

compartilhar:

 
 
temas | escritoras | ex-suicidas | convidadas | notícias | créditos | elos | >>>