edição 29 | agosto de 2008
temas:  ponto g | deus & diabo

 

varanda
lucélia majistral

Quinze degraus levando à varanda. A varanda suspensa, os pés dele suspensos. Um filete de fumaça escura. Minhas pernas tremem. Ele olha para baixo. Eu me sento na cadeira vizinha. A varanda se lança sobre a calçada, suicida. As pessoas passam, o sol desaparece. Acaricio o meu ventre, medrosa, e penso: A mão dele. As pessoas passam, o sol reaparece. Eu digo: Tenho que te contar uma coisa. Ele olha para cima. Eu sinto que vou vomitar. Pessoas passam lá embaixo. Eu gostaria muito de vomitar. Olho para cima. Tenho que te contar uma coisa, repito. Ele coloca os dois pés no chão, silenciosamente. E me olha como se fosse arrancar os próprios olhos.

 

 

outra história de amor

mariza lourenço

 

— A moça se chamava Juleima.

 

— Isso é invenção, mania de colocar nomes estranhos em personagens.

 

— Não é invenção! Conheci Juleima por ocasião de seu casamento com Jurandir.

 

— Juleima e Jurandir? Minha nossa... e tiveram um filho de nome Julandir?

 

— Anos mais tarde tiveram uma filha, a Carolaine. Olha, você se apega a detalhes insignificantes. A história de Juleima, garanto, merece mais atenção que os nomes.

 

— Pois diga! Casaram-se e tiveram a Carolaine.

 

— Não atropele a história, Jurandir e Juleima se casaram e foram passar a lua-de-mel em uma estação de águas.

 

— Estação de águas me lembra viagem de trem. Sim, estação de águas, trem, século retrasado, casamento... Ai ai ai, há algo de podre nesse caso. Cuidado com o plágio, isso é cópia de Machado.

 

— Já lhe disse, a história é verdadeira. Sigo adiante? Quando retornaram, Juleima e Jurandir abriram as portas da casa aos parentes e todos se surpreenderam ao vê-los absolutamente iguais.

 

— Deviam estar diferentes?

 

— Claro, ao menos um rubor nas faces, uma ínfima, pequena denúncia de que haviam deixado para trás a condição de solteiros. Mas voltaram iguais, entende? Jurandir, pálido como sempre, e Juleima com o mesmo recato de donzela.

 

— Nessa eu não caio, vai me dizer que não transaram? Ou adequando-me à sua fantasia: não praticaram o ato?

 

— Praticaram o ato, convenhamos, melhor adequação encontro em "não desfrutaram dos prazeres da carne". Mas, em resposta à sua pergunta, digo que ninguém soube.

 

— Anda, continua, que a curiosidade, agora, é grande.

 

— E quando se esperava que os recém-casados fossem vistos pela cidade em arrulhos, o que se via era um Jurandir metido em pijamas de listras e uma Juleima vestida de peignoir estampado de bolinhas. Reclusos, anti-sociais, não passeavam, não visitavam, não iam ao cinema.

 

— E, provavelmente, não desfrutavam dos prazeres da carne.

 

— Talvez... Bem, meses depois chegou à cidade um amigo de estudos de Jurandir. Amizade antiga, ambos compartilharam o mesmo quarto na Capital. O visitante, rapaz esbelto, forte e simpático, chamou para si a atenção da cidade inteira. Todos queriam conhecê-lo, as mães, especialmente, interessadas em arranjos matrimoniais para as filhas. Mas o moço não se dispôs a conhecer ninguém, pelo contrário, todos os dias enfiava-se na casa do amigo e de lá só saía para voltar ao hotel, tarde da noite. E o casalzinho, que antes vivia recluso, passou a caminhar pela cidade em companhia do visitante. Juleima, sempre ao meio, faceira, sorridente, ladeada pelo marido e seu amigo.

 

— E a mudança que todos esperavam, finalmente, aconteceu?

 

— Sim, Juleima já não exibia aquele ar de moça virgem e Jurandir ganhara outras cores. Um verdadeiro casal, enfim.

 

— Mas a que preço?

 

— Não se sabe, mas me parece que não houve nenhuma perda irreparável, a não ser por um fato esquisito, ocorrido logo após a volta do amigo à Capital, e que eu mesma presenciei.

 

— (...)

 

— Era bem tarde, eu esperava pelo trem da meia-noite, e avistei um homem parado na plataforma, com o olhar perdido, distante, distante. O Jurandir. Ele tinha os olhos vermelhos, como se tivesse chorado.

 

— Esquisito, certo seria estar lá a Juleima.

 

— Pois é, certo seria, mas posso apostar que aquele olhar era...

 

— Saudade.

 

 

 

dois poemas
nina rizzi

diversas

 

o êxtase é um

vê-la

(colados os corpos

sou o seu profundo)

não abro mão da maravilha

: (minha) condição feminina

prolongar prazeres

como não a dor

 

senhores (minha senhora), não há nada como

a vida clitoriana

en(sf)trega em tribal

 

ademais, nada sabe a ciência do íntimo

— o meu

: n'ela o prazer é um canto

curva entre ossos

maciez rugosa

é maresia

pontos em gostos gemidos

gritos e gozos

 

 

 

 

um oriki pra oiá

 

pluma no ar

espada em ventania

cálice inquebrável da tempestade.

eparrei-ô, oiá!

brisa que é chama

porto que é vento.

 

sopro que faz beleza-sol

forja com teu suspiro

um ar-co(ragem) pr'eu morar

flecha que acerte meu ri(s)o

e toma, doma essa angú-tristeza

o pranto da peleja

que se trava em meu reino inte-ferior.

 

inhame branco

camarão vermelho

banhados em dendê

(pra mamãe)

colar de contas

pra cantar o seu congar

pra contar os seus prestígios.

roda sua saia

que gira giras-sol

sopra que seca (m)águas

olha que encanta

(h)aja que apaixonam.

ê-ê-ê-par-rei-ô, oiá!

 

mamãe escultora que dá vida à madeira

: uma filha de seus olhos-constelações de gêmeos.

que goza no vento

que é seu ventre

eparrei, ô, oiá!

 

vem com teu vento

pra me acalmar

eparrei, oiá!

epifania dos ventos e tempestades

senhora do rio oiá

búfalo invejável

que doma nossas dores

não minto,

não minto,

iabá do meu cantoar

: meu oriki é pra oiá!

 

 

 

 

2 contos
patty flag   

gott und der satan

(de Memórias de Patty Flag)

 

Aos 33 anos meu sotaque desaparecia na mesma proporção que as celulites apareciam; minha carreira no teatro de revista estava acabando.

 

Pensei em repreender Guilherme quando estacionou seu carro em frente à minha casa no Engenho Novo. Durval, meu primeiro marido — com quem me casei por amor! Sim, porque, apesar do que dizem, todos os meus casamentos foram por amor! —, estava na repartição, e aquele carro oficial iria gerar um diz-que-não-diz danado na vizinhança.

 

Mas Guilherme desaparecera da noite, eu já não o via há pelo menos cinco anos, e me acostumara com esse papel de príncipe em cavalo branco que ele adorava repetir de tempos em tempos em minha vida.

 

— Meu Anjo Azul Tropical, sabe que Marie Magdalene se apresenta esta noite no Copacabana Palace?

 

— Vamos combinar assim: nunca me chame de Patrícia, e nunca chame Dietrich de Magdalene. Isso acaba com a magia!

 

— A verdadeira magia, Patty, não acaba.

 

— Sim, e é por isso que, esta noite, quando Marlene Dietrich estiver brilhando no Copacabana, eu estarei rebolando na segunda fileira de figurantes da Boate Vogue.

 

— Não, sua boba! O que acha que eu vim fazer aqui? Nós vamos assistir Marlene juntos! Faço questão!

 

Como fosse aquela outra noite qualquer há quatro anos, preparei o jantar de Durval, transamos enlouquecidamente, tomei meu banho e saí para o teatro. Eu não ia provocar uma discussão agora. Domingo, quando já houvessem mexericado em seus ouvidos, ajeitávamo-nos ao nosso modo.

 

Enganei-me, madrugadinha, chegando em casa como de costume, a tempo de preparar o café para ele, Durval me agarrou pelos cabelos e me jogou no chão frio da cozinha:

 

— Então, o deputado esteve aqui, não esteve? E a senhora não me jurou que não o veria mais? Não jurou para mim no dia de nosso casamento? Jurou ou não jurou — vagabunda! — no altar, diante de Deus?

 

A cara amassada no chão, agarrei meus pensamentos à janela, um último raio de lua. "Esse luar lá da cidade, tão escuro...", a voz de Marlene longe, baixinho, sussurrando "Luar do Sertão" em meus ouvidos, enquanto Durval me comia e me arrebentava de pancadas.

 

Deus e o diabo, Gott und der satan dormiram comigo na mesma noite. E eram a mesma pessoa.

 

 

 

 

darling, I'd caress you

(de Memórias de Patty Flag)

 

Há quanto tempo eu não ia ao Golden Room... os lustres, as colunas... ah, eu adorava aquele luxo! A última vez Carmem Miranda me convidara, mas já fazia... Sei lá, melhor não pensar!

 

Pensar apenas que Marlene era divina! Que eu nunca, nunca mais esqueceria a noite em que a conheci! Que sua voz era tão sexy quanto o seu vestido! Que, ainda que 26 anos mais novo, aquele pianista seu amante, Burt Bacharach, não tinha um décimo de seu brilho!

 

É verdade que estava embevecida, mas Guilherme tinha um toque... Era como se soubesse de um segredo que ninguém mais... (E não é que Durval não fosse um grande amante, certamente que era. Quantas mulheres podem se gabar de ter sexo todos os dias após quatro anos de casada?).

 

Dietrich cantava "Lili Marleen", quando Guilherme pousou as mãos em minhas pernas. "Darling I'd caress you / And press you to my heal". E pelos vãos do vestido promoveu uma erupção por baixo de minhas saias. "Querida, eu acaricio você / e o seu toque é a minha cura".

 

Ao contrário do que Durval pensara, Guilherme e eu não transamos aquela noite. Depois de conhecer Marlene, eu fui para a Vogue trabalhar, como se aquela fosse uma noite ordinária.

 

 

 

 

 

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