edição 30 | setembro de 2008
temas:  carne & osso | esquina

 

parte II: do diamante e do grafite

roberta silva

Por três meses, segui a pista de um assassino que, sistematicamente, no sétimo dia dos últimos onze meses seqüestrava, molestava e degolava meninos entre oito e dez anos no subúrbio da cidade. Os corpos apareciam no dia seguinte, sempre nos terrenos baldios, onde as crianças gostavam de brincar à tarde. Tomei conhecimento do crime, quando descobri e matei o assassino de uma jovem freira. O sujeito pintava seu apartamento quando o encontrei e tinha jornais espalhados pelo chão. Ao cair morto, seu dedo médio apontou a foto do nono menino encontrado degolado. Pareceu-me um sinal. Eu matava quando tinha certeza da culpa, às vezes ficava semanas ou meses sem comer, o que me levava a um estado mental que considerava uma conexão com o divino, hoje duvido. Persegui o rastro do psicopata pelos guetos. As poucas pistas deixadas por ele só eram percebidas por meus sentidos vampiros, pela intuição de vidas inteiras passadas no submundo e pela demência da fome. A polícia estava perdida e a população assustada. Finalmente, os vestígios apontaram um único alvo. Era o quinto dia do mês e a fome me torturava. Fiquei tão excitada em descobrir o assassino, que me assustei. Pela primeira vez, questionei minha sanidade e temi estar, inconscientemente, forjando provas contra o homem. Tentei esperar mais um dia. Talvez conseguisse depois de um dia de sono, uma noite de meditação. Durante todo o dia, tive pesadelos. Acordei, assim que o sol se pôs, desorientada. Num impulso, segui até a rua onde morava o assassino, deixei-o desmaiado com um golpe e levei-o para minha casa. A fome me causava leves alucinações e uma certa fraqueza emocional, resolvi amarrá-lo e deitar-me um pouco antes de matá-lo. Quando acordou do desmaio, despertou-me ao se debater. Ao me ver, fez menção de gritar e num piscar de olhos eu estava em pé, a seu lado, caninos em evidência e com as mãos estrangulando-o, mais um pouco e o seu pescoço partiria entre meus dedos. Olhou-me, não como quem tem medo ou implora vida, mas como quem compreende sua desvantagem e prudentemente não reage. Soltei-o. A adrenalina do ataque fez-me salivar. Tive que me concentrar para não atacá-lo naquele momento. Voltei ao divã. Manteve-se quieto. Depois de um tempo começou a examinar o ambiente. Rapidamente, percebeu que não era uma vítima ao acaso. Tinha recortes de jornais com manchetes falando do "Assassino do sétimo dia" por todo escritório, e outros, falando de crimes não solucionados também. Foi ele quem quebrou o silêncio:

 

— O que você quer?

 

— Fazer justiça.

 

— Você é uma vampira.

 

— E daí?

 

— Vai me matar, sugar meu sangue?

 

— Sim.

 

— Para fazer justiça?

 

— Isso.

 

— Por que eu?

 

— Caço os animais que a polícia não consegue encontrar.

 

— Eles sabem?

 

— A polícia? Não. Mas existe um boato sobre um justiceiro, não se empenham muito em me prender.

 

— Você não parece bem.

 

Calei-me.

 

— Está doente?

 

Insistiu.

 

— Estou com fome.

 

— Há quanto tempo não se alimenta?

 

— Três meses.

 

— Por quê?

 

— Estava te caçando.

 

— Só se alimenta de sangue de "animais"?

 

— Sim.

 

— Então você é igual a mim.

 

— Vá se ferrar!!!

 

— Como você, só mato quando tenho fome.

 

— Você é um animal.

 

— Você também.

 

Pulei do divã no pescoço dele. Segurei sua língua com a mão, enquanto sugava seu sangue. Durante dias, mantive seu corpo em minha casa. Ele morreu pouco antes de eu lhe sugar todo o sangue, sufocado com minha mão dentro de sua garganta. Eu o odiava. Seus olhos me seguiam por todo escritório. Depois de um tempo seu corpo em decomposição impedia-o de me seguir com o olhar. Foi a primeira vítima que eu levei para minha casa, talvez por isso eu o odiasse. Ele falou comigo e eu o odiava. Senti falta de ouvi-lo. Não. De falar-lhe. Queria dizer-lhe que eu não era um animal, que eu lutava contra minha fome, e só a saciava com pessoas, que, como ele, era cruel e nociva, e, que, de alguma forma eu beneficiava o coletivo, o coletivo que nunca me acolheu, mesmo assim eu protegia aquela cidade e seus cidadãos de bem. Ele fez de propósito, fez com que eu o matasse antes de me defender, morreu achando que eu era igual a ele. Não, isso não fazia sentido. Queria ter me controlado e mostrado a ele que eu não era um animal. Eu não era. Eu não era. Eu sou. Deixei seu corpo degolado em um terreno baldio. Eu sou igual a ele, não posso matar minha espécie. O que fazer? Tenho fome. Deus abandonou-me. Eu tentei lutar contra a fome, ele devia ter tentado também. Talvez. Somos raças diferentes, dentro da mesma espécie. Cada um tem uma fome. Benditos os que vivem em paz com sua fome! Não há fome sagrada. A fome é assassina. Preciso alimentar-me do sangue dos que sentem menos fome. Do homem de bem. Seu sangue é puro. Ou quase. Talvez eu me cure. Tomei essa decisão quando voltava para casa. Tinha que descobrir uma forma de encontrar homens de bem. Antes iria descansar um pouco.

 

 

carne humana
santa maria
  

No primeiro encontro, de pernas cruzadas no divã vermelho, uma alça caída no ombro, um sorriso minguante, ela pensou em gente crua, mal-passada, ao ponto ou tostada. Respirou fundo e argumentou o porquê de estar lá. Tinha um problema, apesar de ser bem-apresentável, bem-sucedida, bem-amada, bem-mulher, bem-centrada, bem-tudo — inclusive, cansava-se de ser tão bem assim — era bem-faminta também. Para entender melhor os homens, assumiu que se informava compulsivamente sobre tudo do reino animal, desde os programas televisivos às teorias de Darwin, seu livro de cabeceira. Sabe o que é? Há pedaços de carne em meus dentes. Carne humana. Mas eu queria parar de devorar pessoas, confidenciou-lhe. Só os animais racionais matam por prazer, os irracionais devoram a presa para saciar a fome, completou. E ser humana a deixava faminta! Na próxima vez em que se viram, chegou enfiada num vestido escarlate que combinava com o estofado rubro. Evitou durante todo o tempo encará-lo, mas acabou por lhe revelar que havia novas lascas de carne digerindo em sua barriga. Humana, claro. Só comi uma criancinha, desculpou-se. A última, prometeu, tensa, e relatou a ele sobre o hábito das fêmeas de algumas espécies que devoram os próprios filhotes quando são acuadas ou por pura necessidade de sobrevivência. Ser mãe despertava sua total voracidade. No encontro seguinte, estava atrasada. Mudou o penteado e o perfume, a roupa toda negra que agora combinava com seu estado de espírito. Estirada no divã, fumou muito. Contou, aos prantos, e com sangue no canto da boca, que havia acabado de comer a empregada. Não resisto aos meus ímpetos canibalescos. Preciso de ajuda, suplicou-lhe. Não quero devorar o meu marido, revelou em desespero. Tento resistir... E finalizou, divagando sobre o estado de hibernação de algumas feras, após se saciarem, e no quanto o ócio despertava sua fúria gástrica. Na quarta vez, entrou dinossáurica, com quilos de maquiagem ocultando as olheiras profundas. Tremulando. Cabelos emaranhados. Cigarros contínuos. Vestido amarrotado. Foi logo declarando que estava se segurando para não comer o frentista, o jornaleiro ou qualquer outro que porventura se prostrasse em seu trajeto. Sabia que um bicho enjaulado vai perdendo o instinto da caça? Perguntou a ele. E o abraçou. Obrigada por me ajudar, sim? Não como mais pessoas há dias. Ando até lendo sobre os vegetarianos e provando pratos macrobióticos. Antes de partir, ainda repetiu que só por hoje não colocaria um pedaço sequer de gente na boca, mesmo que a culpa instigasse sua gula. Na quinta sessão, entrou calmamente no consultório com uma expressão de alívio. Estendeu-lhe um singelo vasinho envolto num laço de fita, contendo uma mudinha verde-pálida. É uma planta-carnívora, doutor, explicou-lhe. Elas capturam os animais através dos enzimas digestivos. Sorriu com ar feliz, afirmando que se sentia praticamente curada. Em seguida, despediu-se, comentando como a vida era estranha e o quanto se sentia grata. E gratidão lhe dava uma fome dantesca! Num só golpe, com unhas e dentes afiados, avançou sobre o analista e o devorou de uma só vez. Carnes, peles, tripas e ossos. Na saída, sorriu para a secretária. Sobremesas engordam.

 

 

 

2 poemas
simone santana
  

desejo

 

Um corpo se divide,

carne e osso,

entre os dentes de um cachorro.

 

 

 

 

esquina

 

A calçada quente beija o pé da moça que fica ali parada.

Poesia.

 

 

4 poemas
valéria tarelho
 

noturno

 

eu

adepta dos venenos

(lentos-letais)

dos 'poemácidos'

alucinógenos

 

eu das carnes cruas

das palavras acres

das idéias kamikazes

 

eu e meu

harakiri

de araque

 

eu talvezquemsabe

dust in the wind

cheirando a pó

eau de álcool & tabaco

 

eu (aquela)

de nós cegos

do (só meu)

desassossego

da sua (evi[l]dente)

seqüela

 

eu

dos vôos solos

na boléia

brindando a boemia

 

em co[r]pos de geléia

 

 

 

 

lâmina

 

é preciso, jack

perícia

para o corte certo

 

precisão cirúrgica

conhecimento de causa

anatomia do efeito

 

cortar o âmago

afastar o ego

extirpar nervos

: da pele do apelo

ao útero do tédio

 

estripar

órgãos do medo

rasgar o nó — górdio —

da garganta

mutilar a face do ódio

sangrar

seus sórdidos disfarces

 

é preciso, dear jack

conter impulso a tempo

enquanto abertos

todos os segredos

 

[vá por partes

dispondo em postas

o adverso]

 

 

 

 

*

 

eu passo

e não

disfarço

não nego

abraço

beijo

fácil

não me

faço

de difícil

(nem de

fóssil)

 

mostro

os

dentes

quando

estou

contente

 

você não:

faz alarde

late

morde

come a carne

enterra o osso

do almoço

para roer

mais tarde:

 

egoística_

mente

 

 

 

 

direto e reto

 

sê inteiro

— íntegro —

como quando ladrilhos

testemunham teu íntimo

 

sê genuíno

tanto em público

como quando ficas

recluso

 

(e defecas

— fidedigno —

no esgotomundo)

 

ante

seu ego

ecos outros

ascos

:

sê exato

 

(como quando

entre paredes

te rendes

ao mais lídimo

ato)

 

 

 

 

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