edição 2 | novembro de 2005
fúria

 

l'image
mariza lourenço

— Gostaria de fotografá-la.

— A mim? Por quê? Eu sou... Quer dizer, isso é estranho.

— Estranho? Que nada, você é interessantíssima, exótica. Perfeita!

Fizeram uma sessão de fotos. O fotógrafo agradeceu e pediu o telefone da jovem, prometendo-lhe enviar as fotos tão logo as revelasse.

E sumiu!

Tempos depois, ao passar pelo museu de aberrações, a "modelo" foi atraída por um cartaz: Mostra de imagens bizarras — Fotógrafo Andréas Prurianov.

Ele não estava lá. Mas ela estava. Em meio a centenas de fotografias grotescas. Ela estava lá! Ela, entre as deformidades, os pés tortos, as caras amassadas, os crânios enormes.

Procurou por um espelho. Por que não conseguia enxergar-se tal e qual as fotos a mostravam? Por que os olhos lhe pregavam tamanha peça?

Voltou para casa e lá ficou. Recusava-se a sair e a fazer qualquer coisa senão horrorizar-se em frente ao espelho.

Mas acabou se acostumando àquela rotina de susto e horror. Já não chorava, não se alimentava e, dentro dela, a única manifestação de vida era uma vontade enorme e mórbida. De quê, ainda não sabia.

Em outubro, despertou e saiu às ruas. Matriculou-se em um curso de fotografia, comprou câmeras, montou laboratório. Estudou. E fotografou dia e noite. Durante longos cinco anos.

Formou-se com mérito, arrematou diversos prêmios. Rodou o mundo e a vida com sua câmera em punho. Ficou famosa. Ganhou nome.

Mais três anos e o reencontrou, quase por acaso, numa mostra fotográfica em Nova Iorque. Não a reconheceu quando foram apresentados. Encantou-se por ela. Não, ela não era bonita, mas fazia milagres com as mãos fotográficas e isso o deixava maluco.

Deixou que ele a perseguisse sem tréguas, que a seduzisse. Prometeu que dormiriam juntos na França.

— Quer se casar comigo? Ele perguntava, um pouco bêbado.

Casaram-se em Paris e se enfiaram em um quartinho sórdido e escuro, escolhido por ela. Ele gostou!

Às escuras ela permitiu que ele lhe rompesse o hímen, que urrasse e babasse de paixão sobre seu corpo.

Às claras ela lhe mostrou o sangue entre as pernas.

Ele tremeu de tesão.

E, assim, foi morto. Ele e seu pênis ereto.

Foi retalhado. Partido em pedaços.

E só então: fotografado.

 

 

furores
nora putti

a prima C. despedaçando no meio-fio a cabeça de louça da minha primeira boneca
os dentes de leite
a apatia da Santíssima Trindade
a cor branca
o corpo de Hitler descendo aos infernos
o vestido do primeiro baile, de veludo, me consumindo
o fogo que arde sem se ver
o silêncio de Guantánamo
um gato molhado
a letra A
o último tango em Paris
o olho amputado de Abu Ghraib
a sandália havaiana do atropelado revirando-se pela avenida
as jaulas
uma mulher morrendo por lapidação na Arábia Saudita, Paquistão ou Nigéria
a banda de música do 11° Batalhão de Infantaria de ( )
às 12h31m na Av. Paulista
o tempo: as rugas os fracassos os vícios: o tempo
o terceiro movimento da Nona de Beethoven
o responsório de Santo Antônio
as quintas-feiras
a hipotenusa
play it once, Sam, for old time's sake
a sombra da solidão no escuro
o poema As Coisas, de Borges
o signo de Escorpião
a distância entre o estampido e a parede
a palavra in-can-des-cen-te
Genaro, quando abro as pernas e deixo-o entrar

 

 

as outras
ro druhens

Fulano,

 

Revejo e te asseguro: tô no lucro! De certo, só te sei por esparsas notícias dadas por Beltrano e por Cicrana que te soube por presença no congestionamento. Deduzi que tu trocou de carro que de mulher eu já sabia. E desde sempre. 

 

Nunca dormi com a esperança, jamais acordei que não fosse com a dúvida, mas o remorso não se senta à mesa comigo. Faria tudo de novo. E outra vez. E sempre pois de mais valia foram os minutos em seus braços que minhas horas em minhas mãos. Eufemismo, sim. Não vou escrachar a minha solidão escrevendo siririca.

 

Tô puta, Fulano, tô muito puta, mas não sou puta por vocação. Por talento, sim. Foda saber que aquela mixaria que tu deixava no criado mudo era pagamento, não pela minha presença no teu durante, sim pela minha ausência no teu depois. E a merda da frase escrota: "uma bobagem pros seus alfinetes". Alfinete é o caralho. O teu caralho. Nada se parece mais com um alfinete.

 

Não esqueço a merda da história que tu contou sobre uma raposa e umas uvas. Não esqueço porra nenhuma do que tu dizia na mesa do boteco, lembro o brilho de cada perdigoto teu refletindo a filosofia barata que tu vomitava enquanto teus dedos me subiam pelas coxas e entravam pela minha boceta adentro como se fossem dono e senhor, dois pra lá, dois pra cá. "Tu deixaste que murchassem minhas flores, meu bouquet de fantasias". Lero, lero, cara. Papo furado. Papo aranha.

 

Mas tô no lucro, podes crer. E nem falo do Wanderson porque esse, coitado, já nasceu filho da puta e, como tal, nunca vai saber desta boquinha que a terra há de comer que o pai dele só tem de parecença com ele o fato de também ser filho da puta.

 

E nem falo que seja lucro eu saber dos teus segredos, das manias e das taras. Vela no cu, puta que pariu. Até aquela de sete dias que eu guardava pra acender pra minha mãe, Iansã, eparrei Oyá.

 

Tô no lucro, Fulano, porque a cada vez que me arreganhei pro teu tesão foi por amor, seu filho mal parido de uma égua, foi por amor. POR AMOR!

 

Fulana

 

 

 

 

os sete pecados capitais

 

 

Preguiça

 

Já há muito o sol clareara a manhã quando ela abriu os olhos, espreguiçou por quinze minutos, rolou na cama e decidiu que aquele dia seria o dia de fazer nada. Que a poeira dormisse sobre todos os móveis e que a louça da antevéspera esperasse na pia pelo dia seguinte.

 

 

Luxúria

 

Deitada sobre o desencontro sentia ainda o cheiro do vinho azedo nos lençóis, os farelos que lhe beliscavam a carne e as marcas de todos os humores que deixavam em sua boca o gosto travado da última noite. Os beijos que tatuaram em seu corpo ásperas cicatrizes e as marcas das mordidas que ficariam para sempre em sua alma.

 

 

Ira

 

Um calor vermelho lhe subia das entranhas e a vontade era arreganhar as janelas e fazer o mundo todo ouvir aquele sentimento que ontem fora o eco de todos os uivos e hoje, pela manhã, despertava apenas a possibilidade do silêncio. Que ele se perdesse em outros abraços, que morresse em outros orgasmos. Que se fodesse pelas esquinas de outros desencontros.

 

 

Inveja

 

Foi a luz do sol que mostrou a ele suas carnes flácidas, a raiz branca de seus cabelos, os rictos que a maquiagem desfeita revelava. E ele vira claro o que a noite tornara opaco. Quisera ser a mulher da capa da revista com as carnes duras e o coração protegido por músculos comprados em academias e consultórios.

 

 

Orgulho

 

E ele saberia o que perdera quando se perdesse em outros abraços. Diria não, se ele voltasse e lhe pedisse um sim. Jamais o telefone, a campanhia da porta, o encontro de fim de noite.

 

 

Avareza

 

Trancafiar os sentimentos no fundo da alma. Economizar sorrisos. Capitalizar afagos. Atar no meio das pernas qualquer possibilidade de dádiva. Fechar as mãos a todas as posses que não a de si mesma. Dona de seus quereres os guardaria no cofre da alma atemporal e a ninguém seria permitida a chave. Ou o segredo.

 

 

Gula

 

Enlouquecida e nua devorou a dor.

 

 

 

 

cerejas e framboesas

 

Ela gostava de balas de goma, cor-de-rosa. Quase vermelhas, entre a cereja e a framboesa, como eram os laços das tranças das meninas do outro lado da vida.

 

Ela gostava de bonecas vestidas de noiva, brancas. Quase azuis, entre as nuvens e o céu, como eram os sonhos das meninas do outro lado da vida.

 

Ela gostava de contar estrelas, não tinha medo das verrugas nem dos cometas que anunciavam o fim do mundo.

 

Ela gostava de chapinhar nas poças, não tinha medo dos resfriados nem das febres que anunciavam a morte. Ela não tinha medo morte, ela só gostava da vida.

 

E os barquinhos de jornal amanhecido noutras portas, e os desenhos na calçada feitos com pedaços de carvão.

 

E a comida dividida, noves fora, nada. E a dor multiplicada. E o tudo somado ao nada, do nada subtraía a vida. Mas, sonhava.

 

E sonhava nas esquinas, nos muros e nos becos enquanto as mãos enormes dos machos lhe borravam os sonhos e, grudentas, manchavam sua alma pequenina como se balas de goma fossem. Quase vermelhas como seus olhos acordados no tempo roubado às brincadeiras, nas brincadeiras de gente grande do outro lado da vida.

 

 

o lamentável fim da família de dr. conrado, o benemérito
roberta silva

Moro numa daquelas casas que rodeiam o belo Central Park, nome atual do Parque da Colina, área nobre de nossa pequena e antiquada cidade. Ao seu redor, a nata de nossa sociedade. Famílias invejavelmente bem sucedidas e felizes que passam os domingos fazendo piqueniques no verde gramado do parque, como se este fosse, e é, uma extensão de seus jardins. Nossa cidade é próspera, apesar da pequenez, e pacata, apesar da rotina e do grande distanciamento social entre as classes. Somos pacíficos e católicos e isto nos basta. Durante muitos anos, somente dois acontecimentos causaram escândalo entre o seleto grupo dos moradores do parque. O primeiro foi minha mudança para cá. Eu, Maria da Piedade, ou Piê, como era chamada no posto de saúde em que trabalhava como atendente de farmácia até aposentar-me, filha de mãe solteira, herdei esta casa de meu pai, um ilustre personagem político da cidade. Seu desejo último foi redimir-se de sua omissão deixando para mim todos os bens que possuía. Nos primeiros anos fui apontada por meus vizinhos na rua e no parque e, primeiro por causa de uma exclusão descarada, depois, por convicção, passei a aproveitar os domingos de minha janela a observar o balé social, no qual bailam e representam nossa tosca comédia, as pessoas respeitáveis de nossa sociedade. Deixaram de falar de mim após a morte de Dr. Conrado, o benemérito. Morte lamentável, mas não tanto quanto o lamentável fim de sua família, que aconteceu após a trágica morte.

Dr. Conrado era um advogado conhecido. Bonito, jovem, culto, bem sucedido. Era casado com uma mulher bela, jovem, culta, extremamente tímida, excelente dona de casa e pai de três adoráveis, educadíssimas e também belas crianças, o primogênito e duas meninas. Eram invejados pelos vizinhos, inveja branca dizia-se, daquela que não se deseja o mal. Exemplo vivo de uma família perfeita. Durante as tardes de domingo, no parque, estavam sempre rodeados de amigos. Seus quitutes eram fartos e os mais saborosos, a conversa deles era a mais agradável e suas crianças nunca davam um pingo de trabalho. Quando as mães tinham de ralhar com seus filhos por terem cutucado os peixes do lago com espetos ou darem rasteiras nas bengalas dos velhinhos, quando uma esposa descontente cobrava do marido um pouco mais de zelo ou algum marido, cansado das lamúrias da mulher, desejava secretamente que sua dona engolisse a língua e se calasse numa crise convulsiva de auto-sufocamento recorriam à imagem da família de Dr. Conrado como exemplo a ser seguido, meta a ser atingida. Eram assunto também, nas rodas, as diversas obras de caridade que patrocinavam e as gordas doações nos jantares beneficentes feitos por ele e sua família.

Como num conto de fadas invertido, essa era uma história feliz que tivera um triste final. A princípio notaram que o jardim de Sra. Conrado não estava mais impecável. Ervas daninhas proliferavam a olhos vistos e depois estas substituíram definitivamente os lugares de destaque das folhagens nobres. O pior era que isso não acontecera por falta de zelo, tristeza recolhida ou luto. Parecia que a jovem viúva estava dando os primeiros sinais de enlouquecimento. Fora flagrada diversas vezes cultivando os capins, carrapichos e ervas de passarinho no que agora não era mais uma pálida sombra do lindo jardim de antes. Pararam de freqüentar o parque aos domingos. O filho mais velho, depois que adolescera perdeu-se completamente. Fazia teatro de rua, pintava os cabelos de cores vivas e os olhos e as unhas de preto. Viam-no circular com um colega um tanto afeminado diversas vezes pelo bairro em conversinhas purpurinadas, trôpegas e cheias de risinhos. A filha do meio vestia-se à moda dos novos hippies e vivia acompanhada de pessoas que não condiziam com sua classe social. A caçula ainda trazia muito dos modos de antes da morte trágica de seu pai, mas temiam cedo ou tarde contaminar-se também com o caos que se instalara no seio daquele lar. No seu andar, apesar de ainda elegantemente vestida, notava-se um leve desleixo nos movimentos, desleixo que não se permitiria antes, visto que era, dos três, a mais  disciplinada. Pela ausência demorada aos piquiniques de domingo descartaram a possibilidade do luto familiar, pois saiam todos, nesses dias, animados em seus novos trajes, rumo a um programa desconhecido além das fronteiras do rico boulevard.

Pela janela presenciei a chegada de um caminhão de mudança que parou à porta da casa da família de Dr. Conrado. O grand-finale deste escândalo será quando descobrirem que Sra. Conrado está de mudança. Com a família mudará para outro lado da cidade para amasiar-se com um livreiro comunista e pé-rapado com quem ela havia tido um pequeno affair na juventude. Superará, por certo, em pontos-de-audiência a notícia da morte do estimado doutor após ingerir uma sopa de mandioca brava, preparada para ele pela zelosa esposa, naquela tranqüila noite de inverno.

Conheci Sra. Conrado tempos antes de me mudar para cá, durante os anos em que ainda trabalhava na farmácia de um posto de saúde afastado. Ela veio pegar gratuitamente os medicamentos receitados pelo doutor do posto em nossa farmácia. Apresentou-se na portinhola com a receita, minha repulsa foi imediata, pois se via logo que era uma mulher que não precisava dos medicamentos gratuitos que distribuíamos para as pessoas menos afortunadas que eram tratadas ali. Era uma lista enorme, antiinflamatórios, antibióticos e ataduras. Ofereceu-se muito constrangida para pagá-los e senti-me um tanto arrependida pelo julgamento precipitado. Depois daquele dia ela voltou várias vezes. Comentava-se a boca pequena entre os funcionários a natureza de suas consultas secretas. Ela entrava, às vezes só, outras acompanhando um dos filhos e depois passava na farmácia. Nunca dizia nada e parecia resignar-se ou não perceber os olhares de reprovação dos outros pacientes e funcionários dali.

Num dia igual a muitos outros em que havia ido ao posto em busca de cuidados e remédios, ignorando completamente a fila que formara atrás de si, começou a falar. Sua voz era baixa e suas palavras polidas e bem escolhidas. Contou-me como alguém contaria a um padre em extrema-unção sobre como havia conhecido o marido. Após um namorico problemático com um colega de escola de nível social muito inferior ao dela encontrou-o, recém formado, belo, companheiro e disposto a terminar com suas angústias para sempre. Foi o casamento dos sonhos. Pouco depois da lua-de-mel o marido dera os primeiros sinais que nunca esqueceria que um dia ela havia amado outro homem. Desconfiava de seu amor. Vasculhava suas coisas, a seguia pelas ruas. Primeiro veio as discussões à meia voz para não serem ouvidos pelos empregados. Depois o primeiro tapa, o primeiro soco. A primeira gravidez frustou-se em um aborto devido a um chute que levou na barriga. Tirando a vez em que ele lhe socou a primeira vez, as outras nunca lhe deixaram hematomas que não pudessem ser omitidos por uma blusa, um echarpe, um xale. O médico da família ameaçou denunciá-lo, depois que se esgotaram as desculpas para os ferimentos e infecções, caso ela não o fizesse pessoalmente. Ela não o procurou mais e nas reuniões em que se encontravam convencia-o que não aconteciam mais aquelas coisas e que estavam todos muito bem e felizes. Além do ciúme, sua excessiva mania de limpeza e perfeccionismo faziam-no perder a paciência, a menor sombra de poeira ou objeto deixado fora do lugar. Isto era mais fácil de controlar antes da chegada das crianças, mas depois delas sua vida era uma eterna inspeção atrás de coisas que pudessem desagradá-lo. Lógico que os filhos não podiam acompanhar os cuidados da mãe. Vez ou outra deixavam cair um talher, manchar um vestido ou soltavam uma risada inoportuna e por isso sofriam com os corretivos do zeloso pai. Ouvi calada e depois a chamei para dentro do meu cubículo. Atendi as pessoas que esperavam na fila rapidamente e tranquei a portinhola. Conversamos durante algum tempo. Ela dizia que não havia como sair de lá. Todos iriam ficar contra ela, era impossível imaginar que Dr. Conrado, o benemérito, fosse capaz daquelas coisas. Ele mesmo a advertira que a internaria num manicômio caso tentasse levantar algum falso sobre sua honra. Ficamos amigas, eu a ouvia, quase todas as semanas, sobre a violência que aquele homem cometia impunemente contra a família acuada e indefesa. Um dia decidi por tentar ajuda-la. O filho tinha sido submetido, pela terceira vez, a uma sutura de pontos de um ferimento. O pai tinha por ele uma fúria ainda mais contundente. Dizia que daria àquele ser patético uma postura máscula e viril nem que para isso tivesse que quebrá-lo em pancadas. Eu disse à minha amiga que tinha como dar a ela um veneno que ela poderia misturar a sua comida e ele morreria rapidamente. Sugeri que ela fizesse uma sopa de mandioca, pois era sabido que esse tipo de alimento vez ou outra causava uma desgraça.

O velório foi preparado com muita pompa pela família do doutor. Queriam aproveitar a visita relâmpago do governador pela cidade e pediram ao diretor do hospital, que era o mesmo que acompanhava a família do venerável defunto, para que fossem dispensadas as formalidades e que este assinasse o atestado de óbito o mais rápido possível. Foi mais fácil que imaginavam e, na época, aquele velório foi o evento social mais elogiado nas colunas sociais.

 

 

quinze
romina conti

A fúria silenciosa do vento que bate na janela e prossegue o seu caminho de errância até levantar as pontas da minha camisola. O obstinado silêncio que eletrocuta o dia-a-dia. Eu vou quebrar ele. Eu vou quebrar ela. E nos encontramos nas curvas da estação do metrô. Todos quebrados e nos quebrando mais ainda. Eu não sei mais andar. Você quer fazer sexo com uma paralítica. Eu vou te quebrar inteirinha. Vou arrancar seus testículos. Soprarei seu horizonte para longe de mim. Empurrarei você abismo acima. Puxarei pelos pêlos do púbis. Pelos seus cabelos. Quebrarei uma a uma as suas falangetas. Depois te darei um beijo. Depois vamos para as férias. Eu não entendo você. Que não é meu. Bebo, babo, bebo. Sou uma mulher que bebe em casa, mais que socialmente e menos que uma alcoólatra. Sou uma prostituta de luxo. Ganho porrada de graça. E não sou masoquista. Quero te ferir um pouco. Tirar seus contornos de mim. Fazer um outro princípio final. Por que sou assim? Por que aceito levar estas chicotadas com palavras de choque? Caio dentro de mim tão em mim que de mim não saio. Estou paralisada agora, olhando a tevê. Nada me diz nada. A não ser aquela propaganda que vendia uma família cheia de filhos e todos saudáveis. Nós temos um e sou eu quem sustenta tudo. Eu que dou duro na rua. Eu que trago o leite das crianças. Com quantos abismos se faz uma canoa pra navegar o nosso caos? Eu não entendo você. Você me entende com esse punhal na mão e com esse soco inglês e com essa bandeira do Atlético e com este puçá e espinhos e baiacus boiando feito eu, toda inchada. Cheia de hematomas pelo corpo onde corre uma voltagem que te repele. Mas eu não sei mais viver. Não sei o que é viver. Parece que todo o meu prazer foi apagado feito HD de computador. Há muito tempo não tenho o antivírus contra você. Me dá um tempo antes que eu te mate agora mesmo e venha tirar de mim um pouco da minha dignidade. Vergonha na cara é o que eu não tenho. Sempre volto pra você. Sempre me pede mais uma chance. Sempre digo que sim. Sempre bebo mais um pouco e mais e mais. Depois vem isso. Fazemos sexo e tudo volta a ser como era nos nossos melhores dias. Fica assim uma semana e você pega o soco inglês e me ameaça com uma pistola taurus. E ninguém sabe que você me bate que você arranca o meu couro que você me trata assim. Você é cordial com todo mundo. Comigo, áspero, cheio de cacetetes nas mãos e aquela população inteira de seres violentos que você carrega. Não adianta eu tentar. Já tentei de tudo. Já procurei pai de santo, já fiz mandinga, já tirei você de outras e tem isso. Você tem outras e as outras têm você. Mas você só bate em mim. Por que sou eu quem te sustenta? Por que você é incapaz de realizar uma boa ação pra mim? No final disso tudo nunca tem final e a gente vai levando feito uma bola de neve. Crescendo e levando tudo. Eu preciso de um tempo que seja suficientemente grande pra eu me esquecer que você existe, pois você se esqueceu da sua antiga elegância e de como era amável e bacana. Você só joga o corpo em mim pra me dar porrada ou socar seu sexo dentro de mim. Depois me fura com o furador de gelo. Eu passei a máquina zero no cabelo. Eu vou mudar. A beleza é o que a mulher tem de mais importante pra você. E  eu já estou velha e cansada e perdendo tudo, as esperanças indo bueiro abaixo. Qual arco-íris é o verdadeiro? O do chão posso tocar: estou na sarjeta. Você é sujo e cheira a perfume barato. Hoje estou com pena de você. Não sei como pude agüentar tanto tempo. Você me deu tapas na cara. Me quicou na parede e foi tomar uísque barato, fumando seu cigarro barato. Botou suas botinas e me deu um pontapé. E aquele filho que perdi por você ter me jogado de brincadeira, depois de um porre, numa piscina sem água? Flores e mais flores. Quero pétalas de rosa. Quero orquídeas e tudo isso pode ser ao mesmo tempo o que quero e o que não quero, porque não adianta vir mais com meu amor e com meu benzinho e com minha querida.

Eu vou te foder, menina. Vou tirar o seu filho de você. Num tenho nada em meu nome. Você num vai ficar com nada. Só vai ficar com as marcas no corpo dessa última surra que vou te dar. Você acha que é poderosa, mas num tem poder nenhum. Você é melancólica triste chata burra. Nem sabe quanto é três vezes cinco.

Quinze vezes ela atirou nele com duas pistolas diferentes. Quinze chutes deu no saco dele. Quinze estocadas com o quebra-gelo. Quinze marteladas na cabeça. Depois rezou quinze ave-marias, quinze pai-nossos e dormiu ao lado do corpo, esperando a polícia chegar.

 

 

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