edição 34 | abril de 2009
temas:  por quê? | a dificuldade do não | muros

 

3 minicontos

simone santana

 

 

porque em certa tarde desenhou um corpo, na altura do coração, sobre o pulmão comprimido

 

Os cadernos esquecidos na mochila preta marcada com corretivo, corrigindo o preto da mochila; o almoço que era um sanduíche envenenava o estômago na pressão do ar que entrava pela janela; a dor e o medo o invadiam de assalto no grito que saía da porta ao lado; sua vida pequena mais cinza que amarela fazia o caminho da casa à escola. Porque para sempre nas suas costas, sua mãe nunca mais o ignora.

 

 

 

negação da infância negada pela inexistência do vocábulo não acarreta crime violento

 

Eis a manchete de um jornal sangrento: Restos de uma mãe são encontrados debaixo da pia de uma cozinha. Motivo: educadores alegam que não se pode dizer não às crianças.

 

 

 

solidão conjunta

 

Um olhar preso no teto, um olhar preso no chão. O que era um se divide no mesmo espaço entre muros de silêncio.

 

muros
suzana bandeira
 

1.

muro, o corpo.

a vida se salva

da janela.

 

2.

pedras fincadas

nos búzios

dizem os muros,

os quilates de muros.

 

todo limite pode ser punhal.

 

 

 

2 contos, 1 poema
tatiana alves

a teia de renda negra

 

Tomava agora mais um cálice de vinho, sabendo que já ultrapassara há muito aquele que constituía o limite do que seria próprio ou não. Esperava, como sempre, por ele, que não se dava ao trabalho de respeitar a etiqueta, deixando-a frequentemente aguardando nos restaurantes, via de regra isolados, já que não podiam ser vistos juntos.

Conhecera-o no aeroporto, terra de ninguém, onde se tem a impressão de poder mudar o próprio destino apenas observando, nos monitores, os horários de embarque para os diferentes lugares do mundo. Ele assobiava baixinho, num compasso um tempo mais lento do que o arranjo original, a música de sua vida. Ela virou a cabeça, querendo descobrir quem com ela compartilhava do mesmo gosto e que, sem saber, invadira o mundo de seus devaneios. Descobrira-lhe a senha e adentrara, sem cerimônia, um território cada vez mais bem guardado, impenetrável. Tamanha ousadia não ficara impune. Trocaram telefones, risos, prenúncio das muitas outras trocas por vir.

Impaciente, em parte pelo atraso do amado, em parte pela melancolia trazida pelas recordações, consultou o relógio, jurando que só esperaria mais cinco minutos. Que viraram dez, quinze, vinte... Quando ele chegou, percebeu de imediato o que aquele atraso lhe custaria. Ela trazia os olhos borrados, indício claro de que tinha chorado. Tirou-a rapidamente dali, e seguiram para o local de sempre.

Deitado enquanto ela tomava um banho, deslumbrou-se ao ver a nova lingerie que ela havia comprado. Tudo bem, ela sempre fora lindíssima, argumento com o qual ele justificava a fraqueza, e assim a vinha enrolando há quatro anos. Mas naquele dia ela parecia especialmente bela. Irresistível, ele diria. Talvez se ela lhe pedisse hoje, ele resolvesse de vez a situação. Não queria se separar, mas também não podia mais viver sem ela.

Mas ela não lhe pediria nada. Cansara-se das promessas vãs, tão falsas quanto o anel que ele lhe dera no Natal passado.

Amaram-se como nunca naquela tarde, com a urgência do desejo e com a calma da derradeira vez. Sim, porque ela planejava deixá-lo. Tencionara que esta fosse a despedida, e nem dessa vez o canalha chegara na hora. Hoje diria o definitivo não, a partir do qual pretendia iniciar uma nova fase em sua vida.

Com a negligé negra e com um jeito sacana no olhar, ela dirigiu-se a ele. Parou, no meio do caminho, para se servir de mais uma taça de vinho. Ele tentou impedi-la, argumentando que ela já bebera demais, que ia passar mal... Ela então esbravejou, dizendo que para ele não faria a menor diferença, que as ressacas ela costumava curar sozinha, já que ele nunca estava mesmo por perto quando ela precisava, como da vez em que ela abortou, por insistência dele, o filho que esperava. E em sua revolta, tão maior porque misturada à mágoa e à paixão, ela quebrou a garrafa de vinho e o feriu. A embriaguez não lhe tirou a capacidade de perceber que ele morria. Ajoelhando-se, colocou-lhe a cabeça no colo, ninando-o, como teria feito com o filho de ambos. O sangue misturou-se à renda negra da lingerie, que parecia uma imensa teia. Como a aranha, espécime que executa o macho após o acasalamento, ela pusera fim à angústia de esperar que ele ligasse no dia seguinte. Entretanto, havia uma irônica diferença: nem viúva-negra ela era, já que ele nunca fora, realmente, seu.

 

 

 

 

certas noites de abandono

 

Certas noites de abandono

Daquelas que roubam o sono

Aquelas que têm lua linda

Noites em que a mágoa não finda

 

Certas noites de abandono

Verões com cara de outono

Serões com cara de ainda

Em que aguardo tua vinda

 

Certas noites de abandono

Pedem colo, querem dono

Mas tua voz me melindra

E a taça já não brinda

 

Certas noites de abandono

Convertem-se então em motim

E eu, triste, assisto ao fim

Desse rei que ora destrono

 

 

 

 

de máscaras e sombras

 

O sol brilhava alto quando ela chegou à velha casa onde havia sido criada. Passeou pelos jardins, algo que não fazia na cidade onde agora morava. De fato, sentia-se mais forte essa manhã, a despeito da anemia diagnosticada pelo médico. A ida à antiga casa da família, sempre adiada, surgiu de modo quase compulsório, já que os ares do campo seriam benéficos à sua recuperação. Suas pupilas contraíam-se em virtude da claridade inesperada para aquela época do ano, como se o brilho da manhã pudesse incomodar. Arrancou uma rosa do pé, e sorveu prazerosamente seu perfume, enquanto pensava se ele viria ou não visitá-la. Pousou a mala no banco da varanda, afastou os jornais e olhou em volta, reconhecendo o lugar, ao mesmo tempo tão familiar e tão diferente, agora que o via com a perspectiva da mulher adulta, no lugar da menininha que havia crescido naquela casa.

Lera novamente as cartas enviadas por ele, como se o simples contato com elas tivesse o poder de trazê-lo para perto de si. Alisou o papel, sentindo-lhe a textura, pensando que, indiretamente, talvez o pudesse também acariciar. Aproximou a carta do nariz, talvez na esperança de sentir o perfume, como nas novelas de época, como se a vida moderna não tivesse aniquilado tal possibilidade, fazendo com que o perfume, se um dia se tivesse derramado naquele pedaço de papel, já não se tivesse evaporado e extinguido nas sucessivas viagens da missiva até lhe chegar às mãos. Voltou à carta, observando a letra irregular do remetente. Letra irregular, comportamento instável, pensou, enquanto lia o amontoado de baboseiras que ele insistia em escrever. Será que ele viria vê-la? Se na cidade as visitas tornavam-se cada vez mais raras, num afastamento gradativo, numa espécie de morte lenta, o que poderia esperar daquela estada, sem ao menos o alento da promessa, ainda que dificilmente cumprida?

Subitamente, arrepiou-se. Aquilo urrava novamente no porão. Ainda que não tivesse passado de um grito abafado, como uma foto que esmaece com o passar do tempo, conservava o mesmo poder de sempre, de aterrorizá-la como se não houvesse saída. O desespero apossou-se novamente dela. Encolheu-se como a garotinha que anos antes jurara nunca mais pôr os pés naquela casa. Mas, nem que fosse para vendê-la posteriormente, ao menos uma visita fazia-se necessária. Como um avaliador que olha friamente, vislumbrando os vinténs de sua comissão por detrás dos jardins que habitam a tela, inspecionou os quadros, que talvez valessem mais do que a propriedade em si, imaginando o que faria quando se livrasse deles. Mas o preço a pagar era alto, ela sabia-o bem, pois os anos de insônia não lhe seriam ressarcidos jamais. Tapando os ouvidos, tentando com isso abafar não apenas os gritos, mas as lembranças, caminhou em direção à casa.

Desceu vagarosamente as escadas em direção ao porão. Sua decisão era aterrorizante, porém irrevogável. Finalmente era chegado o momento de libertá-la. Tirou cuidadosamente a chave de dentro do decote, e só então soube que ela sempre estivera ali. Aproximando-se da jaula com um olhar enigmático, reminiscente, sorriu levemente e destrancou-a. A Fera olhou-a, atônita, com uma expressão que sugeria não apenas surpresa, mas a desconfiança típica de quem ficou presa por tanto tempo que a sonhada liberdade chega a amedrontar. A moça estendeu-lhe a mão, que o animal lambeu levemente antes de recomeçar a urrar. Mas, dessa vez, o grito não a apavorou. Balançando a cabeça em sinal de aprovação, confirmou-lhe que era chegada a hora de agir. Lentamente, a Fera subiu as escadas que a conduziriam à porta da casa. Lá fora havia alguém a quem precisava encontrar, pois eram muitas as contas a ajustar.

 

 

 

 

a estante
tati skor

Sentiu a mão firme em seu ombro. Voltou-se, amedrontada com o olhar agressivo do segurança. Pediu que abrisse a bolsa, à qual se agarrava. Ela negou. Irritado, levou-a pelo braço, com firmeza, para uma sala fechada. Apenas a mesa, duas cadeiras e o sofá. Ordenou que lá aguardasse, enquanto chamavam uma policial feminina.

 

Bastou um olhar para que aquela estante despertasse a atenção de Maristela. Frequentadora eventual da livraria, não a havia notado antes. Com naturalidade, foi até lá e pegou um livro. Uma capa simples, porém com design elegante. Não conhecia o autor, Cantos e Desencantos era o título. Passou o olhar pelas orelhas e pela contracapa. Abriu ao acaso, deu com uma página em branco. Virou-a. A seguinte, também em branco. Intrigada, constatou que todas estavam em branco. "Um defeito imperdoável da editora", pensou, devolvendo o livro à estante. Pegou outro exemplar. A mesma coisa, só páginas em branco.

 

"A polícia vai demorar um pouco, não prefere mudar de idéia, senhora?". O segurança, visivelmente impaciente, não continha a ansiedade em realizar o flagrante. Maristela, agarrada à bolsa, não disfarçou o temor com a situação, mas negou com um gesto.

 

Frente à estante, sensações contraditórias lhe brotaram num arrepio: a intuição ordenando distância, a curiosidade urgindo investigação. Pensou em chamar o atendente. Conteve-se. Pegou novamente o primeiro exemplar e examinou-o mais detidamente. Na contracapa, uma das críticas ressaltava ser "a mais romântica coleção de contos publicada em 2034". Sorriu, intrigada, enquanto devolvia mais uma vez o livro à  estante.

 

"Por que essas coisas acontecem comigo?", reclamou com seus botões. "Só por que me chamo Maristela Campos"?, riu-se por dentro. Escolheu, então, um livro diferente. Nem olhou o título, foi direto ao miolo. Dito e feito, também em branco.

 

Decidiu, então, examinar outro livro mais, este bem volumoso, intitulado As Quimeras de Milena. Só páginas em branco, como parecia acontecer com todos daquela estante. Na contracapa, uma crítica referia-se ao texto como estando "dentre os mais aguardados lançamentos de 2036". Numa orelha, o autor tecia agradecimentos e homenagens, uma delas em caráter especial e em tom emotivo para a sua recém-falecida avó Maristela Campos, "de quem herdara talento e recebera estímulo para escrever". Um choro súbito tomou conta dela. Chocada, soluçando, abraçou o livro, colocou-o na bolsa e, apertando-a contra os seios, saiu.

 

"A senhora permite, por gentileza, que eu abra para verificar o conteúdo?", solicitou a policial. Abatida, Maristela deu de ombros. A policial abriu a bolsa e olhou, inquisitiva, para o segurança. Não havia nenhum livro lá.

 

 

 

4 poemas
valéria tarelho

epílogo

 

podia, com treino

ter êxito no pulo

 

podia, com tempo

ter arquitetado um túnel

 

como tática, podia ter

mudado o rumo

 

em tese podia tudo

que não pôs em prática

 

encarou mero muro

— abstrato —

como concreto

 

fim do mundo

 

 

 

 

filha da pauta

 

a cabeça cheia de por quês

a mente porca

[por causa daquela coisa

que me dá quando me dou

e me dôo e me dão por aí]

 

não escrevo palavrão porque

papai me obsta

 

mamãe tem todas

as respostas

 

[mamãe é foda

culta]

 

 

para ouvir, clique aqui.

música, violão e voz: Tony "Pituco" Freitas

 

 

 

 

silêncio

 

a não palavra

o tudo — mudo —

reticência que trava

todo acesso

obstrui o trato

texto tácito

que flui e não

cessa

em si

 

 

 

 

inviolável

 

se sua boca

silencia

a minha grita

 

louca pelo sopro

de seu sim

ou o soco

de seu não

 

[serve até o som

de seu nem aí]

 

um saco

esta seca — intrínseca —

e seu lábio ao lado

 

selado a vácuo


 

 

 

 


verônica couto

Isadora, recorde

a glória luminosa de Jó:

melhor pobre, ao modo dos apóstolos,

do que nas joias e filós.

 

Melhor porta afora, do que vaidosa,

em odes e prosas de lençóis.

 

Melhor oratório do que óculos novos

e broche pop de bisavó.

 

Melhor solo inóspito

do que foz copiosa, toró.

 

Melhor na ordem

do que rosa caprichosa.

 

Melhor o módico

do que pródiga de dotes óbvios.

 

Melhor imóvel

do que mole, nas modas.

 

Melhor se chove,

e melhor se encolhe.

 

Melhor devota de Nossa Senhora,

do que bossa nova e orgulhosa.

 

Melhor sem dó.

 

Isadora, acorde, concorde e se dobre:

Melhor só. Só, melhor torta

do que morta.

Morta, melhor o pó.

 

Isadora devolve, manhosa:

— Vó, olha só.

Volte o Jó ao purgatório.

Católica despretensiosa

ora votos ao pior.

 

N. A.: Exercício de assonância em ó, em aula de Gilson Rampazzo (2004)

 

 

 

1 poema
virna teixeira

é real esta ansiedade. aposta, cavalos, dois corcéis negros tão perto da colisão, nistagmo. vertigem em espiral, pré-síncope. antes de perder os sentidos. tentativa de controlar o caos. depois há nuvens, clorofórmio,

 

torpor, repetição que acalma

 

 

 

 

 

 

 

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