edição 26
| maio de
2008
rotina Ele
me lambeu, como lambia todos os dias. Ele me chupou, como chupava todos os
dias. Ele me comeu, como comia todos os dias. E
depois morreu. Do mesmo jeito que vinha me fazendo morrer:
Todos
os dias.
notas de
verão sobre impressões de inverno :
mas que direito tenho a aspirar à poesia menor — amores perros, fugidios,
quando a minha saga é tão maior e bruta e o que me foge às mãos é um meio
de subsistência? talvez,
caso fossem personagens russos, o frio — tão rotineiro —, lhes teria mais
sentido. vivem nesse país tropical, na capital-solar, cidade quente da
porra. têm o cartão-postal que qualquer rico invejaria, ah, barra do
ceará, praia do futuro, ah! que não lhes serviluz. vêem
suas dignidades feridas, humilhados, ao pedir o terceiro quarto do peixe
que voltará ao mar feito lixo, doença de turistas branquelas. mas que
remédio? pense na fome, cabra. também
russos se fossem, melancolia que só, não ousariam ostentar esse riso
despreocupado, a mendicância displicente feito cabelos levados pela
maresia, a mesma que os salva de dia e provoca os tremores noturnos. de
frio de fome de vício. essa
moça, atrevida que é, fala em primeira pessoa.
:
nació para morir.
2 contos você
tinha que ver a neve (de
Memórias de Patty
Flag) —
Du solltest des schnees sehen!
—
O quê?
—
Ah, você tinha que ver a neve! Só assim aprenderia a gostar do
inverno!
Falava
com Oromar por falar. Sabia que meu carioca da gema, ex-músico da
orquestra do Cassino da Urca, amaldiçoaria eternamente cada dia de
inverno. Mas era reconfortante recordar assim, falando em voz alta,
fingindo que era com ele. "No
natal de 1941 nevou como nunca em Berlim. Foi um inverno rigoroso em toda
a Europa. Os alemães haviam invadido a União Soviética, o rádio cantava
vitória de hora em hora... E o inverno os derrotou. Azar o
deles. Nós,
como todos os judeus, já havíamos sido obrigados a nos mudar para o gueto.
A casa era uma velharia e meus pais se viam às voltas com a água congelada
na torneira, em encontrar mais lenha para a lareira, coisas
assim. Eu
olhava as estrelas amarelas pregadas nos casacos dos que se arriscavam nas
ruas e pensava, 'E se Hitler mandar meu Gustaff para a frente de batalha
debaixo deste inverno?' A
neve cobria tudo. Uma surreal sensação de paz na paisagem
branca". Oromar
acordou com o próprio ronco. Disse, "Sim, sim", por dizer, espiou o
Flamengo, e fechou os olhos de novo. Ele
me pediu em casamento na época do Cassino. Eu estava no auge. Artistas e
homens importantes da política me bajulavam. Nada me faria olhar para o
pobre mulato. Trinta
anos depois, reencontramo-nos por acaso, ele tocando piano em um bar
decadente de Copacabana. Entrei para beber um uísque e ele me reconheceu
de pronto. Parou a música na metade, foi até o balcão onde eu estava,
beijou minha mão e disse que eu continuava linda. À
beira dos 60, da depressão, lutando com o álcool e o medo de envelhecer?
Desta vez, eu o pedi em casamento! Procurei
por suas mãos debaixo dos cobertores mas encontrei as mãos de Gustaff
naquela Berlin de 1941 alisando minhas coxas. Um
arrepio percorreu toda a minha vida. No
Rio de Janeiro não há inverno, jamais haverá. Apenas um sopro
frio. pedi
que ele repetisse (de
Memórias de Patty
Flag) Em
meus primeiros anos no Rio, morei na Lapa, como prostituta de baixa
categoria. Os
homens — habitués, aventureiros, passageiros do bonde. Cada um tinha sua
história, todos tinham sua esposa —, iam e vinham com uma velocidade
egoísta. Misturávamos os suores de nossos ventres, gemiam sobre meus
cabelos, derramavam saliva em meus ouvidos.
Quando
se é prostituta, a rotina é o sexo, mas eu nunca havia tido um
orgasmo. Guilherme
não me chamou à janela. Passou, me viu, sorriu. Estacionou tranqüilamente
no fim de tarde e veio conversar comigo. Flertou, me arrancou risadas,
como se não me bastasse pagar cinqüenta cruzeiros. No
hotel, era como se nos conhecêssemos há anos. Ele acariciou meus seios,
sorriu quando fiquei nua, e disse suavemente em meus
ouvidos: —
Você tem pernas de Marlene Dietrich.
Filho
da puta! Marlene era meu alter ego. Nunca conscientemente pensei em voltar
para a Alemanha. Eu não tinha mais nada na Alemanha e a Alemanha não tinha
mais nada para mim. Mas quando as luzes do cinema se apagavam, eu era
Marlene Dietrich, ela era tudo o que eu poderia ter sido. Assisti ao Anjo Azul doze
vezes. Pedi
que ele repetisse, eu ria. Pedi que ele repetisse, cada vez mais alto, eu
ria. Pedi que ele repetisse, gritando, eu ria. Gozei pela primeira vez em
minha vida enquanto ainda nos beijávamos. Pedi que ele
repetisse. Guilherme pagou e se foi como qualquer outro. Mas eu não era mais a mesma.
ausente A
poesia dorme. Nem
pesadelo nem doce sonho. Bateu
um vento bem
no meio de um porquê. Petrifiquei
bem aí. Não
teve um fator paralisante. Só
um não ter para onde ir. Ninguém
me acalma ou
preocupa nesse instante. Nem
é o nada quem me abraça, ele
não faria tanto por mim. É
só um não sentir. Guardei
tudo o que não consigo lidar em caixas e estoquei. Estou
bem no meio de um grande armazém. O
motivo pediu conta e foi surfar no Havaí. Ingredientes,
lenha e fogão está
tudo aqui. Só
não há fome.
rotina Apenas
acontece. Acontece que os olhos se
fecham no começo do fim de cada madrugada. Acontece que os olhos se abrem
no começo do fim de cada manhã. Acontece que os olhos ficam abertos
durante as luzes apagadas do dia todo e insistem em assim ficar no
escuridão de todas as luzes que a noite traz. O corpo dói porque envelhece
e isto é irreversível. A alma envelhece porque dói e isto sangra
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