edição 30 | setembro de 2008
temas:  carne & osso | esquina

 

angu de caroço
adelaide do julinho

comi a sua carne

: vou ter de roer

o moço

 

2 contos
assionara souza

 

Agnes

 

Agnes é mulher.

Ovula. Dá esporro. Sofre. Esquece. E de novo. E dá esporro. Ovula. Chora e sorri misturadamente. Considera algumas palavras dificílimas de serem pronunciadas. Na hora do gozo, escandaliza o nome de Deus repetidas vezes. Inventa meios.

Ontem, às nove horas da noite. Voltou para casa com um buraco enorme no peito. O coração é um músculo muito desenhado por crianças e adolescentes. Agnes tem exatamente trinta e três anos e sente como uma cachorra perdida. Por isso, ontem, às nove horas da noite. Os pés doíam. E a casa era longe. O caminho deserto. Voltar pra casa é sempre longe. Mulheres compram roupas e calçados. As lojas gostam de mulheres. Os homens menos. Se as mulheres sentem isso: mais roupa; mais calçados. O que quer que sirva ao corpo. Se o amor não servir. Agnes não escolhe. Pega e leva pra casa. Homens e roupas. Os pés gritam.

Segundo pesquisa, Agnes distingue-se para melhor. Distingue-se para melhor, dizia a matéria: de quase 70% das mulheres. A maioria das mulheres não consegue sentir. Na revista, ao virar da página. Lá estava. A maioria das mulheres. Ler esse texto na sala de espera do dentista faz algumas mulheres descolar um sorriso nos lábios. Aproximadamente 30% das mulheres sorriem quando lêem. Outras, 40%, não conhecem alguns sentidos. E mais 30% suspeitam de que as que sentem não sabem muito o que sentem.

Agnes tem estado mal como uma cachorra perdida. As cachorras fogem de buzinadas de carro. Pendem o corpo. Um correr indeciso. E farejam sem critério. Mal põem na boca, percebem na língua a frustração. Tarde demais. E lambuzam-se com ódio. Recolhem o corpo e prosseguem. Vadia esperança canina. Agnes é uma estatística. Antes que mandem, baba-se toda à espera.

Agnes acredita que há um número finito de variações de desgraças. Assim como as letras do alfabeto. Combinadas, os padrões são infinitos. Algumas categorias são invariáveis. O triângulo. Figura que se distingue. O triângulo causa um círculo vicioso. Em alguns casos, faz o sol nascer quadrado. Último vértice, depois do Verbo e do Espírito: a Carne. O homem atinge o centro do triângulo com sua lança pontiaguda. Humano e Divino. E golpeia em nome de Deus repetidas vezes.

Aos dezessete anos, a presença de Deus provocava em Agnes um forte regozijo. Então compreendeu as coisas da carne. Deus era o amante secreto e confidente de inquietações. Exibir, após orar, o corpo nu marcado. Quarto encerrado. Velas acesas. Nudez e fé. Confessar ao pai. Confessar sobre os pecados da mãe. Igualmente canina. Deixou que mão alheia roçasse o entrepernas. Na noite em que foi entregue à paixão. Atingir fundo a umidade. Diante do pai e de Agnes, negar tudo. Era outra. Era outra mulher que Agnes vira. Uma outra mulher. Agnes compreendia o amor em sangue e febre. Outra mulher. Por isso sangrar pela mãe. Dor e prazer. Por isso também ser uma outra. Pacto. O pai lhes suspeitava. Sendo, em ordem de vértice, segunda amante e confidente de Agnes. A coisa nem nomeada. A coisa sentida. Em nome de Deus.

Na sexta-feira, a cachorra perdida lançou seu olhar para a vida. Esperou, o osso veio suculento. Arfando uma trama de encontro em beco certo. Rabo entre as pernas. Língua estirada.  Vida da boca de outro para a boca dela. No escuro: o molhado. Sexta-feira e para sempre. Cara que olha cara e quer às escâncaras. Olho. Pele. Entrega-se a presa às pressas. Dá-se desdobradamente. Peso e movimento. Onde o corpo suportasse. Falentrasse. Singrasse. Sangrasse. O bom cheiro mal do corpo. Uivo e desejo cão. Até que a morte.

Agora um pedaço podre de desgraça. Na manhã do Terceiro Dia. Lavar-se mil vezes. Imundície do mundo nos ossos. Limpar-se mil vezes. Imundície do mundo no espírito. Voltar ao sábado. Um buraco no meio do peito. Ao domingo: vida morte ressurreição.

Chegar à casa do pai carregando na pele a memória da noite. Os médicos de branco espalhados pela casa. Os que curam as doenças do corpo. E também o padre para bem encaminhar o espírito. Vestido de negro. Ignóbil. Vontade de coçar as partes na frente de todos. Grunhindo. "Eu sei de tantas verdades, meu pai!". Chamaram-na. "A mãe tem sede, Agnes". Preparar a água. Deixar escorrer pela mão. Água benzida do que viveu o corpo na calada noite. Despejar no copo. A língua da mãe esperava. Para a mesma boca entregar seu corpo. Agora nesta agreste hora da morte.

Mais tarde demais. Voltar pra casa com um buraco no peito. O dia inteiro com a mãe. O amor nunca. E a morte na madrugada. Pés doídos do caminho. Peso do passo em falso. Para quem o seu quente humor? Segundo as estatísticas, 30% das mulheres são cadelas vadias. Corpo silencioso golpeado. Brutalidade afiada em centro perfeito. Ímpia solidão. A mãe morrendo na madrugada. Buraco no peito. Atravessar a noite. Portas e janelas abertas. Nenhuma cortina. A noite da salvação. O nome de Deus habitava sua pele e sentidos. A cova aberta onde o corpo morto. Rezem, senhores. Ela espalhou vinho por toda a casa dentro da madrugada. Ela bebeu da mesma água sagrada. Corpo dentro da terra. Enterrando-se dentro da terra. Rezem, em nome de Deus. Em nome do pai. Em nome do filho. Em nome de todas as cadelas parideiras. Rezem todos.

Eco infernal.

De volta para o ventre de Agnes. Renascer. Agnes prenhe da serpente a lhe sibilar palavras. O ser e o sim. No ventre da mãe flutuar. Líquido florir. Inteira ágil e calma. Pernas e braços. Carne e osso. Frutos flores raiz. Ao último ancestral. Ciclo eterno. Depois. Longe dali.         

Agnes.

 

 

 

duchamp

 

Se me pedisse um chá. Então eu pensei que talvez um chá. Aqui em casa. Mesmo em qualquer lugar. Andaríamos umas cinco quadras. Nenhum porteiro. Uma subida pra um chá. A conversa enquanto o elevador. Assuntos móbiles. Encher o espaço. Dessa substância sólida de palavras. Não conseguiria não falar. Só olhar. Principalmente porque eu estaria pensando: LHOOQ. E quando a porta pesada se abrisse, um passo e outro. Bem cuidadosamente. Jamais ser um ator. Perder o controle. LHOOQ! Apenas um pouco de chá. E mais um. É muito difícil. Mesmo que seja uma reprise. E mais uma reprise. É muito difícil. E se virar subitamente agora: Um chá? Quem diria! Nós dois nesse estado. Esse estado do gasoso para o líquido. Atrás de todas essas palavras. Nem precisa acender a luz. Nem precisa apagar a luz. É isso que eu posso oferecer. Só isso para essa coisa. Um chá? Nenhum desejo como seta no alvo. Poderia bem ser qualquer um. Qualquer um que apontasse na próxima esquina. O dia adiado. Ao diabo com o dia! Um mal-entendido qualquer. E lá estaríamos nós. Não tenho sequer um gato. Uma coisa que se mova em silêncio. E por aqui há muitas arestas. As decisões tomadas no exato momento. É só enxergar. Mil vezes caminhar por essas ruas. Nenhum pensamento. Para ver acontecer. Atravessa o olhar com indiferença. E decide. Nada a perder. Sede. Frases curtas. Frases torpedos. O bom movimento. É comovente. Além disso: LHOOQ! Já é meio caminho andado. Pra acertar. Então, pedir. Melhor: combinar sem palavras. As palavras compostos químicos. Um dia pode ser uma partitura caótica. Saber ler palavras moventes. Alguns trechos de partitura. O dia embaralhado. Encontro sem palavras. Casualmente. O encontro há muito desejado. O olhar seletivo. Como quem segura uma arma, o corpo segura o olhar. Aprender a atirar. Como quem não caça. Distraidamente. Como quem vê e pensa: LHOOQ! E o desejo já é ação. Dobrar a esquina do dia. Um chá? Há sempre o subterfúgio. Não falar sobre nada que exista. Não falar sobre coisas. Vontade de falar sem palavras. Como poderia? Jogar o jogo das compensações.

 

Por exemplo:

1) Precisão

 

Tudo acontecendo. Misturar palavras. Cortar. Definir o futuro. Olhar simplesmente. Aguardar. A coisa acesa. Uma frase inteira pronta. Quantas frases disse até aqui? “Você está cego?”, disse. As palavras. Todas, uma única. Como se desaprender a falar. Como se começando a aprender. Tocar a massa de palavras com a mão. Mexer nas letras com a ponta dos dedos. Formar um nome ou expressão. Como dobrar uma esquina. Interromper a frase: LHOOQ! Trair e enganar sem ferir. Dizer: "Você quer chá?". "Um chá?". Onde não há. E pensar: LHOOQ!

 

Por exemplo:

2) "Vamos sair daqui e tomar um chá?".

 

Caminhar. Usar o corpo sem falar. Sem palavras. Um encontro numa dessas esquinas. Um encontro como uma despedida. Como quem atravessasse a cidade inteira carregando uma tulipa. Uma tulipa? Uma tulipa. Uma tulipa que não gostasse de você. Uma tulipa que pensasse: "Por que esse idiota está me carregando?". Um idiota que pensasse: "Elle a chaud au cul". E mais o incômodo de estar carregando a tulipa. O incômodo de encontrar alguém como quem se despede. E as palavras agora são tulipas. Segurar as palavras como tulipas e andar com elas até o final. Delicadas. O vespeiro dentro da cabeça. Com seus ferrões. Qualquer uma palavra pode: Zapt! Desapontar o seu ferrão. "Sede!", pronunciou-se. A gente podia ir tomar um chá. Eu não moro muito longe daqui. Na aproxima esquina. "Você quer um chá?". O dia perdido como um líquido. Como o líquido dentro do ouvido desandando. A caixa de Dionísio. Andar pela cidade. Um jeito de acalentar os pensamentos. Não querendo de maneira alguma encontrar quem reconheça nome e figura. E eis que: LHOOQ! A idéia na mão. Usar. Usar agora. Manhã. Noite. Tudo bem. Então aquele era um daqueles dias. Os imprevistos. Como se tivesse perdido a guerra. Ainda com muita munição. É agora. Na próxima esquina.

  

o abraço 
cida pedrosa

O abraço era tão magro que a menina estremecia, podia sentir cada espaço do corpo em seu desenho original, foi sua primeira aula de anatomia. Nunca esqueceu a possibilidade de dor por baixo das roupas ou como o molde é móvel dentro da pele. O abraço era tão magro que naquela noite a menina não percebeu quando o corpo se desfez em suas mãos e a alma resolveu voar pela janela. 

 

 

 

 

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