edição 25
| abril de 2008
dias felizes A velha sozinha na varanda,
na cadeira de balanço, gingava o corpo recurvado
pra lá e pra cá. Todas as suas noites foram
uma espera silenciosa daqueles que nunca
vieram. Além da lua e das estrelas
que sempre a visitavam, recebeu finalmente, naquela
noite, uma visita importante. E a velha sozinha na
varanda, na cadeira de balanço, ninava o corpo morto pra lá e pra cá.
noite A janela do quarto onde
durmo deita para a piscina da mansão dos Hoopers; deita a janela, também,
para a imensa manhã, onde o vento não se ouve, passa pelas folhas das
vinhas, talvez nem se perceba o vento e Homero, que não existe mais, quem
sabe sinta essa aragem mais que nós. Sentado à janela, contemplo essa
coisa nenhuma que é o quintal com laranjas lá fora. Quantas vezes julguei ver a luz lá no beco e, nas ruas de pedra com sobrados altos, o que apenas vislumbro são virgens em flor à sombra de cellos de Brahms e, diante do copo de água, eu passo as horas a cismar. Acordo e pulo a janela do quarto, para observar a prosa serena dessa praia Brava — o céu definitivo sempre esteve aqui, entre as coisas naturais — e ali, no areal, finco o guarda-sol, medito que as cordas dos violoncelos em vibração cumprem o seu dever primitivo: soam! O meu corpo adormece nessa praia, enquanto as folhas da palmeira pairam sombras no mar de gelo. Afasto-me da essência da sombra e, nessa cama improvisada sob o guarda-sol, penso que o imaterial rege o material e reconstrói o osso de Trakl e o jardim que Wittgenstein cuidou no mosteiro da Basiléia. Rente ao mar e sob o guarda-sol, desconsolado e anônimo, escrevo palavras para salvar o alfabeto das conchas; lavo-me em ar de tumba para tocar um inferno suspenso no pensamento. A chuva não perturba as linhas das marisqueiras que ondulam na praia Brava. Retorno ao quarto que deita para a piscina da mansão dos Hoopers. O céu enfia-se pelos ouvidos, pelas narinas, pela boca e, estirado de novo aqui na cama do meu quarto absurdo, escuto a idéia de que sou pó e ao pó voltarei ou voltarei para os eflúvios da noite. Esvaziado de toda alegria, sou forçado a um contato com a brisa que afunda na fronte dos que andam à beira-mar. Escuto cismas da serpente corcunda que insiste em cravar suas garras em minhas brânquias. Escuto a chuva que lava os telhados, mas agora, deitado na cama, o que é isso que esboça no inciput fervente um cacto difícil de definir? A idéia de uma obrigação qualquer me desconcerta: ir ao banheiro escovar os dentes; tratar junto do açougueiro uma coisa que é pedir a carne para o bife; esperar na estação de trem essa moça tão depressiva, que maquia defuntos para apaziguar os pensamentos de um dia. Às vezes durmo mal e sonho que bato no prato de lentilhas com o pano cheio d'água. É desde a mesma véspera do nada que me preocupo com as pedras que ardem, e o caso real de haver um mar pensativo, quando se dá, é insignificante, mas descerra a porta maciça, e a solidão repete-se, e eu desaprendo a sofrer. Os meus hábitos são do silêncio, nunca dos deuses nem de Homero, que escutou que um mar é água sobre água que se move. A janela do quarto onde durmo continua deitada para a piscina aberta da mansão dos Hoopers, e a visibilidade de tudo que passa seca minha retina. E, agora, aqui, estou preso à mansão dos Hoopers, principalmente preso a esta mulher que mergulha sua nudez na piscina e verifica se a janela aberta é a do meu quarto.
ausência Amou tanto, daquele amor danado e romântico, que pensou morrer quando ele se fez névoa de passado, daquelas densas, tal a perfeição de sua partida. Quase arte de feitiçaria, que parecia ele não querer lhe deixar nem a lembrança do rosto, nem o cheiro amadeirado, nem o toque macio do lábio. Ela de quase nada se lembrava, nada quase, apenas sensações lhe indicavam que existira alguém. Nos armários nada havia que indicasse sua passagem. Tivera o cuidado de levar consigo tudo que comprovasse a dor que lhe causara. Nunca recebera um mimo, sequer uma frágil flor apanhada nas margens da estrada. Estranhara até. Banalidades, dissera a si, em silêncio magoado. Nunca a encontrara a luz do dia, alegava falta de tempo, compromissos. Não conhecera a verdadeira cor da sua pele. O acordar fora sempre solitário. Quando abria os olhos, via o vazio ao seu lado, em todo o quarto. Começou a odiar a luz que o distanciava, e ansiava pela noite. Ela, que sempre odiara o passar das horas, e se lamentava com o passar dos dias, esperava a morte desses, vendo com prazer o sol se desfazendo entre as nuvens. Conhecia todos os mistérios que a lua poderia oferecer. Ninguém o conhecia. Quando queria apresentá-lo a alguém, olhava ao seu lado e ele já não estava. Voltava depois dizendo que fora comprar algo, com as mãos limpas. Nunca atentara para o absurdo da mesma desculpa. Um dia se despediu como de hábito, e nunca mais voltou. Ao mesmo tempo em que ela sentia sua ausência, procurava pistas de sua existência, pois começava a duvidar de suas lembranças. Elas não lhe permitiam visualizar seu rosto. Saía todas as noites, o que a fazia sentir-se mais próxima, como a afagar uma velha camisa. Acariciava os lugares onde haviam estado, o espaço vazio onde seu corpo repousara, conseguia visualizar algo. Às vezes um choro sentido escapava de seus olhos, tremia-lhe ligeiramente os lábios. Levantou-se um dia e forçou-se a olhar pela janela. O sol da primavera que chegava. O inverno havia passado. Não perdera tanto sol. Colheu uma rosa molhada de orvalho que crescia junto à janela e acariciou os olhos inchados. Convencia-se de que tudo fora apenas sonho. Pensara morrer, mas seu instinto de sobrevivência era maior que tudo. Desligou-se completamente daquelas sensações naquela primavera. Decidiu deixar o fantasma onde fantasmas gostam de estar. E mergulhou no dia, até que encontrou alguém visível como ela, palpável e que lhe enchia de lembranças, antes mesmo de se perder na fumaça do tempo, etérea, assim como os sentimentos, a dor, o amor e a morte.
novela de cavalaria No alto daquele morro, tem
um valão. No valão, uma pinguela. De um lado, está o Edmundo. Do outro, o
Raimundo. A rima dos nomes, em vez de
adoçar, azedou cedo a amizade, quando os dois ainda eram meninos. Nunca
haviam brigado, mas ficavam de longe, prudentes. E cresceram se
estranhando, antipatizados sem explicação. Sempre
vizinhos. Agora já é de manhã, mal
raiado o sol, devem ser umas cinco da madrugada. Os dois vêm bêbados,
trançando no ar, naquele humor temerário do álcool. Param na pinguela. Sem
uma palavra, adivinham que não vão ceder nem
arredar. Posso tudo, pensa o Edmundo.
Posso tudo, pressente o Raimundo. Nos dois, o coração celerado, cascudo, a
ponto de rebentação. Eles não sabem, falsos
pentecostais, mas um é filho de Xangô, outro de Ogum. Pegam-se com fúria,
pedras rolando, ferro batendo, cachorros latindo, babando, arfando em
volta dos homens entranhados. Carne, osso, dente, pêlo, sangue, caldo,
saliva, cheiro, boca, bafo, grude, gosto, gosmas, até a exaustão. Até
acabar toda a fé. O tempo parar. E eles tombarem juntos, um sobre o outro,
na lama do valão. Cá de cima, a gente olha lá
pro fundo e vê. Sobrou entre eles, Edmundo e Raimundo, um restinho do amor desperdiçado, um cheiro de cana. Alguém com dó derramou para o Santo, e deixou o cálice do lado dos corpos.
l'éden et après seu rosto em
delirium expressão de gozo,
dopamina abstinência, sudorese,
midríase inchaço nas
pálpebras tremor era pouco, foi preciso
aumentar a dose,
cruzar a fronteira, saturar
as
sinapses corpo em transe ao som de
satisfaction enfer des
images.
noturnas, fascinantes e também tristes, cruéis,
conhecidos bas fonds
urbanos escuros, a taste for danger,
excesso até o
confinamento 84 dias
numa clínica,
lendo Wislawa Swyborska
fantasmas
privados, tortures um álbum de Nick
Cave lenta
reapropriação retorno do olhar
extremo: fotografar a
paisagem a luz de um céu
vermelho em
Bangkok Death Valley, vulcões
|