edição 29 | agosto de 2008
temas:  ponto g | deus & diabo

 

 

tua língua solta pelo mundo afora e abaixo do umbigo

 

 

balé de dois

julya vasconcelos

 

"¡Oh, qué delicia! Jugar con fuego".
- Vicente Huidobro

 

Leila, rumoreja, sim? Arqueia o peito e lamenta qualquer coisa, qualquer coisa. Invade o teto do apartamento inteiro com o abdômen já fatigado das linhas retas colunais. Contradiz e depois aprova, impudente. Envia o rosto para longe da garganta. Aperta a garganta, cada vez que tanjo, como se esta fosse diretamente ligada à pele das coxas, das orelhas. Devora a comida da mesa, bebe a água dos córregos, fuma os cigarros dos homens sérios, lambe o suor que trago nos vincos e nos dedos, e grita na língua morta, cheia de arpejo, que enterraram ciência e geografia entre as tuas pernas. No hálito farto, me atordoa: sê hábil com os enigmas, sê.

 

 

10 poemas
líria porto

 

comensais

 

a cama caminha

vai como um camelo

cálida camurça

começa com a moça

por cima do moço

 

el loco motiva-a — goza

goza mais um pouco

 

 

 

 

dio santo

 

um moreno tão bonito

quando fito seu semblante

sinto a pele se eriça

desce um frio baixo/ventre

dentro em mim faz-se um precisa-se

deus do céu o que são issos

                                  premências?

 

 

 

 

esse é o ponto

 

reboliço alvoroço

moço eu lhe peço

não me faça isso

depois do almoço

 

pare pare pare

não recomece

queria ser de aço

sou de carne e osso

 

não me atice

falta-me pulso

careço preciso

necessito            

            lavar a louça

 

 

 

 

rameira

 

vi-me em cama de vime

 

havia um lugar

um homem a cavá-lo

um homem a cavalo

 

um ponto

 

 

 

 

cruz

 

tinha hímen complacente

seria virgem — e para sempre

por mais homens que viessem

 

prenderam-lhe a alma entre as paredes do corpo

não chora não ri não beija não pergunta nem responde

fica horas e horas sem se mover

a olhar o teto

 

céu

          ou inferno?

 

 

 

 

(e)vidências

 

algo me diz tem cuidado

sigo a intuição

 

se o coração dispara eu paro

ouço o alarme

vejo raios relâmpagos

trovões tempestade

                        o diabo

 

o coração não me engana

 

 

 

 

versinhos encapetados

 

quando nasci

não havia anjo disponível

então um capetinha com um tridente

espetou o meu traseiro e disse — vai

cai na vida antes que alguém repare que não tens cacife

que teu fôlego é curto

que para sobreviveres

                          morrerás mil vezes

 

 

 

 

temos asas viradas para dentro

 

ninguém é só bom ou ruim

pensem o que pensem

assim somos

mestiços de anjo

e demônio

 

 

 

 

cruz credo

 

perco o sono

sinto medo

pisco um olho

fecho o cenho

tudo escuro

muito preto

eu campeio

pelo quarto

acho um terço

pendurado

bem no meio

do pescoço

da mula-sem-cabeça

 

(avemariacheiadegraçaosenhoréconvoscobentitasoisent

reasmulheresbenditoéofrutodovossoventrejesussantama

riamãededeusrogaipornóspecadoresagoraenahoragá)

 

 

 

 

ruindade

 

a dor sem entranha montava-lhe as costas

fincava-lhe o ferrão a espora o chicote

insistia — galopa galopa galopa

e a pobre anciã já sem força gemia

não posso não posso

n ã o  p o s s o

 

deus e o diabo

                 espiavam de longe

 

 

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