edição 30
| setembro de
2008
parte II: do diamante e do grafite Por
três meses, segui a pista de um assassino que, sistematicamente, no sétimo
dia dos últimos onze meses seqüestrava, molestava e degolava meninos entre
oito e dez anos no subúrbio da cidade. Os corpos apareciam no dia
seguinte, sempre nos terrenos baldios, onde as crianças gostavam de
brincar à tarde. Tomei conhecimento do crime, quando descobri e matei o
assassino de uma jovem freira. O sujeito pintava seu apartamento quando o
encontrei e tinha jornais espalhados pelo chão. Ao cair morto, seu dedo
médio apontou a foto do nono menino encontrado degolado. Pareceu-me um
sinal. Eu matava quando tinha certeza da culpa, às vezes ficava semanas ou
meses sem comer, o que me levava a um estado mental que considerava uma
conexão com o divino, hoje duvido. Persegui o rastro do psicopata pelos
guetos. As poucas pistas deixadas por ele só eram percebidas por meus
sentidos vampiros, pela intuição de vidas inteiras passadas no submundo e
pela demência da fome. A polícia estava perdida e a população assustada.
Finalmente, os vestígios apontaram um único alvo. Era o quinto dia do mês
e a fome me torturava. Fiquei tão excitada em descobrir o assassino, que
me assustei. Pela primeira vez, questionei minha sanidade e temi estar,
inconscientemente, forjando provas contra o homem. Tentei esperar mais um
dia. Talvez conseguisse depois de um dia de sono, uma noite de meditação.
Durante todo o dia, tive pesadelos. Acordei, assim que o sol se pôs,
desorientada. Num impulso, segui até a rua onde morava o assassino,
deixei-o desmaiado com um golpe e levei-o para minha casa. A fome me
causava leves alucinações e uma certa fraqueza emocional, resolvi
amarrá-lo e deitar-me um pouco antes de matá-lo. Quando acordou do
desmaio, despertou-me ao se debater. Ao me ver, fez menção de gritar e num
piscar de olhos eu estava em pé, a seu lado, caninos em evidência e com as
mãos estrangulando-o, mais um pouco e o seu pescoço partiria entre meus
dedos. Olhou-me, não como quem tem medo ou implora vida, mas como quem
compreende sua desvantagem e prudentemente não reage. Soltei-o. A
adrenalina do ataque fez-me salivar. Tive que me concentrar para não
atacá-lo naquele momento. Voltei ao divã. Manteve-se quieto. Depois de um
tempo começou a examinar o ambiente. Rapidamente, percebeu que não era uma
vítima ao acaso. Tinha recortes de jornais com manchetes falando do
"Assassino do sétimo dia" por todo escritório, e outros, falando de crimes
não solucionados também. Foi ele quem quebrou o
silêncio: —
O que você quer? —
Fazer justiça. —
Você é uma vampira. —
E daí? —
Vai me matar, sugar meu sangue? —
Sim. —
Para fazer justiça? —
Isso. —
Por que eu? —
Caço os animais que a polícia não consegue encontrar.
—
Eles sabem? —
A polícia? Não. Mas existe um boato sobre um justiceiro, não se empenham
muito em me prender. —
Você não parece bem. Calei-me.
—
Está doente? Insistiu. —
Estou com fome. —
Há quanto tempo não se alimenta? —
Três meses. —
Por quê? —
Estava te caçando. —
Só se alimenta de sangue de "animais"? —
Sim. —
Então você é igual a mim. —
Vá se ferrar!!! —
Como você, só mato quando tenho fome. —
Você é um animal. —
Você também. Pulei
do divã no pescoço dele. Segurei sua língua com a mão, enquanto sugava seu
sangue. Durante dias, mantive seu corpo em minha casa. Ele morreu pouco
antes de eu lhe sugar todo o sangue, sufocado com minha mão dentro de sua
garganta. Eu o odiava. Seus olhos me seguiam por todo escritório. Depois
de um tempo seu corpo em decomposição impedia-o de me seguir com o olhar.
Foi a primeira vítima que eu levei para minha casa, talvez por isso eu o
odiasse. Ele falou comigo e eu o odiava. Senti falta de ouvi-lo. Não. De
falar-lhe. Queria dizer-lhe que eu não era um animal, que eu lutava contra
minha fome, e só a saciava com pessoas, que, como ele, era cruel e nociva,
e, que, de alguma forma eu beneficiava o coletivo, o coletivo que nunca me
acolheu, mesmo assim eu protegia aquela cidade e seus cidadãos de bem. Ele
fez de propósito, fez com que eu o matasse antes de me defender, morreu
achando que eu era igual a ele. Não, isso não fazia sentido. Queria ter me
controlado e mostrado a ele que eu não era um animal. Eu não era. Eu não
era. Eu sou. Deixei seu corpo degolado em um terreno baldio. Eu sou igual
a ele, não posso matar minha espécie. O que fazer? Tenho fome. Deus
abandonou-me. Eu tentei lutar contra a fome, ele devia ter tentado também.
Talvez. Somos raças diferentes, dentro da mesma espécie. Cada um tem uma
fome. Benditos os que vivem em paz com sua fome! Não há fome sagrada. A
fome é assassina. Preciso alimentar-me do sangue dos que sentem menos
fome. Do homem de bem. Seu sangue é puro. Ou quase. Talvez eu me cure.
Tomei essa decisão quando voltava para casa. Tinha que descobrir uma forma
de encontrar homens de bem. Antes iria descansar um
pouco.
carne humana No
primeiro encontro, de pernas cruzadas no divã vermelho, uma alça caída no
ombro, um sorriso minguante, ela pensou em gente crua, mal-passada, ao
ponto ou tostada. Respirou fundo e argumentou o porquê de estar lá. Tinha
um problema, apesar de ser bem-apresentável, bem-sucedida, bem-amada,
bem-mulher, bem-centrada, bem-tudo — inclusive, cansava-se de ser tão bem
assim — era bem-faminta também. Para entender melhor os homens, assumiu
que se informava compulsivamente sobre tudo do reino animal, desde os
programas televisivos às teorias de Darwin, seu livro de cabeceira. Sabe o
que é? Há pedaços de carne em meus dentes. Carne humana. Mas eu queria
parar de devorar pessoas, confidenciou-lhe. Só os animais racionais matam
por prazer, os irracionais devoram a presa para saciar a fome, completou.
E ser humana a deixava faminta! Na próxima vez em que se viram, chegou
enfiada num vestido escarlate que combinava com o estofado rubro. Evitou
durante todo o tempo encará-lo, mas acabou por lhe revelar que havia novas
lascas de carne digerindo em sua barriga. Humana, claro. Só comi uma
criancinha, desculpou-se. A última, prometeu, tensa, e relatou a ele sobre
o hábito das fêmeas de algumas espécies que devoram os próprios filhotes
quando são acuadas ou por pura necessidade de sobrevivência. Ser mãe
despertava sua total voracidade. No encontro seguinte, estava atrasada.
Mudou o penteado e o perfume, a roupa toda negra que agora combinava com
seu estado de espírito. Estirada no divã, fumou muito. Contou, aos
prantos, e com sangue no canto da boca, que havia acabado de comer a
empregada. Não resisto aos meus ímpetos canibalescos. Preciso de ajuda,
suplicou-lhe. Não quero devorar o meu marido, revelou em desespero. Tento
resistir... E finalizou, divagando sobre o estado de hibernação de algumas
feras, após se saciarem, e no quanto o ócio despertava sua fúria gástrica.
Na quarta vez, entrou dinossáurica, com quilos de maquiagem ocultando as
olheiras profundas. Tremulando. Cabelos emaranhados. Cigarros contínuos.
Vestido amarrotado. Foi logo declarando que estava se segurando para não
comer o frentista, o jornaleiro ou qualquer outro que porventura se
prostrasse em seu trajeto. Sabia que um bicho enjaulado vai perdendo o
instinto da caça? Perguntou a ele. E o abraçou. Obrigada por me ajudar,
sim? Não como mais pessoas há dias. Ando até lendo sobre os vegetarianos e
provando pratos macrobióticos. Antes de partir, ainda repetiu que só por
hoje não colocaria um pedaço sequer de gente na boca, mesmo que a culpa
instigasse sua gula. Na quinta sessão, entrou calmamente no consultório
com uma expressão de alívio. Estendeu-lhe um singelo vasinho envolto num
laço de fita, contendo uma mudinha verde-pálida. É uma planta-carnívora,
doutor, explicou-lhe. Elas capturam os animais através dos enzimas
digestivos. Sorriu com ar feliz, afirmando que se sentia praticamente
curada. Em seguida, despediu-se, comentando como a vida era estranha e o
quanto se sentia grata. E gratidão lhe dava uma fome dantesca! Num só
golpe, com unhas e dentes afiados, avançou sobre o analista e o devorou de
uma só vez. Carnes, peles, tripas e ossos. Na saída, sorriu para a
secretária. Sobremesas engordam.
2 poemas desejo Um
corpo se divide, carne
e osso, entre
os dentes de um cachorro. esquina A
calçada quente beija o pé da moça que fica ali
parada. Poesia.
4 poemas noturno eu adepta
dos venenos (lentos-letais) dos
'poemácidos' alucinógenos eu
das carnes cruas das
palavras acres das
idéias kamikazes eu
e meu harakiri de
araque eu
talvezquemsabe dust
in the wind cheirando
a pó eau
de álcool & tabaco eu
(aquela) de
nós cegos do
(só meu) desassossego da
sua (evi[l]dente) seqüela eu dos
vôos solos na
boléia brindando
a boemia em
co[r]pos de geléia lâmina é
preciso, jack perícia para
o corte certo precisão
cirúrgica conhecimento
de causa anatomia
do efeito cortar
o âmago afastar
o ego extirpar
nervos :
da pele do apelo ao
útero do tédio estripar órgãos
do medo rasgar
o nó — górdio — da
garganta mutilar
a face do ódio sangrar seus
sórdidos disfarces é
preciso, dear
jack conter
impulso a tempo enquanto
abertos todos
os segredos [vá
por partes dispondo
em postas o
adverso] * eu
passo e
não disfarço não
nego abraço beijo fácil não
me faço de
difícil (nem
de fóssil) mostro os dentes só quando
estou contente você
não: faz
alarde late morde come
a carne enterra
o osso do
almoço para
roer mais
tarde: egoística_ mente direto
e reto sê
inteiro —
íntegro — como
quando ladrilhos testemunham
teu íntimo sê
genuíno tanto
em público como
quando ficas recluso (e
defecas —
fidedigno — no
esgotomundo) ante seu
ego ecos
outros ascos : sê
exato (como
quando entre
paredes te
rendes ao
mais lídimo ato)
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