edição 38 | dezembro de 2009
temas:  um estranho que me quer | instrumento musical | reconhece a queda

 

olará
florbela de itamambuca  

olará! toca a pele e o coração

saíra na gaiola da costela

ar fresco dependura na janela

bate um vento na folha do limão

 

abre voo, sai pra vida, leva o grão

pousa em meu ombro, pulsa com cautela

avança volta fica vai na dela

faz que sim pele pega pela mão

 

giro a cintura, salta do meu braço

alcançando a fruta no jardim

rouba a costela, devolvo outro abraço

 

venta, saíra... livre e afim

espia aqui pra fora, faz que sim

voa que eu te protejo, que eu te caço

 

 

 

 

  

 

1 poema
jane sprenger bodnar

tropeçarei

no banco do teu carro

na próxima curva

               de um convite 

 

a flauta

ainda mora

               no porta-luvas

 

 

  

 

trânsito
julya vasconcelos

já sei que reparto justo, não me diga

meu olho no teu exprime o gosto curto

de um cigarro de baunilha.

engulo e já mais nem sei onde ponho pés

se na calçada gris ou no teu queixo ávido.

recorro mais que tudo o incaminhável,

o descaminho, o troca-pés,

o tropeçadeiro,

puxa-tapetes.

 

já sei que antes de tudo: jogo e amor, nem me diga uma palavra

xeque-mate,

última garfada

e eu sombreio a testa com as mãos debaixo do sol hemisfériosul

e ponho lentes cor-de-mel no teu olho azul.

 

 

 

a loa do estranho amante
jussara salazar

1    Devora-me um tigre

que vive

na tua sombrosa mata

 

Ronda essa casa

seu corpo

seca-me a carne

 

O teu tigre passeia

faminto de morte

dorme impura glória

sobre minha tarde

 

©juca filho
 
 
 

 

 

o estranho que me visita
lia beltrão

 

Eu sei quando ele chega. Gosta de me pegar distraída dentro de um livro, aparando as unhas ou bordando com meus bastidores. Quando me dou conta, ele já sumiu lá para os fundos do corredor. Nas primeiras vezes, tremia de medo e me distraía ligando a tv, cantando alto, telefonando para qualquer pessoa. Até que ele sumisse.

Mas teve um dia em que criei coragem e fui caçá-lo pela casa. Entrei no quarto, ele deu sinal de estar no banheiro. Abri de um brusco a porta do banheiro, ele mexeu na torneira da cozinha. Acendi a luz da cozinha, ouvi o seu suspiro lá na sala.

Com o tempo, aprendi que ele não queria ser visto. Me acostumei com a sua presença pela casa. Quando ele chega, finjo que não percebo. Continuo presa no livro, na serrinha de unhas ou na agulha que passa de um lado a outro do tecido esticado nos bastidores. Faço falsas poses distraídas, sabendo que ele gosta de me ver assim, vivendo a vida, passando o tempo, pensando coisas. Gosto desse estranho que me quer assim, na mais banal intimidade. Gosto que vasculhe minha casa, que me vasculhe por fora e por dentro. Gosto que me mostre a estrangeira que eu sou dentro do próprio território.

 

 

1 miniconto
lídia

 

Na primeira vez em que ela choveu por aqui — o essenfelder emanava do rádio cansado da tarde —, toda angorá, com sua saia, suas coxas, fui às casas Bahia: levar o dedo através do pó dos móveis. O dia morreu nela.

 

Na segunda em que ela aqui apareceu, toda suja de Manuel Bandeira, eu bebia um copo de graxa com o prefeito.

 

À terceira vez ela entrou no mar. À noite sonhei com generais que ardiam na fogueira.

 

 

 

 

  

 

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