edição 32 | novembro de 2008
temas:  verdade | máquinas

 

roteiro
roberta silva

cena 4

 

(a luz azul está em todo palco, no telão, cenas em preto e branco de suas juventudes respectivamente em cada telão, as cenas parecem se confundir como se fossem dois pontos de vistas da mesma situação, mas ela não aparece no telão dele, nem ele no dela. Ele no palco tocando observando um grupo de garotas na platéia, ela em um outro show, com amigas na platéia. Ela na faculdade passeando com uma turma pelo campus passa por um grupo de rapazes cabeludos sentados no gramado, no telão dele, ele, no gramado com amigos, enquanto passa um grupo de moças — não é o mesmo grupo nas duas cenas, não é a mesma faculdade, as cenas devem dar idéia de sincronicidade sem o ser.)

 

Nágila – (sorrindo) A juventude é azul. A inocência é um véu azul que cobre o mundo (pausa breve) ou será que ao perdê-la é que ele se veste de cinza? (nova pausa breve) Pintávamos a cara, íamos em passeatas, boicotávamos a comida da faculdade. O presidente do DCE se achava parecido com o Che Guevara, até usava uma boina. Cris contou que no meio de uma transa, em uma barraca de um Fórum Mundial, ele se empolgou e gritou: Hasta la Victória, Siempre!!! Ela se assustou e teve um ataque de riso, o Fê broxou feio e ficou super constrangido, foi aí que ela gamou. Para descontrair, brincou: Hay que endurecer, senon perco la ternura!!! Foi a vez dele ficar caidinho (no bom sentido). No dia da formatura nasceram os gêmeos: Olga e Ernesto. Ainda estão casados, ele está gordo, careca e é sub-secretário do meio-ambiente numa prefeitura de direita, no interior. Ano passado tiveram outro filho: o Fernando Henrique... Júnior. (Nágila ri, balança a cabeça e continua em cena como se ouvisse a conversa de Joel, mas sem olhá-lo diretamente.).

 

Joel – (Também animado e nostálgico) A gente andava de um jeito cadenciado, peito para frente, encarando as pessoas, marcando os passos, como os vilões do cinema. (Anda pelo palco mostrando) Até o dia em que conheci a Susi, japinha tatuada e aluna de artes cênicas, que me disse que andavam daquele jeito para marcar o ritmo da trilha sonora, isso dava um bom efeito áudiovisual. Existe algo mais dissimulado que isso? Naquele momento eu fui expulso do paraíso por uma Eva nissei. Desisti definitivamente de morrer num trágico acidente aéreo em pleno auge de minha carreira de rock-star. O dia estava azul, ficou nublado... cinza. (Ri, balança a cabeça como Nágila, ambos esperam o final da cena como se refletissem, a luz azul vai se apagando, fica cinza e começa a aumentar para vermelho, preparando a próxima cena.)

 

(Fim da cena 4)

 

 

cena 5

 

(A luz vermelha domina o ambiente, no telão de ambos começam cenas de suas vidas atuais, dos momentos de gozo da liberdade que suas vitórias pessoais lhes proporcionam, jantares, passeios de carro pela cidade, belas roupas, champagnes. As cenas ainda são sincrônicas e com locações e personagens diferentes, ambos animados vão até um canto da sala, pegam um tamborete e levam-no para a linha imaginária que divide os dois apartamentos e se sentam lado a lado, falam como se conversassem, mas sem se olhar, estão de frente para a platéia.)

 

Nágila – Tá!!! Tá!!! Estou fazendo drama, a vida agora também está boa, tem seus momentos, suas vantagens, liberdade, independência financeira, chegar em casa de madrugada, não chegar em casa, viagens sem álibis forjados ...sexo... (Joel olha para ela debochado)... ocasional, é verdade, mas ainda na lista das vantagens.

 

Joel – (Fala como se continuasse a conversa) É, foi uma troca justa, grana, viagens, hotéis, meus vinhos, meus filmes, meus cds, meus livros, gatas em casa... fumar baseado na sala (Nágila olha para ele interrogativa e ele responde) Ocasionalmente!!! (dá uma piscadela para ela e comenta com a platéia ) Parece minha mãe!!! (voltam a agir como não se vissem) Confesso: estou melhor agora! (Levantam-se, pegam os tamboretes e os recolocam no lugar, Nágila pega uma rosa vermelha no vaso de flor e encaminham-se para o centro do palco, enquanto a música vai encerrando e a luz muda lentamente de vermelho para azul, ambos observam a mudança da iluminação)

 

(Fim da cena 5)

 

 

cena 6

 

(No telão cenas de tango, Nágila e Joel, depois de observarem a iluminação, suas expressões são de convicção, mas levemente inseguros, ela pega a rosa, coloca na lapela dele, ele a olha cúmplice e começam a dançar pelos dois apartamentos improvisando um tango, conversam:)

 

Nágila – É, eu sou feliz, bem feliz.

 

Joel – Sou plenamente realizado.

 

Nágila – Sério! Tenho tudo o que poderia sonhar uma pessoa para se considerar bem-sucedida, não tenho motivos para não ser feliz!

 

Joel – Não estou duvidando que esteja feliz (pausa, parece que ele fala com ela, mas está falando de si próprio)... Claro que estou feliz, sou um advogado que conseguiu fazer seu próprio nome, mesmo trabalhando no escritório de meu pai, estou prestes a virar juiz (Nágila se impressiona) Não me falta nada..

 

Nágila – Talvez falte um grande amor...

 

Joel – Um grande amor, talvez... não sinto falta de um grande amor!!! (larga Nágila, ela volta também, ele olha a rosa em sua lapela, estranha, tira a rosa, sente seu perfume, a música vai terminando)

 

(Fim da cena 6)

 

 

cena 7  

 

(No telão imagens de velas acesas, a luz do palco é amarela, como se fosse iluminado pelas velas, Joel ainda tem a rosa na mão, ambos vão rapidamente para a porta, como se fossem fugir, pegam a maçaneta, desistem, suspiram, encostam-se na parede que sai do vértice das portas, ficando um de costas para o outro, separados pela divisória real, ambos com a cabeça baixa, angustiados)

 

Nágila – (Enquanto Joel olha a rosa em sua mão) O mais difícil é deixar de esperar a minha pessoa, aquela que me reconheça e eu a ela pelo olhar, no instante em que a vir pela primeira vez, que ao me dar a mão eu reconheça o toque como se tivéssemos caminhado juntos por toda a eternidade. (Ambos passam a mão pela parede real até as mãos se encontrarem na parede imaginária do cenário e as entrelaçam.)

 

Joel – (Ainda na mesma posição) Às vezes penso que existe alguém em algum lugar que espera ser amada por mim, alguém que preencha o espaço de meus braços e me torne pleno. (Eles se posicionam na parede imaginária, ela de costas pra ele, ele a abraça por trás e ele coloca a rosa na mão dela, Joel está com a testa na nuca dela, como se fosse na parede do apartamento dele, pensativo, eles se acariciam, a luz é focada somente neles, ela pega a rosa, cheira e se solta dele, caminha até o vaso e coloca novamente a rosa nele, enquanto Joel permanece na mesma posição até o final da cena.)

 

(Fim da cena 7)

 

 

 

de composição
romina conti

a palavra

exata

cumpre

exala

certeza

 

a palavra

errada

 

sua

pelos poros

da verdade

 

evapora

se esvai

e fede

lágrima de

axila que é

 

 

 

corpos moídos
santa maria

O braço do operário no chão de fábrica

num pequeno céu de sangue

planta a esperança de ser asa.    

 

O pé preso entre as ferragens

desprende-se do trabalhador

e caminha sozinho para o silêncio.

 

A mão decepada do funcionário

que não mais manipulará a máquina

acena seu último adeus.

 

A perna triturada pela engrenagem

em plena pausa do almoço

era a própria carne moída.

 

A cabeça anônima e órfã do corpo

não olha, não vê, não fala

apenas pensa no fim.

 

2 microcontos

simone santana

 

hiv positivo

 

Sentou-se na calçada para gozar a primeira verdade que ouviu em sua vida.

 

 

 

máquina perfeita

 

Todos louvam e violam. Ao velho decrépito cabe vigiar a criança desamparada.

 

 

 

 

 

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