edição 24
| março de 2008
2 microcontos mitologias mitômanas de um minotauro
I
— É um belo e sadio bezerro! — sorriu a parteira.
II
— Você é uma vaca! — exclamou o pai.
III
— E se usássemos uma manjedoura? — interrogou a babá.
IV
— Como assim, Perseu? Você veio aqui no labirinto só para matá-lo?! — É uma criatura maléfica criada pelos deuses, Ariadne! — Mas quem não é?!?
sagrada família
A mãe vivia em Paris. O pai trabalhava em Brasília. O filho mais velho esfumaçava no Peru. A caçula rebolava de mochila pelo mundo. A avó num pequeno país de terremotos chamado Parkinson.
a igreja dos lavados A fonte era atrás da Igreja
dos Lavados — e fiquei horas num êxtase, língua à brasa de coxas, andando,
no pensamento, em torno do poço com erva da tempestade no céu da boca.
Bebi aguardente, benzi pedras e gatos. Vi, pela primeira vez, o aspecto
interior da fonte de água mineral que me envolve e me incita ao linho.
Sonhei, chuva a chuva, o abismo em que me precipitei nulo. Escutei em meus
tímpanos o bosque de uma voz que desfiava uma barca na correnteza. Retirei
da sombra a meu Lautréamont íntimo, a meu ser colossal, e tirei-me a
ferros das entranhas de mim mesmo. Devaneio entre o bairro de água Branca
e o bairro dos Paulas. Gozo antecipadamente o prazer de ir tocar as coxas
de uma das três mulheres Araxá. Uma hora estou aqui deitado nas folhas das folhas de relva, outra hora estou lá e pratico ablução com areia embaixo de um baobá, vendo os ângulos algumas vezes cáusticos do absurdum — bate o fino tambor de Dennis Radünz: absurdum, absurdum, absurdum. Tornamo-nos cadáveres, ainda que falsos, até atingirmos aquele ponto da ilusão em que a própria ilusão se destroça, onde já não distingüimos quem somos, de onde viemos, para onde vamos. Porque, de resto, o que fingimos é isto, fingimos ser cadáveres e não sabemos o que somos realmente. O único modo de estarmos de acordo com essa vidraça — ou a vida —, é estarmos em desacordo com nós próprios e com esses talhos fundos sobre a fauce, como feitos por dentes de garfo. O absurdo é o divino e eu passo por entre lianas, alcanço o retábulo de pedra e nele adormeço. Acordo para estabelecer a seguinte teoria: o mar assina oráculo na carapaça da lagosta, depois age contra ela, para justificar o quanto é oco esse oráculo e ocas as nossas ações e as teorias que as vivificam. Talhar uma tainha na nuvem, e logo em seguida agir contrariamente ao mar e seguir por essas espumas. Ter, nos gestos todos, jorro de água e, no pensamento, uma loja de cristais; gestos aquáticos e o inferno é esse gato persa que penetra surdamente na loja de cristais e os cristais — tensos todos — confidenciam que nem somos gato persa nem pretendemos ser nuvens. Adquirir um livro para ler nas páginas desertas a pétala, o salmão e, se pétala de salmão é escama, também é selo de poesia. Ir a concertos para não escutar os cellos suntuosos de Brahms nem para ver o Mister Wong que sempre lá está (no auditório de um concerto, todo calvo é sempre o Mister Wong); dar longos passeios por cima das ondas, andar no bosque vazio por estar farto de andar no bosque vazio e ir passar domingos com a cabeça embaixo do travesseiro só porque ali o céu não nos aborrece. Agora que me oprime a roda-de-ferro na fronte, aquela angústia antiga me conta que chovem fios de mel na carpa, por vezes bebo o andamento delas num aquário e respiro deitado numa das longas folhas da bananeira. E como, ao sair eu, o vento verificasse que a garrafa de vinho ficou pela metade, o vento bateu com a cortina na garrafa, aliviou-a de repente de seu líqüido e o vento se afastou.
rosário de lágrimas Eles tinham dois filhos, muitos invernos, e um monte de contas de lágrimas, que enfeitavam os vãos da casa, em tristonhas cortinas. Ela usava lenço sobre os cabelos longos, sempre presos, um vestido de mangas compridas — para não mostrar os braços — olhos tristes, um avental sujo de cinzas, e era sempre assim, até um dia. Ele tinha um acordeão, um par de sapatos sempre gastos, a camisa aberta sobre o peito e óculos escuros, com que tapar tristeza. Ele viajava para longe, onde havia mar e automóveis. Ela viajava pelos campos, plantando milho, entre outras coisas, alecrim. Quando ele voltava, esculpia santos em pedra, ela colhia o milho, o trigo, e produzia milhões de biscoitos. Choveu um dia em que ele partiu, acordeão sobre o peito, os meninos colhendo contas, ela sovando grãos. A chuva encheu o rio, o rio carregou os meninos, e ela pediu a Santa Bárbara que parasse a chuva. Sozinha perseguiu a água, e encontrou os filhos. Sozinha cavou a terra, e plantou os filhos, na esperança que crescessem como pés de milho. Esperou no decorrer de todas as fases da lua, e esperou, e esperou. Eles não brotaram, ela nada colheu, e ele parecia ter se esquecido. Trocou o vestido por calças e saiu a campear o vento, que a fez passar além da curva. Ele sentiu ser hora de regressar. Encontrou a casa vazia, as plantas queimadas e seus filhos plantados na margem do rio. Mergulhou nas águas, tencionando permanecer no fundo, mas elas o lançavam de volta à superfície. Voltou ao trabalho de esculpir santos e tecer rosários com as contas de lágrimas que colhia. Ela se afastava, até que chegou à linha azul que chamavam oceano. Começou a esquecer quem era, vestiu-se com outras roupas, plantou outras sementes, colheu outros frutos. As estações se sucediam, a lua brincava de se banhar no sol, às vezes minguava. Até um dia. Ela caminhava pela feira. Deparou-se com um rosário de contas, era o passado que vinha. Deixou a casa abandonada, passou pela ponte, venceu a curva, seguiu em linha reta, deparou-se com o oceano, continuou caminhando e a encontrou na feira, contas de lágrimas entre os dedos. Ela o seguiu, fazendo o caminho inverso. Atravessou a velha ponte e viu os filhos plantados na margem do rio, viu o campo seco, viu seu marido esculpindo santos. As cortinas pareciam vivas, balançando na janela. Acariciou seus cabelos brancos e preparou biscoitos. Quando olhou o céu, era lua minguante, e os olhos dele já não tinham brilho. Plantou-o às margens do rio, ao lado dos filhos, e ficou esperando que eles brotassem, eternamente.
6 poemas [sem
título] lenta
súbita gritante
muda evidente
oculta ardente
tímida seca
úmida ? desconheço que tipo de
visita [íntima] me arquiteta a
morte iminente em
teus minos
braços dédalos
dedos labirinto
lábio [sem
título] deus me
prive de provar do
óbvio: ópio dos
pios óbice dos
ímpetos óbito de todo
impacto e me
jogue em um
vórtice indique uma
contenda profira um
veredicto: vagar no
labirinto dos versos
incrédulos e que amar a
esmo seja um perpétuo
vezo [nada
razoável] sabotagem descendo
de uma
família onde todos
morrem
cedo vítimas de tumor
maligno esse
destino [fatídico] comigo não tem
chance: eu sou o
câncer demo o
quê? fui educada à moda
antiga à moda da
casa à moda dos
afonsinos : para casar e ter
filhos pois bem,
casei [coisa mais
démodé] mas não
ando conforme o
figurino [sem
título] falhas, filhos,
folhas : não fossem as
vogais daria tudo na
mesma quase todo mundo
tem uma resma de
problemas desgarrada sou a ovelha negra da
família a única que urra
late
mia lambe as próprias
feridas cicatriza
sozinha — enquanto o
rebanho diz amém a
tudo com balido —
o avô
Avaliou a fisionomia dele. O aspecto meio antipático não combinava com os fragmentos de biografia que circulavam na família. Visto assim, morto, lembrava um coronel da reserva. Alguém murmurou ao seu lado a ladainha repetida desde a infância. — É impressionante. Ele era igualzinho a você. Nunca soube as razões da comparação. Passou o dedo de leve pelas mãos dele, cruzadas sobre o peito. Quis tirar a aliança grossa e olhar por dentro do aro. Helenas, Cecílias, Luzias. Considerou a possibilidade de interrogar as tias, mas adivinhou, a tempo, o constrangimento óbvio da abordagem. Ainda acreditava, até ontem, que o avô tinha morrido jovem, numa viagem à Bahia, deixando viúva a vó Lirinha, ainda bonita e já muito respeitável. Postou-se logo atrás do cadáver e, por puro interesse, alisou os cabelos dele, como num carinho. Deixou dois dedos entrarem por trás da nuca, até o colarinho do paletó. Obedecia a uma mania sem explicação, quando puxou a etiqueta para ler: Casa Tavares. Lembrava perfeitamente da loja de roupas masculinas, tradicional e cara. Olha ali um Casa Tavares, ele dizia criança, ao ver o cachorro peludo, que era a marca registrada da confecção. Teve ganas de sair correndo a procurá-la pela cidade; ir lá comprar um paletó em parcelas. Um desconhecido deixou a varanda da sala do velório, aproximou-se e pediu fósforos. Ao acender o cigarro, o encarou surpreso. — Parente? — Neto. — Assustador. É muito parecido mesmo. — Já sei. — Quando conheci o seu avô, ele devia ter a sua idade. — Na Bahia, arriscou. Ia perguntar como, onde, o que ele fazia, por que ele desapareceu, como ele era, o que os fazia tão parecidos. Não deu tempo. Uma das tias da Tijuca o arrastou pelo braço até a saleta do cemitério. — Vem cá, lembra do Maurinho? Olhou a cara do sujeito e não achou nada para dizer. O Maurinho foi simpático. Sob os arcos da varanda, o conhecido do avô gesticulava, arqueando comicamente as sobrancelhas. Reparou então as pernas da mulher do Maurinho, sem meias, de sandálias, apesar da chuva. Os dedos meio molhados, um arranhão no joelho e uma pinta na curva do calcanhar. Os cumprimentos foram rápidos. A tia saiu com o casal, e ele ainda pôde ver a moça caminhando, a saia azul-clara fazendo um balanço delicado. — Seu avô nunca esteve na Bahia. O desconhecido estava quase colado às suas costas. Olhava na mesma direção: a mulher do Maurinho sumindo pela porta. — Teve uma amiga baiana, extraordinária. Sempre quis viver na Bahia, mas nunca esteve realmente lá. O velho parado no contraluz da tarde, com a cabeça branca e a barba amarela de nicotina, parecia saber tudo sobre o avô reaparecido na morte, de quem o neto havia recebido o mesmo nome e mais um repertório misterioso de semelhanças. Pode ter sido efeito da paisagem grave, ou puro tédio. Fato é que decidiu ir atrás das histórias do avô, animado pela idéia (ou esperança) meio infantil de descobrir melhores partes de si mesmo. — Como é o seu nome?, perguntou ao velho. — Miro. — Prazer, José Francisco, como o meu avô. Ofereceu um café e o Miro aceitou um destilado. No bar em frente, sem saber por onde começar, José Francisco desenhava na toalha de papel da mesa, num gesto automático que o outro identificou, porque o avô, ele disse, tinha mania igual de ficar fazendo caricaturas nos guardanapos. — Trabalhava em quê? — Nos sete instrumentos. — De verdade. — Difícil dizer. Fotógrafo, desenhista, vendedor, cavaquinista diletante. Chegou a ter um comércio, depois quebrou. — Por quê? — Pergunta difícil. O dinheiro vinha, e o dinheiro ia. — É, deve estar escrito no DNA. Nisso a gente é mesmo parecido. — Há coisas piores do que perder dinheiro. — Dizem, mas eu duvido, disse o José Francisco, e riu à toa, como toda gente faz. O velho não achou graça. Partiu um palito e apertou os olhos, como um gato. — Deixar de criar os filhos, abandoná-los, por exemplo, é pior. A observação desagradou o José Francisco, que pressentiu nela uma censura de fundo moral. — Não me queixo do meu pai. E ele, pelo que dizem, não se queixou do meu avô. — E o resultado: olha só a sua cara. — Que é que tem? — Jeitão de copo vazio. Preciso dizer? — Não, não precisa. Para falar a verdade, não precisa nem deve. Conta só do meu avô. — Seu avô foi um clichê de cavaleiro, antes desandado que andante. Daquele tipo que justifica tudo em nome de uns ideais muito, muito discutíveis. O velho aparentava um não-sei-o-quê cômico, naquelas sobrancelhas franzidas, tão professorais. Tinha-se a impressão de que, a qualquer momento, alguém viraria a página e ele ia se desfazer no ar. Era uma figura tão improvável, que o outro pôde enfim sentir-se seguro para perguntar. — Por que ele não voltou? — Porque seu avô acreditava nas terceiras vias, terceiras margens, outras possibilidades, outra chance. Um projeto maior, uma cidade mais bonita, uma mulher mais misteriosa. Por que você largou a sua mulher? — Por outra mulher... mais misteriosa, respondeu José Francisco, agora rindo de verdade. — E aí? — Aí, era tão misteriosa que sumiu. Confessavam-se, bebiam, mutuamente absolviam-se. E o Miro ia tecendo a vida do avô, cheia de extravagâncias, seduções, ambiguidades, vadiando por músicas, mulheres, livros, gestos nobres, picaretagens, armadilhas, manobras, tipos de cerveja. Até o caso da caixa de fósforo. Na época, contou o Miro, meio engasgado, os dois amigos moravam juntos numa quitinete, e tocavam na noite, feito irmãos, como de fato os há, às vezes. O avô era franco atirador nas madrugadas. O Miro era o parceiro tímido, semínimo e manso, que acertou uma noite com uma namorada pequenina. O avô apadrinhou o romance do amigo e jurou conduzir os dois ao altar dos Capuchinhos. No aniversário dela, mesmo sem dinheiro, combinaram grande comemoração de botequim. A moça chegou atrasada, encabulada. Muito mais tarde ainda veio o avô. A madrugada já ia alta, quando ele adentrou o bar carregado de flores e sardinhas, que trouxe da Praça XV, onde conheceu um despachante, que imagine o levou a um depósito, e onde cantavam embolada... enfim, os caminhos tortos do José Francisco. O Miro recostava a cabeça nos azulejos e ia lembrando. — Escutei e esqueci. No dia seguinte de manhã, sem isqueiro, procurei fogo na bolsa dela. Achei a caixa de fósforos toda rabiscada com poemas e juras de amor vagabundo, repertório dele que eu conhecia de cor. Seu avô era o meu melhor amigo. Foi até o caso da caixa de fósforo; e cada um tomou seu rumo. — Você nunca perdoou? — Não. Mesmo assim não briguei, continuei amigo por inércia. A ela, mandei embora. E seguiu virando o copo sem mágoa, desdobrando a história das dívidas que o avô não pagou, das pessoas que ele feriu no entusiasmo de grandes idéias ou com as promessas sinceras que nunca ia cumprir, e também dos lances de gênio, de repente tão generoso. As idas e vindas e as fraquezas do João Francisco velho consolavam a alma do moço, já nem tão moço. De maneira que até nos lances inconfessáveis, onde havia sempre se considerado vil e venal, o neto ouvia agora bater um coração reerguido, feito para se perder e se redimir, desmesurado. Sobrara muito pouco da vida desse avô excessivo, além do amigo traído, fumando num velório. Isso valia, contudo, para dar algum sentido a tudo. Olhou no relógio e se assustou. Não queria perder o enterro. Pegou o Miro pelo braço e correram de volta ao cemitério. No São João Batista, chegou a tempo do ato principal. Preparavam a descida do corpo e José Francisco se emocionava. Rezou em silêncio pelo morto. No peito, uma inspiração nova nascia do seu próprio nome, herdado junto com o destino desviante. Já quase ninguém se via perto da lápide e o Miro continuava ao seu lado. Tempo, tempo, tempo.
***
Só quebrou-se o silêncio, quando alguém chamou. — Vem, Miro, já acabou. O velho saiu por entre as alamedas cheias de anjos, madonas, espadas. Nem se virou, nem se despediu. José Francisco foi atrás: aonde você vai? Um dos coveiros balançou a cabeça, para explicar: ele vai de velório em velório, o dia inteiro nesse cemitério. Inventa histórias sobre os mortos, vê o futuro, canta. Já é de casa. José Francisco estacou. De repente muito cansado. Ficou ali, vendo avançar o pôr-do-sol dos mortos. Olhava, de longe, a sepultura do avô. Em redor dela, espadas de São Jorge e o vazio, que crescia.
SP, 2002/2008
célula nenhuma morfina vai sedar
esta dor quando passava pelo corredor
estreito até o quarto opacidade no vidro da porta,
a câmara hemática e mãos contorcidas no
mármore reduto de lembranças rubras,
acrílicas uma escada de incêndio
ineficaz para a fuga agulhas e linhas para bordar reparos
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