edição 33 | dezembro de 2008
temas:  náusea | rito

 

é incrível
lucélia majistral

eu passo o dia dopada é incrível eu antes não conseguia dormir é incrível eu agora durmo oito dez doze horas seguidas é incrível nenhum sonho nada é incrível meu marido fez as malas dizendo que eu preciso de ajuda é incrível por que você não vai se ferrar? é incrível mas eu jamais conseguiria dizer "foder" eu jamais diria "por que você não vai se foder?" eu passo o dia dopada nauseada é a parte ruim uma náusea de esfomeado imagino uma náusea de uma dessas africanas que aparecem nuas as tetas murchas os ossos praticamente expostos africanas em revistas de grande circulação a náusea delas é a minha náusea é incrível mas tudo o que aconteceu foi que.

  

 

de tantos e diversos
márcia maia

 

há algo de rito

na não que se fecha

em torno de outra

mão ou flor ou vaso

ou faca

e mesmo que hesite

afaga

poda  enfeita

ou simples e crua

mata

 

 

 

 
 
 

a reunião
marília kubota

Em curso. Mas eu pensava nas histórias dele: o menino lá de longe mais vivido que os de perto. Em vez da poesia recalcada, a vida como ela é. Nua e crua. Apesar das camadas e camadas de vergonha. Em todos os tempos e em todos os lugares seria igual. Os delicados empurrados, empurrados até não ter mais espaço. Restava a página em branco: vingança inimaginável.

 

Pensava no gato que diz ao rato que só lhe resta ir para dentro de sua boca. Assim seria com o de longe. Os de perto não iriam para a boca do gato — com um trator comprado pelos pais sairiam rabo dele afora — poderiam passar a vida saindo rabo afora do gato. E passavam.

 

O líder e os assessores seguiam a pauta da reunião:

 

— Promovemos, promovemos — dizia o líder.

 

— O bem da humanidade — secundava o assessor.

 

— A humanidade, por vezes alcatéia ou catléia — dizia o oportunista.

 

Eu, voando, pensando lá longe. O menino, tímido e bravo, talvez contestasse, estimulando meninas de longe:

 

— É tudo mentira!

 

— Não existe isto de promover!

 

— Não existe humanidade!

 

— Alcatéia de orquídeas não é sinestesia harmônica!

 

Eu não conseguia voltar. Vozes do além, ouvia:

 

— "Debaixo dos caracóis / dos seus cabelos / uma história pra contar / de um mundo tão distante"...

 

— "Já não sei o que digo / o que é fora o que é dentro / meu país está se indo"...

 

— "Alecrim alecrim dourado / que nasceu no campo / sem ser semeado"...

 

— "Ir ao mercado comprar sabão em pó, alvejante, 1 caixa de pastel de queijo"...

 

Os reunidores diziam:

 

— A cidade precisa de nós!

 

— O meritoso trabalho de nosso líder...

 

...por que a evocação da reunião quando ele fala de morte? Talvez porque perto estivessem mais mortos e múmias do que os que estão longe. Há um vazio. A solidão, doença incurável.

 

Em vez de chorar os mortos, calcei as sandálias mágicas, peguei a caneta e embarquei na liteira para cruzar o desfiladeiro desconhecido. A criança que durante a vida espiou os pais cultivarem a terra ou o tio fazer a platéia gargalhar pergunta se chegou a sua vez.

 

— Sonhando, cidadã 4357893-56? — interpela o líder.

 

— Sonhando ? Com que direito? — secunda o assessor.

 

— Sonhar acordado cria rugas — diz o oportunista.

 

Eu ouvia os cidadãos, cidadãos honrados.

 

É sempre bom continuar do lado dos vivos. Descalcei as sandálias e respondi:

 

— O direito de sonhar é um bem inalienável da humanidade.

 

Choveram pêssegos, bonecas de papel, pandorgas e tamborins.

 

Os de longe riram como se alguém tivesse feito cócegas em seus pés.

 

  

  

 

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