edição 36
| agosto de
2009
A igreja ficava na Joseph Bloch, uma boa caminhada de meu apartamento na Atlântica. Mas aos setenta e raros anos, Deus redescoberto, ia e voltava andando três vezes por semana.
Eu, que nascera judia, que tivera Deus enterrado dentro de dentro mim por oficiais nazistas, que já tinha sido tudo e nada, que, quando musa dos Teatros de Revista, frequentara candomblés por curiosidade, que acompanhara meu segundo marido a missas dominicais, eu, agora ia à "Universal", porque gostava de cantar os hinos, porque minha vizinha ia e porque, lá, acreditava-me curada de meu passado.
Em certa altura da Figueiredo de Magalhães, um brechó a exibia na vitrine, gritando com seus olhos pintados à mão, que o passado não se cura. Disse à minha vizinha que continuasse sozinha para não se atrasar e entrei no brechó.
Os cabelos encaracolados de porcelana, alaranjados, o rosto cuidadosamente pintado tal pele de bebê, as roupas envelhecidas de Prinzessin.
"É alemã". Me disse a senhora atrás do balcão.
"Ich weiß". Eu sussurrei.
— Mamãe, mamãe! Eu quero aquela!
— Amanhã, querida.
Não foi exatamente no dia seguinte, mas, uma semana ou três meses depois eu tinha a boneca, "Meine Puppe". Quando nos mudamos para o gueto, levei-a em um baú que não chegamos a abrir.
"A senhora vai levar?".
Esperando as respostas verdadeiras, eu sacudia "Meine Puppe" pelos ombrinhos de porcelana.
Eu não voltei à igreja, agora faria minhas caminhadas à beira-mar.
Brinquedo, esperarei.
não desejarás a mulher do próximo o nono mandamento sob a visão astro-ilógica
E a qual distância deverá estar o próximo? E o homem da próxima: pode ser desejado? Ante perguntas tão capciosas, só me resta divagar sobre como cada um dos 12 signos reagem quando o assunto em questão é pecar contra o Nono Mandamento.
Áries – não desejo nada! Sou o carcará do zodíaco: pego, mato e como!
Touro – sendo prático e muito possessivo, quando desejei a mulher do próximo mudei-me para a casa do vizinho, mas, confesso, não superei o trauma de ver minha mulher tornar-se tão próxima do citado vizinho.
Gêmeos – vou conferenciar com todos os meus eus para sabermos o que devemos desejar, sei lá se cada um de nós eu desejamos coisas diferentes?
Câncer – vou pensar nisso quando encontrar a foto da mamãe, meu ursinho de pelúcia, o primeiro par de sapatinhos que usei na maternidade...
Leão – o que existe mais próximo a mim é a imagem que o espelho me devolve, sendo assim, que se dane o mundo, não se chamo Raymundo.
Virgem – desejar pra quê? Quem? Onde? Como? Por quê? Se uma pergunta deixa de ser uma pergunta quando se sabe a resposta, desejar pra quê? Quem? Onde? Como? Por quê?
Libra – será que se eu te desejar vai ser bom pra você como pode ser bom pra mim?
Escorpião – jamais desejaria o que sei que será meu, seja quem for, esteja onde estiver.
Sagitário – o universo conspira a meu favor, os deuses jogam na minha linha, cadê o cavalo?
Capricórnio – se o próximo for a cadeira do Chefe....
Aquário – desejaria a perfeição, mas dela já tenho escritura definitiva e com firma reconhecida.
Peixes – o que é desejo? O que é o próximo? Quem sou eu? Onde estou?
as coisas de agora Faltavam cinco minutos para a meia-noite e, se não guardasse o hoje na gaveta onde o guardava sempre, amanhã teria que guardar o ontem e ficaria pra sempre vazio o espaço do agora, fossem quais fossem os outros hojes que o tempo traria, não importando o quando.
O sinal demorava a abrir e ela esperava, na esquina. Do outro lado dos carros, táxis, ônibus e entregadores de tudo, ele também esperava.
A mulher, do outro lado da calçada, talvez fosse desesperada, talvez fumasse muito, talvez se escravizasse à contemporaneidade e mantivesse o corpo magro à custa de saladas e grelhados. Ele pensou.
O homem tão alto como aquele, parado do outro lado de tantos obstáculos, talvez trocasse lâmpadas sem auxílio de escadas e fosse solidário. Homens altos sempre parecem solidários. Ela pensou.
Um esbarrão derrubou-lhe do abraço o embrulho. O homem alto abaixou-se para ajudá-la. Num breve instante suas mãos se tocaram. No meio de tudo, os cacos. Nada poderia ser refeito. O que se quebrara perdera a função de existir ao ser quebrado.
Do outro lado da rua, ela ainda olhou para trás, ele já se perdera no meio do mundo.
E quando tentou guardar o hoje na gaveta, já passava da meia-noite.
Para Romina Conti e este espaço, branco, que vai ficar aí, logo abaixo.
©simonia fukue
infância Um audacioso astronauta desvenda o hostil planeta no jardim. O valente caubói em meio a um duelo contra a própria sombra no muro. O selvagem urso a estraçalhar com fúria quem invadir seu silvestre pomar. O índio apache faz a dança da chuva na floresta do canteiro. O caçador destemido vasculha entre as densas montanhas da horta. O bravo bombeiro salva indefesas formigas das incendiárias caixas de fósforos. O monstro pantanoso emerge das profundezas do tanque com roupa de molho. O herói levanta voo entre os esvoaçantes lençóis no varal. O jogador aclamado marca um ovacionado gol nos ferros do portão. O pequeno menino vive de brincar. Adulto, brincará de viver. Sozinho no quintal, ele brinca de solidão.
joão & maria Assim. Agora eu era a noiva do caubói e andava nua pelo seu país. Fingia que sou seu brinquedo. Bolinha de gude, figurinha, bodoque, tampinha premiada de garrafa. A gente agora brincava de médico, subia em árvore, corria na chuva, soltava pipa, brincava de médico, fazia castelos em monte de areia. Rei e rainha, mocinha e bandido, mula-sem-cabeça, moinhos de vento, médico. Jurava amor eterno. Na fartura e na miséria, blablablá. Na formatura do jardim de infância, dentro do terno branco engomado, ele sussurrou ao ouvido dela, assanhando todas as saias do seu vestido de organdi: "quando crescer eu volto pra gente se casar". Primos. Quase indivisíveis como os números. Até que ele conheceu Lola e seus olhos de seis e meia, seu corpo de água mansa, seu sorriso de alecrim. O músculo mais potente do corpo humano é a língua. Apaixonou-se. Eu também. Agora era fatal.
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