edição 19 | agosto de 2007
sexto sentido

 

última chamada
adriana oliveira

Sinal fechado. A menina levanta-se do fio da calçada e vem em minha direção. Ela carrega uma caixa com pacotes de balas coloridas, que vende a um real cada. Reconheço aquela bala de morango que gruda nos dentes e faz a gente babar. Sinto na boca o gosto da minha infância. Pego a bolsa no banco de trás e começo a procurar por moedas. Ela chega ainda mais perto do vidro, está suja, escabelada e ansiosa pelos trocados. Abre o sinal, antes de fecharmos o negócio. O som das  buzinas, atrás de mim,  faz com que eu me sinta na obrigação de partir. Acelero o carro e deixo a menina ali, com a mão estendida no ar e a esperança escorrendo pelos dedos melados.

 

Eu não deveria ter saído assim, sinto uma culpa que só vai embora quando começo a arrumar as malas para a viagem. Está chovendo em São Paulo, mas,  não deve estar mais frio do que em Porto Alegre. Este inverno está de matar. Meu marido já está lá, foi antes,  para uma reunião do trabalho. Ele vai me buscar no aeroporto e talvez atrase, pois, com chuva, o trânsito fica um caos. Não tem problema, eu espero. Estou tão animada em passar uma semana sem filhos, depois de tanto tempo. Só nós dois, indo a restaurantes, shows, teatros, passeando de mãos dadas pelos Jardins. São Paulo não é a cidade mais romântica do mundo, mas para quem tem filhos pequenos e trabalha fora, qualquer mudança na rotina já é um sonho.

 

Olho para o relógio e vejo que preciso correr ou vou perder o avião. No aeroporto, uma fila enorme para o check-in. O alto-falante anuncia a última chamada para o vôo 3054. É o meu. Mostro o meu bilhete ao funcionário da empresa, que me passa à frente dos demais passageiros.

 

O avião está lotado, com a capacidade máxima e, para mim, só sobrou um lugar bem ao fundo, ao lado do banheiro. Quem mandou chegar atrasada. Passo por uma mulher grávida. Um senhor que não sabe desligar o celular. Um executivo que pergunta à aeromoça se já pode ligar o laptop. Uma turma animada de amigos que gostariam de sentar todos juntos, mas não marcaram os seus assentos lado a lado e acham que não custa nada os outros passageiros trocarem de lugar com eles. Está criada a confusão. Eu peço licença e vou seguindo o meu caminho, já gostando da idéia de ficar afastada daquele tumulto.

 

Sento-me ao lado de um adolescente tímido, que enfia o rosto em sua revista. Eu faço o mesmo. Aproveito para abrir aquele livro que ganhei no natal passado e que ainda não tive tempo nem para ler a contracapa. Não aceito o serviço de bordo, pois quero guardar a fome para aquele restaurante japonês que uma amiga me indicou.

 

Assim transcorre o vôo normalmente. O piloto avisa à tripulação que dará inicio ao  procedimento de descida. O adolescente acorda e pergunto-me se ele estaria fingindo que dormia. Tanto faz. O que importa é que a minha segunda lua-de-mel está para começar. O avião toca o solo em alta velocidade. Uma velocidade fora do comum. Os passageiros se assustam e começam a gritar. A tripulação pede calma. Olho pela janela e vejo que a pista está terminando. O avião sai da pista, indo em direção a uma movimentada avenida, cheia de carros. O pânico aumenta. Os passageiros levantam-se. Vamos bater em um prédio. Escuto um estrondo e vejo o fogo vindo em minha direção. A última coisa que vem a minha mente é a imagem da menina do sinal, esperando por mim.

 

 

 

dublê
bruna beber

demorei a chegar

como demoraria a pétala caída

da flor da janela do 12º andar 

 

x%@$# me esperava

olhando para o céu.

 

 

 

 

 

ironia
dominique lotte

ao tropeçar nela

ela sorriu

e

jogou seus longos cabelos

para trás

e

faíscas azuis me penetraram

e

perfume de limoeiro e champanhe

me envolveram

e

a ponta dos seus dedos

tocaram de leve meu rosto

 

ouço o trompete de Chet Baker

"Let's get lost",

e 

João Gilberto sussurra

"A garota de Ipanema"

 

ah, e todos os meus sentidos

bailam,

 

"quantos sentidos têm?", pergunto,

"cinco!", responde,

"e o sexto?", retruco

 

ainda sorrindo, afasta-se:

"ironia e bom humor, faz sentido?".

 

 

soneto zumbido
florbela de itamambuca
 

 

meu coração traz rios e afluentes

maré que emaranhou no catimbó

mosca presa na teia do cipó

bate um vento eu balanço trás pra frente

 

fiapos me suspende nas enchente

brota flor de tajá no meu roncó

passa um cheiro que lembra igual da vó

e eu boto na tigela seu azeite

 

mastigo aqui comigo uma raiz

deixo ibira no mato de castigo

juçara isgoela eu limpo seu nariz

 

cuspo saliva azeda ouço um zumbido

lembro de ver no forno o pão que fiz

é esse então o tal sexto sentido?

 

 

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