edição 16 | maio de 2007
cheiro

 

ciranda cirandinha
romina conti
 

A cidade tem cheiro de puteiro

O puteiro tem cheiro de banheiro

O banheiro tem cheiro de esgoto

O esgoto tem cheiro de morto

O morto tem cheiro de rato

O rato tem cheiro de mato

O mato tem cheiro de bosta

E mesmo assim todo mundo gosta


O pão tem cheiro de mofo

O mofo tem cheiro de patrão

O patrão tem cheiro de estado

O estado tem cheiro de ladrão

O ladrão tem cheiro de roubada

A roubada tem cheiro de privada

A privada tem cheiro de bosta

E mesmo assim todo mundo gosta


Todo mundo gosta da própria bosta

 

 

podre, puto, parido e marido
santa maria

Um porco senhor da sua lama.

 

 

Parecia vir do inferno. Infestava toda a sala de jantar aquele perfume pútrido e marsupial, esborrifado ao léu. Ela se acostumava, no entanto. E ele parecia ignorar, prostrado à mesa. Ereto. Sério. Inerte. As mãos encardidas dispostas lado a lado sobre a toalha de renda branca. O corpo amarfanhado largado sobre a cadeira de respaldo alto. O pescoço rígido. O olhar pregado num ponto qualquer. O riso numa linha labial levemente perpendicular, como um monaliso. Se deixasse, ele permanecia naquela posição por uma infinitude. Talvez não tivesse a menor consciência do cheiro de esgoto humano que destrinchava da sua carne azeda.

 

Para ela, importava que ele lá estava. E antes de começar a arrumar a mesa para a ceia, preparou-se toda. Exatamente como sonhou. Os sapatos argênteos. O longo vestido alvo. A cascata do véu. A grinalda. As luvas. O buquê. A maquiagem. Os cabelos presos numa romântica nuvem no alto da cabeça, cercada por uma corola de margaridas. Nunca houve a cerimônia. Mas ela estava devidamente pronta. E ele ao seu lado. Juntos. Para sempre.

 

Era o seu dono. O seu amor de cada dia erguido. De cada lágrima deitada. Havia, sim, jurado esquecê-lo. Lembrava-se. Tentou. Rasgou os convites. Desfez a lista dos presentes. Desprogramou a viagem. Comprou um revólver. Matriculou-se num curso de apicultura. Pensou em aprender a mergulhar. Saiu com outros. Beijou geleiras. Todavia, nenhum outro conseguiu invadir e destrancar o curral dos seus sonhos.

 

Apenas ele, sua plantação de esperança e colheita de dor. Quem fazia sua lavoura fertilizar. Quem adubava seu terreno árido. Quem conhecia o melhor atalho para o seu chiqueiro particular. E agora sua roça sorria novamente. Os campos voltaram a ser verdejantes. Era de novo sol nas montanhas. Ele com aquele cheiro. Nojento. Mas seu. Um porco senhor da sua lama. O chiqueiro dos seus sentimentos procriando uma vara de suínas emoções, alimentando com suas mil tetas fartas as bocas esfomeadas de desejos.

 

Distribuiu os pratos de louça sobre a toalha rendada, dançando ao redor da longa mesa de tábuas. Um musical imaginário rangendo na vitrola das suas cavidades mentais. A toalha religiosamente limpa. Guardanapos impecavelmente dobrados. Talheres cuidadosamente polidos. Taças delicadamente esguias. Jarro com flores já desmaiadas. A chama das velas rebolando no castiçal de prata. Da sua vitrola mental, soprava um apaixonado e murmurante dio, come ti amo.

 

Carregou a sopeira da cozinha até a sala, como quem traz um cálice sagrado, num ritual enfeitado. Batatas e cenouras afogando-se numa lagoa vermelha. O ar de carniça cobria com nebulosidade o aroma da comida. Ele podia ter tomado um banho antes. Mas nem isso era capaz. Sequer se limpado superficialmente. Mas você não é mais o mesmo. Seu filho de uma parideira de homens suínos e caprinos e bovinos e taurinos. Enquanto ela era apenas humana. E desesperada. E sua.

 

Terminou de aprontar a mesa. Ne me quitte pas. Não me abandone de novo. L'amore mio. Eu amo você. Questro nostro amore. Esteja você frio ou quente. Che me importa del'mondo? Consertou um braço dele que ameaçava despencar. Os tendões enfraquecidos já não suportavam o peso dos membros. A pele tinha uma cor palidamente tosca. Endireitou a postura dos seus ombros largos. Beijou a máscula face já rija. Il faut tout oublier. Espanou suavemente os fragmentos de cascalho grudados ainda em seu terno negro. Ajeitou-lhe a gola. Nossa cama nupcial está pronta, querido. Esqueça tudo. Menos nós.

 

Olhou para a sujeira encravada no canto das suas unhas femininas, sob a luva. Crostas de terra. Afinal, foram horas cavando. Havia penetrado no desértico cemitério noturno. Arrastou a tumba. Teve medo de ser descoberta. Somente o escuro a espreitava. E cavou. Cavou. Montes e montes. A cova cada vez mais profunda até uma lateral do caixão despontar. Era ele. Ela sabia. Arrombou a tampa. Quase amanhecia. E o retirou da caixa mortuária com suas mãos ávidas. Os dedos, tentáculos ávidos, reluziram ao luar a aliança de noivado. Arrastou com precisão o seu príncipe adormecido de cravo na lapela.

 

Sentou-se pomposamente na extremidade da mesa, enviando-lhe um sorriso cúmplice. A sopa fumegava. Ergueu sua taça borbulhante. Ele imóvel. Os olhares desencontrados. Tudo quase perfeito. O perfume da podridão infestava a casa. E atraía, no quintal dos seus pensamentos, abutres e urubus sedentos de amor, voando em círculos sobre a fazenda. Um brinde a nós, amore.

 

O odor dele era de uma silenciosa decomposição morta.

 

Ela exalava uma inteira alegria viva.

 

Seja bem-vindo ao lar, meu querido. E que nem a morte nos separe.

 

 

 

cheiro
tereza yamashita

Cheiro de cocuruto de nenê

Cheiro bom

Cheiro de esperança

Cheiro de recordação

 

Cheiro de flor

Cheiro bom

Cheiro de mulher

Cheiro de tentação

 

Cheiro encontrado

Cheiro ruim

Cheiro perdido

Cheiro de desilusão

 

Cheiro de homem

Cheiro bom

Cheiro de amor

Cheiro de sedução

 

Cheiro de perfume

Cheiro ruim

Cheiro no colarinho

Cheiro de traição

 

Cheiro de chuva

Cheiro bom

Cheiro de ar limpo

Cheiro de renovação

 

Cheiro de cidade

Cheiro ruim

Cheiro de máquinas

Cheiro de devastação

 

Cheiro de mata

Cheiro bom

Cheiro de árvore

Cheiro de reconstrução

 

Cheiro bom

Cheiro ruim

Cheiro da vida

Cheiro da morte

 

Cheiro

 

 

 

 

iscas
verônica couto

Fosse porque era domingo, fosse porque era órfão, vez em quando ele resolvia visitar a tia Letícia.

Desmontava as varas do muro de pedra, recolhia as linhas, os molinetes e os restos de siris amassados, tatuís e minhocas. Separados, guardava os espantalhos de plástico colorido, descabelados e luminosos. Iscas artificiais e importadas, que nunca atraíram nem uma cocoroca à tona.

Mas ele acreditava. E deixava para trás o sol dourado sobre o paredão da Urca, assoviando farolitos, eclipses de luz pelo céu, a pé, até a casa da tia Letícia.

Casarão. Onde não podiam entrar os cachorros nem os peixes. A sacola com papa-terras, carapicús, marimbás, linguados, voadores ou sargentos ficava de favor no boteco da esquina. Ele tomava uma rápida, antes de seguir chaplinhando até o portão.

Para o portão, não havia palavras. Nem para o jardim, ou a escada de mármore da entrada principal, o sobrado dos empregados, a recepção social externa, com poltronas de couro branco, mesinhas de pés palito e luzes indiretas. A mesma essência de silêncio de dentro da mansão. Que o repertório não dava conta da magnificência da disposição das coisas. Ainda maiores nos interiores, porque ampliadas pelo pé direito alto e pelo efeito especular daquele enorme retrato a óleo no salão.

Falhavam os dicionários, também os sentidos, na observação dos acessórios e da mobília. Colheres de prata com furinhos, utensílios esquisitos de marfim, segredos de vidro que nunca se revelaram. A linguagem da casa era tão inexprimível quanto os afetos que dela recendiam. O que ele sabia: vagas impressões sobre disputas fratricidas, uns vexames morais, uns esqueletos escondidos nos armários. Fraturas não expostas.

Tudo isso ele atravessava arisco, sorrindo esquivoso, enquanto se falava pouco, em geral de parentes remotos, que mandavam notícias à toa da fronteira. A tia Letícia, o marido e os primos se moviam com gestos clássicos. De uma classe capaz de assim distraída repousar os pulsos sobre os bordados da toalha, como quem se debruça sem surpresas sobre o mundo. Todos pausados e bem-vestidos. Continentes e constrangidos.

Até o momento em que, ritualmente, enfim o convidavam a tomar a bênção da avó. Lá ia ele solto, por conta própria na casa interminável, onde aquele perfume confundia os limites, como em um latifúndio. Suava para chegar ao segundo andar. De modo que umedecia a maçaneta de porcelana azul, pintada de orquídeas, e deslizava arfante na modorra aromática do quarto.

Aí olhava para ela feito neto. Que afinal ele era. Emboram resistissem, soube depois, secretas controvérsias.

A bisavó de aspecto pergamináceo respirava na cama muito branca, como talco, vórtice de onde parecia emanar todo o resto. Humores adocicados que se espalhavam pelas escadas, pelos salões, pelos corredores, pelas almofadas de cetim, evoluindo e se colando a tudo, que nem sachê dentro da gaveta. Perfume que devia vir de dentro dos escuros da velha, uma relíquia volátil das severíssimas regiões da Campanha gaúcha, cheia de ventos. A velha que matou um índio. E agora evaporava num vulcão de flores secas, nessa cerração de suavidades simuladas, que quase se podia tocar. Até a extinção.

Por enquanto, ela olhava para ele feito nada. Fóssil de asa de libélula, 110 milhões de anos, protegida sob a colcha de piquê. Ele levava a borda do tecido ao rosto e aspirava fundo, procurando não sei que confortos magros, naquela desordem de partículas, a memória, espécie de Babel nunca de núncaras confiável.

Fosse porque era domingo, fosse porque era órfão, ou porque tinha pescado muito, naquele dia se comoveu mais. E confidenciou no ouvido da velha a lista dos peixes fisgados na tarde, apesar da ação implacável das traineiras que arrastam redes na praia. Para então beijá-la, bem devagar.

Uma ranhura franziu o pergaminho. O fóssil descolou da pedra, semierguido na cama, e o empurrou com vigor incongruente, num repelão de enjôo. — Sai, guri, que não suporto essa fedença de cachaça com peixe.

Falava e varria o ar com a mão. O perfume de valsa em roda dos dois.

Não rebateu. A mando, saiu como pôde, escada abaixo, desviando dos panos quentes e das perguntas, um anzol enganchado na garganta. Não cumpriu as despedidas e ninguém ousou cruzar a linha do corredor. E, nem aí, nesse instante de assombro geral, deixou de sentir.

No jardim, abaixou-se para calçar os sapatos, que ficavam sempre do lado de fora da casa, num zelo extremo com os tapetes. Achou ridículo e sorriu, mas não voltou ao bar para buscar os peixes.

Afastou-se no tempo daquela casa. Um dia vendida, noutro, demolida, segundo ouviu dizer, desinteressado. O que não o impediu de percorrer, clandestinamente, um vocabulário inútil de elegâncias e delicadezas e cortesias, em busca da química redolente daquela atmosfera. Quase acreditou ter encontrado o mesmo perfume muitas vezes depois, em algumas pessoas e em alguns seletos salões. Só quase. Existem por aí milhares de derivados, provavelmente sintetizados de idêntica flor. Nenhum, contudo, foi como aquele. Tão velho, tão palaciano, tão capaz de colocar as pessoas em seus lugares. Tão indiferente. Como os peixes e as iscas de plástico, quando insistem em não se perceberem, e o sujeito não pesca nada.

 

 

 

 

uma tarde, maio
virna teixeira

cozinha

pedaços de manga

entre os dedos

a vida

polpa
doce e

gelada.

 

 

 

 

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