edição 39 | março de 2010
temas:  recomeço | platonismo | chuva

 

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lia beltrão

recomeço

 

Noite mal dormida. Todos os espectros, do bem e do mal, os vivos e os mortos, deitaram-se em minha cama. Cada hora da noite virou década. E toda a minha vida passou pelo meu quarto, como se eu fosse morrer. Todas as dores, todas as angústias revisitaram meu corpo. Amanheci exausta.

Mas amanheci. Saí viva da noite dos meus dias. A luz filtrada pelas frestas da janela despertou as lembranças esquecidas pela noite. Certamente, fui feliz algumas vezes. Algumas vezes sorri, algumas vezes gozei, algumas vezes a boa vida me visitou em minha cama e fora dela.

Sou grata a esta manhã que me salva da angústia insone. É com sua pouca luz que recomeço.

 

 

 

 

platonismo

 

Não gosto desse Platão. Pelo pouco que me lembro das minhas aulas de filosofia, foi ele quem inventou o tal do amor platônico, em que as pessoas se amam à distância, sem se pegar, amassar, resfolegar. Parece coisa da internet. Também dizem que na república que ele imaginava não tinha lugar para os poetas. Me digam mesmo qual era a desse cara. Um mundo sem sexo e sem poesia. Dava até para acreditar, se eu não soubesse do que acontecia naqueles banquetes em que velhotes e efebos varavam a noite filosofando. Pelo menos é o que eles diziam quando chegavam em casa.  Sei não, mas esse tal de platonismo só existe mesmo no mundo das ideias.

 

 

 

 

espera da chuva

 

O homem que conserta o telhado ficou de vir hoje e ainda não chegou. Amanhã é dia de São José e é bom que chova. Pois quando não chove no dia de São José, o povo daqui tem por certo de que o ano é de seca. Na noite da véspera de São José, os antigos ainda botam umas pedras de sal no sereno. Mesmo que não chova de madrugada, se as pedras amanhecem úmidas, é sinal de bom inverno. E o milho plantado no dia do Santo Carpinteiro vai vingar e doar suas espigas bojudas quando estiver perto do São João.

Eu não planto milho, mas desde mocinha cultivo uma esperança. Vai ser num dia de chuva que um homem se abrigará na soleira da minha porta. Eu então vou chegar lá de dentro com uma toalha morninha para ele se enxugar. E quando ele tirar a toalha do rosto, vai me olhar com uns olhos de susto e logo me puxar pela mão para o meio do aguaceiro.

Não entendo porque, mas até hoje, mãe de filhos, essa esperança ainda volta quando chega o tempo das chuvas. E é isso que se mexe dentro de mim ainda agora, quando apenas espero o homem que vem consertar o telhado.

 

 

 

 

 

para ler em vóz lusitana
lídia

 

Quando ela foi chover lá em casa: esquecida de passar o tecido da toalha na água que vestiu o chuveiro a sua pele: eu me dava uma saraivada de pensamentos: eles: os pensamentos: outra vez ainda: em que ela sumiu: esqueceu seu vestido na vértebra da cama: e se, se podia ver, o vento disfarçado de ela: o vento no açoite daquela tarde vazia: dum vestido vazio: no vazio da tarde: o vento e o vestido e o pensamento e a imagem dessa menina acariciada de labirintos: eu teria te metido o balaço dos bandidos antigos: que dantes atiravam em placas de trânsito: que dantes eram tranquilos com os dedos entrados nos cabelos dos cavalos: e ela continua a atirar louças da janela: ela continua a me passar a língua no gelo do Martini: e eu passo a coxa n'água da piscina: e passo o arco nas cordas do cello: e te passo o arco nas escamas da tainha surda: ela: a tainha: quando te bato a surra de peixe nas costas: e que te fique os joelhos na ostra: e que não te esqueça a lâmina do meu chapéu na pele lisa do pescoço: e quando te empurro, dentro do mar, o oceano no fundo do sexo: é que tu quebras a unha na minha clavícula ao léu.

 

 


©sippanont samchai

 

 

11 poemas

líria porto

 

 

pré-menstrual

 

barulho chuva

arrulho de água e serra

 

mato seco se enverdece

prima_vera insinua-se

 

lua surta no cais

 

 

 

 

casório

 

a chuva

ri(s)o vertical

deita no oceano

seu lençol

 

 

 

 

andarilhos

 

parecem estrelas

são pingos de chuva

em folhas d'inhame

 

chuviscos de lua

no verde veludo

de tantras

 

andanças

 

 

 

 

palavras desnecessárias

 

nosso encontro durou

o tempo de uma despedida

 

se eu pudesse voltar àquele ponto

eu te puxava para um canto

beijava eu te beijava tanto

e pronto

 

 

 

 

surfe

 

eu tinha tanta vontade

de a minha alma voltar

 

houve um tempo tão feliz

leve corpo a acompanhava

e as nossas travessuras

eram passeio inocente

vadiagem em enxurrada

 

se o mar ficasse parado

quieto igual um espelho

meteria meu bedelho

cutucava-lhe a pança

 

quando a alegria voltasse

qual balanço de criança

eu iria numa prancha

à crista do azul

 

 

 

 

bebedeira

 

se o amor voltar eu me desvio

escondo-me num fundo de bar

fujo do cio

 

se o amor me quiser de novo

não me vai encontrar

afogo-me no copo de um bêbado

num cubo de gelo

cubro-me com chope ou uísque

eu me bebo

 

se o amor vier

não vou querê-lo

 

amor é vício

 

 

 

 

olha a garoa

 

amanheceu chuva fina

acabou-se a aguaceira

agora nossa senhora

coa nuvem na peneira

 

a minha serra cheirosa

vestiu manto de neblina

com roupa tão vaporosa

parece moça menina

 

mantém os olhos abertos

sem cortina sem vidraça

a vida é boa é bela

não a vês? — a vida passa

 

 

 

 

réchaud

 

cheiro de chuva

de chão de riacho

 

achego-me ao macho

pro chá pro aconchego

 

a chama chamusca o rochedo

 

 

 

 

corpo mole

 

no firmamento

tinha uma nuvem

 

dentro da nuvem

chuva encravada

 

em terra seca

muita penúria

 

e a pirracenta

não desaguava

 

 

 

 

respingos

 

e quando a chuva caía

eu ia com a enxurrada

beirava rente a calçada

descia junto da flor

e ria a risada d'água

aquela alegria d'água

brincava que era a flor

 

depois eu sentia frio

lembrava-me então do rio

da flor que o rio levou

e os meus olhos choviam

 

eu era como a enxurrada

fui ficando poça d'água

que o tempo chorou

chorou

 

 

 

 

rachaduras

 

dos pingos da chuva

ouvia os chiados

tais quais os enxurros

riachos da alma

 

achou entre os seixos

um nicho de mágoa

prendeu as madeixas

os cachos da lágrima

 

chorou só um pouco

baixinho sem garças

tristezas são brumas

são minas sem mar

 

 

 


©sippanont samchai

 

 

ilhado(s)

lucélia majistral

 

Colou o cartão na porta da geladeira. Depois abriu e fechou a porta. A luz acendeu e apagou. Uma espécie de cumprimento. Olá, adeus. Arrastou os pés até a sala e deitou no sofá. Estava nervosa. Antes chovesse ali dentro. Ou dentro da geladeira. Sim: dentro da geladeira e em nenhum outro lugar. Vestiria uma capa amarela e cobriria bem a cabeça sempre que quisesse um pedaço de queijo ou um pouco de refrigerante. Ou uma trufa. Diria a alguém na fila do banco: Minha geladeira tem chovido muito. Boas festas: estava escrito no cartão. Três meses de atraso. Agora ela vai ficar ali deitada até quando ele entrar pela porta e repetir o que dissera ao telefone: Fiquei ilhado. Onze, meia-noite. Tenho uma coisa muito importante pra te dizer. Ela ensaia. Não é preciso ensaio. A carga sobre o telhado aumenta em vez de diminuir. As nuvens insistindo. Toda a culpa dos céus. Antes ele tivesse outra, mas: não: está ilhado. Voltou à cozinha, rasgou e embolou o cartão e colocou na boca. Mastigar com cuidado. Engolir só quando tiver certeza. Não suportaria vomitar um cartão de Natal. Por que você guarda essas coisas?: ele vive perguntando. Por que não joga tudo fora? Abriu a porta da geladeira outra vez. A luz não acendeu.

 

  

 

chuvas
marilena soares

"(...) Certa vez, de manhã cedo — uma

chuva violenta batia nas vidraças...".

Franz Kafka: A Metamorfose

 

I

 

Deixava-se chover. E choviam. Com a mesma copiosidade dos Abril. Um dia desceu de costas a escadaria do edifício. Depois, depôs as chaves na portaria e saiu, caminhando para trás. Enquanto caminhava, o peito ia se expondo e pondo para fora, reservas de paz. Ainda de costas, entrou no automóvel e saiu de marcha à ré. E, desocidentalizada, partiu para oriente. Como seria reviver tudo, depois de tantas despesas e sacrifícios? Encontrar e alugar o flat; a compra do automóvel e das vassouras? Como desacostumar? Ao desfazer as malas, repunha tudo no antigo lugar e cogitava: Tornar a estreitar a estreita vida na velha ditadura dos por quens. Despertar nas mesmas enfermiças manhãs de moribundos dias. Desistir de viver ao sabor das idéias: comendo letras, parindo frases e sozinhando uma vida modorrenta, na iminência do tédio. Mas sendo suficientemente esperta para se proteger. Renunciar à solidão criativa e unívoca, para retomar a solidão árida e biunívoca. Conviver com desagradáveis episódios reais, depois de anos de prazerosas emoções virtuais... Um avatar e tanto... Uma saudade de si própria a envolveu em lágrimas. Ah, quem dera tivesse nascido e sido para sempre estéril. Teria pelo menos praticado o único crime absolutamente perfeito: assassinar a quem nunca existiu. Por quê? Por que não sou dona de mim. Ninguém é dono de si. Não passamos de pequenos fragmentos de bólidos atirados pela vida, sem rumo, sem vontade, sem saber aonde vamos cair. O meu destino foi recair no mesmo lugar de onde fui atirada. Abri o refrigerador e me servi de uma dose dupla de água. Logo percebi: não era a minha marca, e despejei tudo na pia. Pus um Mozart, acendi um cigarro e me deitei no chão. Ecoou um Paganini, a quem sempre detestei, e fiquei esperando para retroagir. Enquanto fumava, as volutas iam desenhando, dentro de mim, nuvens de infelicidade. E o tique-taque do relógio na parede misturava-se com o som chatíssimo do violino de Paganini, para ajudar a irritar, com a sua monotonia, os meus olhos já marejados de dor e de fumaça. Enfim, pouco a pouco ambos silenciaram e eu adormeci. E sonhei. A grande vantagem dos sonhos sobre a realidade é que são como a face oculta da Lua: só vemos o lado agradável, ou que julgamos agradável. Sono e arte: os dois únicos escaleres capazes de salvar, durante o naufrágio da vida. O primeiro, dado de graça pela natureza. O segundo, arrancado a fórceps de dentro de nós, por nós mesmos e, em parte, também prêmio da natureza porque ninguém se torna artista. Nasce-se ou não se nasce artista. Nas (artes) ser. Ou não ser. Ainda não amanhecera. Nem sabia se a manhã seria. Levantou-se, foi para a cama e voltou a dormir. Ressonava um som surdo num sono dessurdo. E sonhou novamente abraçada ao universo. Ao despertar, cuidou que foi princesa. Não foi: veio. Voltaria? Essa é uma história com fim, mas sem confins. Sem começo, mas com meio palmo de extensão, em papel pautado pela transparência.

 

 

II

 

Não bebia. Vinho também. Mas se inebriava. Na arquitetura da ilusão, a embriaguez tem origens várias e varias. Muitas vezes se embriagava de pensamentos. Não morava no mundo: viajava a bordo. Não sei se esqueci de saber para onde vou. Não sei desde quando nem quanto estou aqui. Desaprendi a contar o tempo. Um tapume de terças-feiras tapou quartas, quintas e sextas. E uma nuvem de sábados obscureceu o horizonte dos domingos. Tampouco sei se alcancei a Primavera ou se verei o Verão.  Entre o ontem e o hoje há um hiato. E ato as duas extremidades sem conseguir emendar. Mas não preciso fazer esforço algum para ver, cheirar e escutar o passado. Tão nitidamente como se fosse um presente do presente. Não sinto saudades do pretérito, e sim, das saudades que irei sentir deste agora. Ignoro se sou feliz ou inditosa. Só sei que as flores têm as cores das minhas emoções e as fragrâncias dos meus desejos. Às vezes assisto a uma coreografia de perguntas coloridas sendo respondidas por um bailado de dúvidas incolores. E me retiro antes de terminar o espetáculo. Prefiro estudar a gramática da natureza. O assobio do vento, o murmúrio das cascatas, o chilrear dos passarinhos, o farfalhejar do arvoredo e até o ribombo atroador dos trovões são palavras harmoniosamente encadeadas, cuja sintaxe tem muito mais sentido do que a linguagem contraditória dos humanos.

 

 

III

 

Voltou. Desta vez, para o lado mais atlântico da cidade. Onde o mar é sempre grávido e a terra, infecunda. Cheirava a maresia, cheirando a maresia. Amanhecia escutando sobras de silêncio. E adormecia ouvindo sobejos de marulho. Preferiu ser chovida com as águas gordas dos invernos a ter de receber os chuviscos magros do verão. Todas as tardes, ao pôr-do-sol, pisava descalça as areias cor-de-ouro. E as ondas arremessavam-lhe aos pés, douradas conchas trazidas do fundo do oceano. Não pertencia a ninguém. Nem a si própria. Sou escrava do pensamento e da sua única filha única de quem vale a pena ser escrava: a criação. Sou mortal; minha arte não. Sou a minha arte e ela é eu. Logo, sou imortal. Se pensares assim, então morrerás duas vezes. Teu amo, o pensamento, contigo. Mais tarde morrerá a tua arte. Logo, és mais mortal do que eu — um não artista. Tu e a tua criação, não passam de um curto intervalo entre o não ser e o será. Sucede que viver independe de mim, embora de mim dependa o que fazer da minha vida. Como "viver é uma ordem", tenho de cumpri-la com o melhor desempenho possível. E não existe melhor desempenho senão através da arte. Incorrigível sonhadora! Numa insólita noite sólida, a Terra tossiu trovões e o Céu vomitou relâmpagos. Recebeu em cheio uma chuvarada chegada cheia de sem tempo. O outro tempo recurvou-se e depois se partiu. A manhã amanheceu líquida. Sob as brancas asas de um nevoeiro onipresente, um Sol anêmico nasceu anoso. Foram-se os novos sonhos. Só lhe restou sonhar os sonhos idos...

  

 

 

 

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