edição 21 | outubro de 2007
espelho

 

moça sem mancada
roberta silva

 

 

Não tenho certeza se me arrependi de ter comprado aquele "botucário" para Giovana. O objetivo dele era distraí-la com uma atividade enquanto eu escrevia. "Botucário". Complicamos as coisas desde muito cedo.

 

Eu havia tentado, mas nada a convencia de que era diário e não botucário o nome daquele caderno de capa dura com um saci desenhado. O fato era que ela só se distraía quando eu desenhava no caderno, depois ainda tinha que contar a história do desenho para ela. Todas as páginas tinham desenhos meus. No meu, um texto ainda espera para ser escrito.

 

Toscos desenhos de fragmentos de letras do cd de Cássia Eller. Em uma página o desenho de um pouco de malandragem. Não é difícil desenhar um pouco de malandragem. Uma bolinha espinhuda e uma legenda resolviam o problema. O duro era contar a historinha durante o tempo restante do cd. Menos que isso ela não relaxava para dormir e mais que isso eu tinha que desenhar outra coisa e colocar o cd novamente. Assim, todas as noites, quando íamos para a cama relaxar para dormir eu tinha que desenhar algo no botucário, contar uma longa história sobre eu tô na pá, aiquenteguetnôu, este último um dos mais fáceis, com um nome desses, logo imaginei um índio roqueiro, com uma língua enorme, coisa e tal.

 

Outro dia ouvimos: "...até sonhar de madrugada, com uma moça sem mancada...".

 

- Mãe, desenha uma moça sem mancada!

 

Não pude deixar de rir, mas não seria difícil, bonequinhas geométricas com largos sorrisos era minha especialidade e colocaria a legenda, moça sem mancada, ninguém nunca havia visto uma, não tinha como errar.

 

Caprichei nos círculos, triângulos, pernas finas, lógico, duvido que ela comesse duas calorias a mais do que o necessário para uma dieta balanceada. Largo sorriso, pensei em algo para demonstrar intelectualidade, mas óculos não caem bem em seres perfeitos, talvez um livro de física quântica. A fase dos porquês de minha filha me fez desistir da idéia. Não faltou um liso cabelinho channel, roupas largas, mas nem tanto. Com certeza tinha curvas perfeitas, mas não era do tipo que exibe o corpo, não de propósito. Eu já estava morrendo de inveja da minha moça sem mancada. Melhor parar por ali antes de pensar em duas ou três graduações e alguns livros editados, não, isso seria tortura. Moça sem mancada desenhada, vamos à história:

 

- Esta é Sofie, linda, inteligente, sábia e educada.

 

Sofie não... parei por uns instantes. "Não vou lutar com Sofie, vou usá-la para um momento didático. Como sou esperta!".

 

- Continuando, Sofie é uma moça que não comete erros, ela levanta todos os dias pontualmente às 6 horas quando a mãe chama para ir para casa de sua avó, para ir trabalhar. Ela toma todo o seu leite, sem arrotar, nem derrama um pouco em cima da formiga para alimentá-la. Levanta-se sem arrastar a cadeira e vai até o banheiro, fecha a porta sem bater e escova seus dentes do jeitinho que a dentista mandou. Faz seu xixi, limpa-se direitinho e joga o papel no cesto, Sofie nunca, mas nunca mesmo, deixa de dar descarga e de fechar o cesto antes de sair do banheiro. Veste-se com calma, não deixa seu shortinho torto, dá um belo sorriso e um beijo de bom-dia em sua mãe, desce as escadas sem bater o chinelo, não bate a porta do hall, porque sabe que os vizinhos do térreo estão dormindo. Sofie chega à casa de sua avozinha, dá bom dia a todos, escolhe um brinquedo e leva para o quarto, para brincar. Não corta o cabelo da boneca, nem da priminha, nem do cachorro, pensando bem, acho que Sofie não brinca com tesouras, mesmo quando ela encontra uma esquecida. Ela não brinca de soltar puns, nem arrotos e não diz que vai passar meleca em ninguém.

 

Ainda faltavam umas 5 músicas para terminar o cd, isso daria para um dia inteiro de boas maneiras, olhei para minha filha, que decepção. Ela estava quase dormindo.

 

- Filha, acorda, mamãe não terminou a história.

 

Ela mal pode dizer:

 

- Mãe, essa moça sem mancada é muito chata... e dormiu.

 

 

 

reflexos
ro druhens

Gostosa. Despertava adormecidos gigantes por onde passeassem suas curvas de artista de cinema mudo, sua cabeleira de cachos, seu sorriso de te encontro logo mais. Passo firme, ombros retos, peitos empinados e a certeza de quem chegou pra ganhar. Tudo e todos. Uma loteria pra qualquer um que soubesse sussurrar ao pé do ouvido o abre-te sésamo daquela caverna onde todos e qualquer um era espeleólogo. Despreocupada pois que a vida nada mais era do que o descompromisso de amores tantos e tão únicos. Tão efêmeros e tão eternos.

 

Triste. Despertava de sonhos onde artistas de cinema, mudos gigantes, passeavam pelos cachos de sua cabeleira  com sorrisos de nunca mais. Passo trôpego, ombros caídos, peitos sugados e a certeza de quem nunca chegaria. Um prêmio de consolação pra quem chegasse em último lugar naquela caverna onde todos e qualquer um era ninguém. Preocupada pois que a vida nada mais era que o descompromisso de amor nenhum. Tão efêmeros e tão eternos.

 

E, entre elas, apenas o espelho.

 

 

 

 

poderosa
romina conti

o espelho só reflete o que quer

é o dono da imagem

 

alguma deformação em meu rosto

faz parte de minha engrenagem

 

mastigo todo o silêncio

e engulo o que me reflete

 

a escultura que nunca aparece

sou a madrasta da Branca de Neve

 

 

 

 

 

a menina
santa maria
   

A menina sonhadora tem pavor dos espelhos.

Ela teme que os espelhos mostrem o que ela esconde de todos e dela mesma.

A menina sonhadora teme que os espelhos lhe revelem o que ela não quer ver.

Ela tem muito medo dos espelhos lhe contarem o que ela não quer ouvir.

A menina sonhadora tem pavor dos espelhos porque não é mais viva.

 

 

 

 

 

 

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