edição 1 | outubro de 2005
escritoras suicidas

 

a primeira morte
santa maria

Vai perder esse medo de gente morta agora, ordenou a mãe, puxando pela cinta do vestido a menina de olhos estatelados. Vai perder o medo hoje, berrava a mulher, arrastando a garota que, retesada, não se movia, não falava, não piscava, não respirava. Um dia você também vai morrer. A morte vem para todo mundo. Empalidecida, ouvia a voz engulhada da mãe. Sua boca infantil dura e seca. Os olhos reluzindo terror. Os dedos firmes entremeados no cabelo da boneca. Sabia que não haveria escapatória. Conhecia bem aquelas atitudes monstruosas da mamãe. E o jeito era se consolar e encarar. O velório acontecia na casa vizinha. Uma senhora falecida há pouco. Uma velhinha que adorava usar vestidos de bolas, regar suas plantas e fazer roscas. Sempre lhe mandava um pedaço das roscas. As roscas que a ajudaram a decifrar quando escutou a mãe dizer que a vovó das roscas tinha morrido. Sua primeira pergunta foi como poderia ter morrido a vovó que lhe sorria docemente e dava-lhe carinhosos adeuzinhos do outro lado da rua? Como e por que morreria a vovó cujo único prazer na vida era usar vestidos de bolas coloridas e regar suas raquíticas plantinhas que teimavam sobreviver no canteiro? Mas morreu. Mortinha da silva. Com toda a sua doçura, roscas e bolinhas, estava morta. Morreu sufocada pelo lençol, escutou. Enrolou no pescoço enquanto dormia e morreu. Eu não quero ver não, mãe, avisou, engolindo seco. Mas vai sim, vai encarar a morte, revidou a mãe. E a levou. Na sala de móveis escuros, envoltas pela penumbra, pessoas, pessoas e pessoas. Nunca imaginara que a velhinha conhecesse tanta gente na vida. Parecia ser tão só. Aos poucos, a cortina humana foi se dissipando e uma parte do caixão se revelou. Madeira amarronzada e lustrosa, cercada por dois castiçais. Viu os pés. Os bicos dos sapatos finos e envernizados apontando para o teto. Olha, beliscou a mãe. E ela esticou a cabeça, derramando o seu olhar apertado na superfície do ataúde. As mãos, encarquilhadas, estavam cruzadas sobre a barriga, sobrepondo o cobertor de flores brancas que a revestiam. E o rosto. Desbotado. Inexpressivo. Adormecido. A menina jamais se deparara antes com a imagem tão vívida da morte. E lá se encontrava, a dois palmos da morte sem cor, colorida pelas rosas e cheirando a queimadas. O que aconteceria com as plantinhas, indagou para si mesma, e os vestidos de bolas? E ouviu a próxima ordem materna. Beija. Beija ela, agora, tô mandando. A princípio fingiu não escutar, absorta no quadro fúnebre, entretanto, a mãe repetiu em um tom o suficientemente alto para que alguns da sala se voltassem para ela. Beija a vovó, querida. Beija. E o coral do terror escoou. Beija. Beija. Beija. Queria perder o medo. Mas tinha medo. Muito medo. E nenhuma forma de fugir. Quando percebeu, equilibrava-se nas pontas dos pequenos pés trêmulos, segurando firme na beira do caixão, e se debruçava lentamente sobre o rosto da morta. As lágrimas contidas. A feição morta que só conhecia viva de longe, cada vez mais perto. De olhos trancados, encostou os seus lábios ressequidos nas bochechas frias, numa eternidade veloz, e beijou a morte. Ao recobrar a postura, olhou para os lados, aliviada. Sua alma comichava. Mas a mãe conversava distraída com os demais. Todos indiferentes. Estava esquecida, depois de tanto sacrifício. Jamais esqueceria o ósculo mortuário. O gosto. O cheiro. A textura da morte. Naquela mesma noite, depois que a mãe a cobriu e apagou a luz, saindo e fechando a porta do quarto, a menina ainda lembrava do beijo dilacerado. Levantou-se, abraçada com sua boneca, e procurou a cinta de couro do vestido. Duas bonecas, uma de carne e outra de pano, amanheceram dependuradas.

 

 

o sortilégio
silvia devereaux

Ela não tinha caldeirão em casa. Teve que comprar, mas não sabia comprar caldeirão, não sabia mais como se fazia feijoada - disse isso, que era para uma feijoada - então teve que comprar um que coubesse no seu fogão. Mas ele ia ser aceso sobre uma fogueira.

Havia outras especificações. Tinha que ser de cobre, e ela quase enlouqueceu para encontrar um de cobre. Acabou comprando usado, mesmo havendo conflito com outra condição, a de que o caldeirão (e a faca) fosse virgem. Ia carregando o caldeirão com o coração intranqüilo, porque seu sortilégio era duplo, exigia mais dos apetrechos do que um sortilégio normal, e agora era grande a chance de que não funcionasse.

A faca não deu trabalho, deu despesa: tinha que ser de prata. E exaustivamente trabalhada: em várias sextas-feiras consecutivas seriam derramadas sobre ela certas substâncias, algumas também bem difíceis de achar, outras não; uma delas era seu sangue menstrual, que tinha que ser recolhido mediante procedimentos especiais, e sob o som de certas orações, e tinha ainda de ser sangue do primeiro dia, o que a obrigou a andar com a faca pra todo lado quando os dias se aproximavam.

Também havia luas a contar e ervas a obter, e despesas a fazer com um pilão, sais, aromas, velas. Por fim, uma roupa branca, de algodão cru, que pudesse ser aberta pela frente - uma espécie de roupão. E teria de estar sem calcinhas, e menstruada - mas não a mesma menstruação que havia tocado a faca. Era uma trabalheira.

Felizmente, as coisas que pertenciam a ele foram fáceis de conseguir. A foto, o cabelo, as aparas de unha, se lhe pedissem o cheiro ela o tiraria de si mesma, do seu pulso, do seu pescoço, de todos os lugares hoje abandonados nela onde ele havia estado. Não precisaria de nada dele, na verdade, só de si mesma - imolar-se no lugar das coisas dele, que teriam de perecer. Talvez, e esse pensamento a assustava, ela fosse ainda tão dele que o sortilégio a atingisse também - e ela se amasse ou morresse, do jeito que ela queria que fosse com ele, que ele a amasse ou morresse. Mas ela se amava, amava-se a ponto de querer forçá-lo a amá-la também e, se ela morresse, ela anularia a única felicidade que queria para ele.

Vermelhos, vermelhos, tinha de haver vermelhos, muitos. Batom, ruge, henna, esmalte, tudo vermelho, sangue, fogo. Colorir tudo de cólera, abraçar estátuas em frenesi, gritar, descabelar-se, coisas que ela compreendia perfeitamente, e que fazia por dentro a cada minuto. Deixar de reconhecer o mundo, para esfaqueá-lo, e tirar de dentro da terra o seu homem. Deus às avessas.

A irmã disse que jamais comeria feijoada feita num caldeirão daqueles, que estava verde de azinhavre, que tinha duzentos anos, que era caldeirão de bruxa. E ela respondeu que deixaria o caldeirão como novo, que o poliria e gastaria nele toda a palha de aço do mundo, e que aquele caldeirão ia servir perfeitamente para cozinhar tudo o que fosse preciso cozinhar nesta vida. E saiu fazendo de conta que não notou o olhar interessado que a irmã pôs nela, "será que ela está ficando meio maluca?" Era a pergunta estampada na cara dela.

Mas já tinha passado da idade de enlouquecer. Quando parava para pensar, geralmente no carro com ele, sonolenta, voltando de algum motel ou da casa dele, acalentando o sono com esse pensamento, "como escapei de ficar louca", ela achava que tinha sido por pouco, por muito pouco mesmo. E olhava para ele, e achava, sorrindo meio confundida, que ele não era pouco, e era a exata diferença entre o que ela era e a loucura. E, intrigada, se dava conta de que sabia, ou pensava saber, o que era, mas não sabia o que era a loucura. E então seu olhar se tornava ansioso, e ela perdia o sono, e olhava para ele muito atenta, muito vigilante, o que ela sabia que o irritava, mas que não podia evitar. E então - ria dos seus pensamentos, ria de si mesma, não conseguia sustentar uma idéia? - ela achava que sabia sim o que era a loucura, e também era ele. Era sempre ele.

A limpeza do caldeirão destruiu-lhe as unhas, teve que cortá-las muito curtas e o sortilégio simplesmente não as mencionava, desde que estivessem vermelhas, parecia que estava tudo bem. Mas há mil vermelhos para as unhas neste mundo, ela resolveu que escolheria o tom mais parecido com um lápis de cor que encontrasse, aqueles lápis vermelhos que as crianças usam quando vão à escola. Que era o vermelho perfeito pra reaver um homem amado, ou homens por quem se sente coisas que talvez não possam ser chamadas de amor, talvez não tenham nome, mas que existem por dentro e devoram e destroem e ainda assim animam e empurram. Como gasolina. Ela sentia gasolina por ele.

Diz a Bíblia, que é fundamental em sortilégios, que a Adão coube a tarefa de dar nomes às coisas e aos bichos. O leão se chama leão por causa de Adão, assim como a lesma, a pedra, a construtibilidade mecânica e todas as palavras que os outros inventaram em cima das palavras dele. E que homem esperto ele devia ser para saber o que todos iam sentir antes que sentissem, antes que ele mesmo sentisse - ou será que ele batizou o mundo aos poucos? Imaginou Adão à beira de um regato, se sentindo infeliz, e chamando àquilo infelicidade, que era diferente da tristeza, porque esta era mais fraca e porque era assim uma sensação mais torta para um lado. Ela achava que, se fosse Adão, fracassaria, porque tentaria dar às emoções as caras de pessoas que conhecesse, e assim diferenciá-las, porque eram novas. E Adão não conhecia ninguém, e não podia fazer isso, logo ela seria um Adão muito incompetente. E metade do mundo, metade da vida ainda estariam esperando seus nomes, e ninguém falaria dessas coisas, bichos, emoções. Muito triste isso de não ter nome, ela pensava, e teria acariciado o seu se ele fosse uma coisa pegável.

As unhas ficariam curtas para sempre se ela morresse, e pronto. Ele tinha um nome, um nome feio, daqueles que a gente não imagina num menino, mas entende num homem - entende e não gosta. Atílio. Um nome feio, de alguém capaz de ser muito e muito cruel. Ela lhe disse isso, que quando pensava no nome dele era capaz de imaginá-lo fazendo muitas crueldades, matando pessoas, mas que, quando o via ou ouvia a sua voz, tudo isso mudava, mas não completamente. E ele sorria, e ela não sabia se de pena ou dissimuladamente, e, como todo mundo que conhecia, acreditava primeiro no que queria: que era de pena. Seu amor, sua gasolina repousava sobre muitos sobressaltos.

Ele era bonito, um Atílio bonito. Cabelos pretos que ele penteava para trás, com um redemoinho do lado esquerdo, cabelos que ali se enrolavam e teimavam em se levantar. Olhos pretos, imóveis, que lhe davam ar de estátua, ou de quem está o tempo todo pensando em outra coisa, ou ainda à espera, uns olhos aflitivos. Magro e com mãos onde se podiam ver os tendões sobre os ossos na pele não muito clara, mãos que torcem uma mulher, torcem como elástico. Como se ela estivesse amarrada num poste, sem escape pro bom e pro mau. Assim o rosto magro, assim os dentes que pareciam luzir no escuro, assim aquela cara que, pensando bem, era de lobo - as orelhas eram quase pontudas, ela via por vezes pêlos que não existiam - assim aquela ferocidade, assim homem.

Ela achava os homens muito sozinhos, achava que não se acompanha os homens em nada, que a gente está lá e não está, porque o homem olha sempre de atravessado para a gente, as mulheres. Acudiu-lhe na vida muitas e muitas vezes desistir quando, olhando para um homem, via o peito dele se dobrar pra dentro, perdido em seu não-precisar. Homem não-nutriz. Acudia-lhe desistir de se sentir tão só quanto o homem ao seu lado, todos os homens, ao final. Atílio era tão só quanto todos, mas dava à sua solidão, aos seus pensamentos escondidos e quase talvez inexistentes, um jeito de absoluto, um ar de novidade. Solidão nova. Não era, porque não existe, mas parecia. E ela amava a solidão nova, a cara nova, o medo novo e o olhar pousado diferentemente sobre o mesmo mundo sem fim - o mesmo não entender.

Nunca o viu chorar. E nunca quis fazê-lo chorar para ver como era - uma bondade e um medo, tudo junto. Mas agora faria, agora pediria uma lágrima, ou várias lágrimas, que deviam bastar pra coisa feia que o amor podia às vezes ser. Pediria lágrima e sal, pediria ruga, olheira, remela, pediria sono e pensamentos, pediria noites e mais noites. Pra isso é que se comunica a mulher com a Lua, para pedir e ter noites, noites, noites.

Noites.

Então, caldeirão polido e faca aprontada, roupa arranjada, vermelhos dispostos e postos, então sim, úmida de expectativa, em meio ao ruído insensível do mato, perto do fogo aceso e pensando confusa na irmã, na feijoada, no fim do mundo, ela olhava a foto e os cabelos. Tinha ganhado da irmã um beijo perfeito na testa, um afago, um olhar de "eu sei de tudo".

Sabia, a irmã? Desconfiava, e desconfiar é saber do que se desconfia. A irmã amava também, tinha amado. Era mulher de muito "eu acho", achava coisas, atrasava-se, tinha idéias. E nas idéias que tinha, guardava sempre uma nota de perigo para todo o mundo que estivesse por perto dela.

Teve uma idéia sobre o Atílio, e era esta: a de que ele era um homem medroso, e também capaz de roubar. E isto era outra idéia da irmã, a de que ladrões são sempre pessoas muito medrosas. A irmã achava que olhava de soslaio; que ria à-toa, sem motivo; e que era dos que pulam antes de se mexer. E que isso é coisa de ladrão, de desonesto. Mas também achava que às vezes as pessoas são desonestas sem saber: acreditam-se honestas, sentem-se honestas, e não entendem os roubos que fazem. Mas não era porque fosse idéia dela que ia ser verdade - ela demorou muito pra perceber que, mesmo aquilo que é dito com a maior certeza e convicção, é, no fundo, só dito, sem relação nenhuma com as coisas do jeito que elas são. Diz-se o que se disser, fala-se, pensa-se: e as coisas continuam sendo o que são, e a arte difícil é a de enxergá-las, não a de dizê-las.

Ela era pobre, do interior para a casa da irmã, e lá continuava. Ser roubada de quê? E depois: dava. Dava logo tudo, nem se deixava roubar, oferecia. Talvez ele roubasse mesmo. Mas ela também ficou achando que o Atílio era ladrão. Ladrão de quê? Vá-se saber. E depois: e daí que amasse ladrão? E daí que quisesse o ladrão de volta? O problema dela era ele todo, não o pedaço dele que, fosse estar a irmã certa, roubava. E não estava na foto a cara de um homem que roubasse mais do que roubam todos, ou que fosse pior, ou que fosse melhor, ou que fosse o que fosse. Ela olhava já não sabendo mais quem ou o que ele era; esquecia-se se ele era, ou fora, um dia necessário; parecia-lhe vago como um duque da idade média.

Então esfregou os olhos, apalpando-se por dentro pra perceber se era o amor se esgarçando como um rasgo que se abrisse em seda. Se era possível o amor afinando como mingau mal feito. Se era de fato o amor, sólido, que nem uma pedra engastada na boca do estômago, desfazendo-se no ar.

E ela não soube.

Esperou um segundo, para ver se ouvia o mundo, e se o mundo a ouvia. Era noite, cheia de gatos e de lua e de corujas, que prestam atenção e sabem de tudo o que se passa. Saberiam dela? Ouviriam? Cada um desses tribunais onde constantemente arde o chumbo da opinião: saberia? Por outro lado, permitiriam?

E porque era decidida, e porque não sabia mais nada, e porque já estava ali e porque as coisas todas têm que ter um termo, se a gente puder dá-lo, cravou a faca na foto, e começou a fazer o que devia, esperando desde já ouvir um grito de homem em algum lugar da massa preta que alguns chamam de noite, mas que, na verdade, vazava de dentro dela para alagar o mundo.

 

 

alegoria e adereços
verônica couto

Largou pelo meio a encomenda do samba. Ainda não foi dessa vez que o dono do ponto, barão do lugar, pôde comprar baratinho um ingresso pra ala dos compositores. Rasgou o contrato e devolveu o adiantamento, pago em troca da autoria do enredo. Fechou o terreiro, São Jorge encostou na calçada, desceu. Foi trabalhar de peão. O povo assustado, sem poder crer. Ainda achavam que ia voltar bêbado, rolar por ali, até passar. Mas não voltou, não. Sumiu no asfalto. Se arrumou numa pensão, longe dos morros, pras bandas das favelas horizontais, nas beiradas de asfalto da zona industrial. Muito longe do mar.

Quase não levou nada. Uma titica de roupa, que ele mesmo passou a lavar, no tanque da obra. Nenhuma guia, santo nenhum, nenhuma fita nem retrato. O dinheiro que tinha deixou pra trás, pro enterro da mulher e da filha, mortas na enchente: — Ponho bandeira? Vai ter gurufim? Quer uma flor branca, toalha bordada de azul? Nada, respondeu. Quero coisa nenhuma. Faça de qualquer jeito, com flor ou sem flor, azul ou branco, dá tudo na mesma. E foi só o que dele se ouviu.

Também não foi conferir. Recomeçou zerado, liso e silencioso, sem ter por onde a poeira pegue. O cavaquinho enfiou mudo debaixo da cama, metido num saco. Avesso aos domingos, só rezava tijolo, cal e cimento. Subia e descia andaime, cada dia mais alto, cada dia mais perto do azul. Céu de brigadeiro, outono do Rio. Um andar a mais, e já podia ver uma nesga de mar. Nesguinha suja, de baía fechada, oleosa. Mesmo assim o mar, de azul desmedido. Ele dava as costas.

Mas se afogava no seco, sem remédio. Os caminhões, o bate-estaca da obra, as crianças rindo nas vielas, um uivo de mulher espancada, outra fingindo, sirene, ladainha, o guincho dos ratos, tudo acordava da alma a harmonia interrompida. Sincopava o tranco da geladeira da pensão, samba de breque. E marcava o andamento do trânsito na batida dum qualquer dois por quatro, vez em quando com um fraseado de flauta, chorinho que vinha de contrabando. A vida seguia nele em ritmo de marcha-rancho, amolecendo a pausa entre os dias. E a casca do luto. Surdo de marcação.

As tardes já entravam em maio, mais humanas, diferentes daquelas águas de março, corredeiras e furiosas demolidoras de barracos. O prédio em construção chegava na cobertura, janelão de vidro com um risco de mar. Ele dava os acabamentos nas esquadrias e olhava de viés, fingindo não lembrar que até a areia molhada soava cuíca, na mão da menina. Bastava esfregar. Concha, cavaco, coração. Na madrugada ouvia, do escuro, outros tambores, estalos, pandeiros, nos ensaios doutras histórias. Todo varal na favela virava em porta-estandarte: toalhas de mesa, saias, lençóis saudavam ao vento miliumas bandeiras azuis.

A gata da casa, prenha, coitada, inchava na porta da rua, no sol quente do inverno do Rio. Cada vez mais cozida de sol. No dia do bicho dar cria, a coisa encrespou, a dona da pensão botou na mão dele. Nasceram feios gatinhos. Noutro, os homens se pegaram na venda, faca pra cima, bala zunindo, ele não tinha nada a perder, separou, fez a paz. O filho do vizinho (em qualquer canto se avizinha) endoidou, raivoso, gritando. Ele recolheu no quarto, fez chá. Calados os dois. O sujeito se enfiou debaixo da cama. Achou lá o cavaquinho. O doido e o cavaquinho: era a hora da paradinha, entrada ensaiada dos tamborins. Não agüentou mais. Tocou para o outro, com dó da loucura, e com dó de si mesmo. Um samba sobre o infinito.

*

As chuvas começaram a voltar no verão. Ano novo, carnaval. Ele montou ali mesmo um bloco de sujo. Sem dono, sem alas, sem carro alegórico, nenhuma comissão de frente. Um monte de gente embolada, aos remendos e gambiarras, na desordem sem explicação dos tempos de euforia. Todo mundo a pé, puxando o povo das calçadas, pelas bordas dos botequins. Ele saiu tocando um compasso mais lento, batida inventada que nunca ninguém tinha ouvido, num samba sem preço, só dele, livre de tudo, pra tudo, sozinho.


(Escrito durante a 12ª Oficina Literária do Sesc-SP, coordenada por João Silvério Trevisan, como exercício sobre o filme "A Liberdade é Azul", de Krzysztof Kielowski. Mas pensando em Paulinho da Viola.)

 

 

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