edição 32 | novembro de 2008
temas:  verdade | máquinas

 

klima
lucélia majistral

Eu tentei explicar a ele o que ouvira de um outro homem muito inteligente, mas não consegui. O outro homem muito inteligente citava um terceiro homem ainda mais inteligente, alguém provavelmente morto, provavelmente um escritor, um escritor e filósofo morto, engolido pelo século, e era algo sobre andar por aí feito louco procurando a própria cabeça em cada esquina. Há alguma verdade nisso que eu não consigo te dizer, eu falei no momento em que ele se abaixava e apagava o cigarro na palma da minha mão esquerda.

  

 

longe do paraíso
márcia maia

 

Vagando à noite, sob a luz esverdeada dos letreiros de néon, sentia frio. Chovera. Nas esquinas empoçadas, nos vidros das vitrines mal-iluminadas, se via refletida e não se reconhecia. Uma saudade de árvores lhe vazava o peito. Pensou em se jogar do viaduto. Demasiado urbano. Pensou em se jogar no rio. Mas não era rio aquela água escura e fétida cheirando a esgoto e desespero. Pensou em tantas saídas. Mas se escusou de entrar naquele teatro, que se dizia mágico, e se oferecia aos raros e aos loucos. Não, não era a hora de mostrar-se a si inteira e nua. Não agora. Não ainda.

 

 

 

 
 
 

la petit chat noir et la jeune fille surreáliste
nina rizzi

"todo es mentira

este mundo

todo es mentira

la verdad"

 

i -

ela não está acostumada com a felicidade. e o jeito sempre se resolve de desarranjar tudo.

 

tinha um gato lindo. não bastava. sentia a casa — enorme, engoli-la toda. talvez fosse o gato um gorila. daqueles que gostam de varrer sujeiras pra debaixo do tapete enquanto fazemos colagens e as figuras estão espalhadas, esvoaçam por todos cômodos. fazia colagens sabendo que varria a sala o gato-gorila.

 

fumava e não batia as cinzas do tabaco que era pra não cair em sua comida, entre as pernas e seios flácidos. queria acordar o gato que suava e tinha o semblante raivoso. doente. queria que ele dormisse.

 

fazia colagens pra poder ver outras pessoas e mundos que o teatro já havia incendiado e as luvas sem dedos e eram tantos, tantos os papéis amassados e rasurados que só os podia colar em pedacinhos dadaístas. que já não podia voar com(o) os papéis que eram tíquetes vencidos, sem milhas de fuga.

 

 

ii -

era uma máquina do sexo

a santíssima

e estava a maquinar

como ser tudo em máquina

em pensar sorrir sentir doer

só barras e aço

bem durável até as bases

daquelas que os humanos

levam mais a sério

que os semelhantes

próximos-distantes

 

 

iii -

um barato quando ele ligava o motor. não era quando tinha sono. quando queria o trem, aquelas mãos tão suaves de tão grandes. gatinho branco e negro, quase cinzento. permanece no quarto quando todos dormem. fora-de-si. que é, de fato, a vida única por todo o largo. o gato não vai à praia. que tem horror ao oceano das tormentas. que se afoga de envolver.

 

ele já não varre a casa que de taipa é só palha. ele bem que podia estar ali acarinhando a atrapalhar

: é que o chutou bem no estômago quando lhe pisou o pé na cozinha. que lhe puxou o rabo quando matava baratas pra receber visita. pra que goste e fique.

 

ainda agora revolve a areia cheia de merda na varanda recém-lavada. mia que se lembra d'alguma noite fria em que corria pelas ruas de rios metafísicos atrás dela que, louca, ria e chorava ao telefone que só toca em bienais da arte-de-amar. mia que ela não lhe dá ração feita em agroindústrias que não alimentam seus descendentes africanos (é um gato um tanto preto, tanto branco, quase cinzento). mia que não come hambúrgueres de carne que os costarriquenhos só engordam pra então morrer. de fome pobres-diabos.

 

mia que com gatos ela não pode. em crise, virou máquina

: não o olha ou chora ou chuta. sequer fará o mundo gozar. de humano há nela só a morte por asma.

 

  

 

 

machine

(de Memórias de Patty Flag)

patty flag

 

Quatro anos passando em revista toda sorte e azar de tipos cariocas, malandros da Lapa, almofadinhas de Copacabana, gordos aleixões, noivos em sua última noite de solteiros (na segunda de casados, na vigésima, na vigésima primeira, enfim).

 

Quatro anos sem um orgasmo.

 

Pode parecer infantil que, descoberto, eu me viciasse nele. Nada mais natural em mim que a infantilidade, eu tinha 16 anos quando me tornei prostituta. Em meus 100 dias de Cassino da Urca, me tornei a starlet mais fácil da casa. Em meus 100 dias de Patrícia Dietrich, tive 100 homens e 100 orgasmos. Infantilmente máquina, eu exigia deles que máquinas fossem. Deputados, fazendeiros, senadores, turistas endinheirados. Na maioria, homens que negligenciavam suas patroas, esposas que morreram acreditando que se um dia se permitissem gozar, teriam se transformado em vagabundas. É verdade que muitos eram tecnicamente incapazes de dar um orgasmo a uma mulher. Não poucos fugiram assustados. Não poucas vezes gozei só e tristemente, mãe de todos os clichês, entre quatro paredes de um quarto do Copacabana Palace, do Othon ou do Glória.

 

Eu era uma máquina, uma engrenagem que se alimentava de sexo, de orgasmos, de hotéis de luxo.

 

Sem isso, a vida não tinha alegria.

 

O fechamento do cassino funcionou para mim como uma espécie de clínica de recuperação. Meses de abstinência entremeados por umas poucas noites com Guilherme. Logo com ele que tinha o poder de me fazer gozar quase apenas com o olhar. Ele que me apresentou o orgasmo, ele que me curou.

 

Quando recomecei na Boate Vogue, eu já havia aprendido a fingir.

 

Descobri que os homens preferem os orgasmos fingidos. Fingindo, eu poderia arrancar deles o que quisesse. Fingindo, eles se prostravam a meus pés.

 

Eu poderia ter colecionado pequenos tesouros do mundo, mas eu nunca pedi nada. Como qualquer jovem de vinte e poucos anos, procurava apenas um amor verdadeiro. E como qualquer jovem, procurava nos lugares errados: declinei e sorri gentilmente quando Oromar, o pianista do Cassino, me pediu em casamento.

 

Como qualquer jovem, eu procurava cegamente.

 

  

 

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