edição 44 | outubro de
2013 anna bernadete reutman Anatea
formicaria
trata-se de uma espécie de aranha que se traveste de formiga para fugir
dos predadores de aranhas. Vive na floresta tropical da Nova Caledônia e
até 1967 era considerada pertencente à família clubionidae. Anna. Esse era o nome gravado na placa de bronze, pendente apenas por um parafuso na porta antiga. O segundo parafuso, no chão, beirava o portal. O sobrenome gravado na placa cheirava a algo como elite paulistana do início do século passado. Algo italiano tendendo para o pastiche. Empurrou lentamente a porta, enquanto sons vindos de dentro antecipavam uma Rita Pavone pavorosa num aparelho de som que soltava arroubos de rouquidão misturados à estática de um mau contato que persistia desde a década anterior. A mobília era tão antiga quanto a porta, o sobrenome, a canção brega, o ar abafado, o cheiro de guardado. Nada ali cheirava a mundo. Na sala, apenas o passado. Um passado. Indistinto. Sem dor ou ar-dor. Só silêncio. E tempo. Passado. Ela é jovem. Não tanto, mas abaixo dos trinta. Pode-se vê-la entrando na sala e mostrando ambas as mãos, e nelas nem sequer um anel ou aliança, bem como nenhum enfeite nos braços ou no colo alvíssimo, no decote ornado por tecido azul cobalto, o que denota a) ela tem pouca preocupação com aparência ou b) ela provavelmente é solteira. Como as verdades foram soterradas junto com os tijolos de um muro perdido na história, supõe-se os itens a e b, apenas supõe-se, assinalando-se que eventualmente nenhum deles pode portar verdade. A jovem contém um suspiro: a respiração sempre foi bom cano de descarga para a angústia, agora retida. O que ela agora vê é uma sala abarrotada de badulaques antigos, flâmulas de clubes de tênis, yatch clubs, copos altos, como os em que se tomava uísque nos anos 1970, empoeirados, cortinas vetustas, compridas, escuras, poeirosas, pequenos enfeites de gosto duvidoso e cores abusadas espalhados por móveis que supunham um jacarandá extinto, de tão ancestral. (Quem viveria rodeado por tanta saudade, ela se pergunta.) Os dedos nodosos, a pele sarapintada de nódoas marrons, o esmalte rubi, o anel de formatura, estreita ilha metálica cercada de carnes invasoras, dedos tamborilando silentes o tecido estampado da bergère. Ela ouviu a porta abrir-se lentamente. Os dedos diminuem o volume da Pavone até a inexistência. "Lens nubila", a voz da mulher mais velha sentada na bergère sussurrou. Uma das mãos jovens acorre à beirada do tecido cobalto e o colo lunar treme assustado com a voz que pareceu ter saído de um daqueles objetos, deixando-a confusa. Alices, coelhos falantes e gatos risonhos. Lisergia. O par de jovens olhos verdes procura pela sala. De onde, aquela voz? Boca seca, não conseguia articular a resposta que construíra: que língua é essa? Pensa na hipótese de voltar sobre seus passos, fechar a porta lenta e silenciosamente e deixar aquela demanda sobre alguma escrivaninha, alguém a pegasse. Mas não. Ela tinha ouvido mesmo lens nubila? O que significava? "Quem...?", a voz jovem igualmente sussurrou, mais por secura na garganta que senilidade na voz, mais por não saber exatamente o que queria saber, a voz estancou, a pergunta incompleta no ar, arco sem tensão. "Anna", respondeu a voz entrecortada pelos anos. "Me chamo Anna", murmura, dessa vez um pouco mais audível, a voz jovem, quase que no mesmo momento. "Eu sei", completa, respondendo à sabida coincidência de nomes, "Li na placa, na porta". Majestática. Patética. Uma figura ancestral se mostrou, levantando-se da bergère, primeiro de costas para a porta, virando-se em seguida, mas lenta, adernante, síncopes nas pernas indecisas, em direção à jovem visitante. Sobrancelhas eternamente arqueadas pelo risco de um lápis de olho com ponta irregular, esgar de susto eterno, olhos embaciados fitando-a através. Algo atrás, parecia, chamava mais a atenção daqueles verdes, como os da mais jovem, opacos. "Meu sobrenome é", a dona dos verdes embaciados disse, interrompida pela jovem. "Temos sobrenomes diferentes, apesar dos prenomes idênticos, inclusive no duplo N", a mais jovem clama, decidida, "Aqui está, pegue", completa, ofertando um envelope com algum selo oficial. A Anna antiga cedeu em gesto mas o degolou em meio, evitando pegar o envelope. Apenas disse "Palíndromos, isso o que somos". "Vim entregar isso para a senhora, pegue", insiste a dona dos jovens verdes, desviando-se de um enigma para ela pouco atraente. Deus do céu, pode-se supor que tenha pensado, por que essa velha não pega logo o papel e me deixa sair desse, desse, desse. "Você gosta de coisas irresolvíveis", vaticinou Anna. O silêncio e a inação de Anna não a surpreenderam, "Vo-cê-gos-ta-de-coi-sas-ir-re-sol-ví-veis", repetiu, mascando e alteando sílabas conforme comumente fazem com ela própria, supondo-a, por velha, surda e idiota. Uma brisa antiga sopra por trás de Anna, arrepios na pele como encapelos em mar de tempestade. Drummond, imagina lembrar-se de ter lido algo semelhante. "Não compreendo", consegue tartamudear, indecisa sobre se aquela conversa deveria ou não chegar a termo. Só quer terminar com aquilo, voltar de onde veio, entregar a demanda concluída e ir para casa. Paz. Imagina-se colocando a mídia e escutando sair das caixas um Debussy plasmado de nonas inomináveis que a fariam flutuar, azul, chuvosa, inefável, pluma de carne, seda sem sexo. O que essa velha fala, pergunta-se internamente, o que quer dizer com coisas irresolvíveis, que mau gosto para escolher palavras essa velha tem! "Lens nubila, eu disse, para em seguida dizer um termo que julguei que igualmente não foi compreendido: palíndromo", rasgou o silêncio a voz de Anna, "Nem uma coisa nem outra você compreendeu, mas seguiu adiante. Por quê?" Anna cruza os braços, amassando o envelope nos esvoaçantes cobaltos, inapta para aquilo, "Vim aqui para", reticencia, interrompida por Anna. "Entregar a porra de um envelope é assim tão mais importante para você, minha filha? Vamos, me diga o que significa lens nubila e o que é um palíndromo", retrucou Anna. Lembrou-se de ter criado aranhas quando criança. Dava-lhes moscas mortas. As aranhas se aproximavam da presa, picavam-na e afastavam-se. Anna retirava as moscas picadas e não comidas, por acreditarem-nas indesejadas pelas aranhas. Mal sabia ser a digestão das aranhas extraintestinal: injetam o veneno na presa juntamente com seus sucos digestórios, e após certo tempo, sugam o líquido resultante dos órgãos das presas. Lens nubila lembra uma língua antiga, talvez latim, não estudei essa porra, pensa, obediente àquela Anna de verdes embaciados, então não sei o que significa. Palíndromo faz Anna lembrar-se de aulas de português, brincadeiras com palavras e frases estranhas, isso, invertidas, que dão na mesma, lidas do início para o final ou ao contrário. Palíndromo. Mas. "Opacidade do cristalino: lens nubila. Isso quer dizer que tenho catarata, minha Anna jovem, e lamento, pois não consigo ver inteiramente seu rosto, que julgo belo pela idade e cor. É ruim ver as coisas com um filtro leitoso entre elas e meus olhos. Jamais gostei de leite, aliás. Você é bonita?", disse, estendendo as mãos para um ponto no espaço onde supunha estar o rosto de Anna. Anna deixa-se perscrutar por mãos antigas e responde, êxtase e susto, presa e surpresa, "Acho que sou. Tenho olhos bonitos, verdes como os seus". "Tenho olhos bonitos como os seus ou verdes como os seus?", perguntou-lhe ácida Anna, sem interromper o garimpo de dedos, curvas que se fechavam em si mesmas, jogo de aranha-rainha com o minúsculo inseto, no rosto mais jovem. Vinha-lhe à mente ela criança, partindo ao meio saúvas e deixando-as debaterem-se na recente surpresa da amputação sob a soleira da porta da cozinha. Ela ainda por cima cercava-as com uma linha de álcool líquido e riscava um fósforo: o desespero das formigas ao se verem enoveladas, presas, dava-lhe um prazer oceânico. Freud não explica: concorda. "Não foi isso que eu quis dizer. Disse. Digo. A senhora é bonita. E tem olhos bonitos", tateia de volta com palavras Anna. As mãos de Anna em seu rosto, antes agradáveis, agora diziam algo de ânsia, desespero, saudade, sabe-se lá, mistura de sentir-se carinho antigo com algo de vitrine, desejo, volúpia. Eu sou uma oficial de justiça em início de carreira, pensou ter dito antes de pensar ter sentido uma pontada atrás da nuca, só quero entregar-lhe o maldito envelope e ir para casa debruçar-me nas nonas de um Debussy azul, azul, azul, que sono, deixe-me ir, foi bom tê-la conhecido, mas nada, absolutamente nada saiu de seus lábios, que se iam murchando na mesma medida em que os lábios da outra Anna se iam inchando, tempo revolto o desse milênio novo, imaginou ter ouvido sair dos lábios antes murchos, agora róseos da outra Anna, e se enolevou em lembranças que pareciam suas, névoas, estranho, pois não conseguia mais se mexer, mas depois foram-se misturando, não se lembrava de algumas, mas lembrava-se, e se eram lembranças eram suas próprias, e então a outra Anna usava um decote maior que o seu, sobrancelhas bonitas, grossas e bem desenhadas, seda na pele de novo nova, mas ela não conseguia ver muito detalhadamente, furacões são coisas que a ciência tenta compreender, pensou, mas são pontos de caos que se debatem ante a vanidade da compreensão, antes de supor ouvir a voz clara da outra Anna dizendo algo como palíndromos serem um tipo de palavras, curioso, pois podem começar por seu princípio ou seu fim, afirmava a outra Anna, encimada por olhos verdes novinhos em folha que a névoa de seus olhos antigos de oficial de justiça em início de carreira supunha enxergar.
©mercedes
lorenzo
azul, o cachecol carla diacov então faz parte da rede o mar
quando dou por mim desejo cá de dentro ser sob a rede de palha outra
há essa rede debaixo das solas dos pés fixando euforia ao equilíbrio torturando as horas dos nossos dias essa rede de pesca e de fome e de suposições artísticas imitando o céu o céu ao mar imitando gosto de coisa essa rede que seca essa rede que tolhe
me escondo do sol sob as linhas da rede que me cobre contando peixes, feixes, luz e podando extremidades gosto de me afogar sob a rede em pleno sertão o muro de barro o barro da escola o viço amaciado a gaiola e as asas dentro eu, por malicioso exemplo, eu que vim respirar aqui fora a grama, o mato e a grama a moringa o mar vim respirar aqui fora e quando dou por mim faço caso do mar da rede de todos os asilos no caminho o caminho tecido mas de qual raio estou a dizer e aí também a rede o mar detrás e dentro eu a moringa meu amor meu amor as roupas empedradas no varal vista-te para uma noite de rinha hoje desperdiçaremos um tanto do tempo em acordo com a rede surgiremos ao limiar do peixe, do pássaro, da zebra e da onça uma cobra ou um par eu que queria amar e amei terra sol água e redes do tempo nós peixinhos infinitos abobalhados
então faz parte de mim também tramar
um olho de peixe e um olho de vaca
quando dei por mim já achava que o tempo não não o mar a rede e a cerca e olhar o relógio e ver tropeçar da rua para o passeio as árvores e avenidas e esse pedaço de lua outra rede da sombra tramada nas folhas entre as crianças e as estátuas que sempre comparecem entorpecidas sempre que sempre comparecem tudo e tanto os que à borda da vida acordam para comprar pão meu amor meu amor e minha mãe e pintar a casa da cor do teu barco cor-de-laranja
hoje vimos um bêbado correndo atrás de uma gata branca a gata atrás de uma barata a barata no caminho das outras aparições que víamos
da vez em desejei ser máquina restam umas pequeníssimas engrenagens por exemplo sujo, por exemplo, o entregador de coisas os fios por sobre tudo que é coisa os pássaros com fios nos pés ah, os pés dos passarinhos meu amor umas coisas!
envaideça-te quando a vida for derramada na rede da tua roupa de dormir tenho ciúmes dumas coisas que dizem sobre Deus do gosto que colocam no que dizem sobre Deus tenho água na boca já quis ser casa, coisa e também quis ser um manco um manco que eu via lá em antigamente onde eu vivia era calor e o manco nunca rimava com tudo que havia ah, um desperdício de teias sobre a circunstância ou eu era o manco e não cabia
árvores, córregos e ponto: o céu é rendado como uma toalhinha de mesa sob o vaso de baunilhas
um pouquinho mais de silêncio entre as crianças e as coisas seriam sob a rede de nuvens, seriam mas não
era sitiado pensar assim ficamos isoladas de sentir pousos nos cabelos as borboletas não viriam foi quando com as asas eu deixei de poder
quando eu falei dos bichos não morava mais entre os teus dedos batia o rabo noutras coisas sob outras circunstancias e noutra vez a rede não o mar
eu, por exemplo idiota, eu que vim respirar aqui fora a grama, o mato e a grama quero vingar quero me arrepender e voltar o mar ou coincidir com o mar em estado de rede eu quero reter e eu quero deixar quero me desamarrar das coisas
ser uma velha com uma gaivota presa na rede do penteado de velha
asilo quero me inaugurar da rede asilo quero tudo com um tanto agressivo de mar quero passar de arrasto prender o vento nos dentes do manco onde eu cabia ser
azul dentro e longe e invólucro e aqui também a rede não o mar
tudo é feito de acabar-se carla luma Eu estava
deitada na grama, à sombra de uma grande árvore, na Praça Alexandre de
Gusmão. É uma praça pequenininha à margem da Alameda Casa Branca, entre as
Alamedas Santos e Jaú, ao lado do Parque Trianon, a apenas uma quadra da
Avenida Paulista, pertinho do MASP, onde eu tinha dedicado um bom pedaço
da tarde à exposição "Romantismo: a arte do entusiasmo" com obras de
Renoir, Dali, Van Gogh, Monet, El Greco, Bosch, entre outros. Confesso que
naquele dia, influenciada pela exposição, eu estava numa "vibe" romântica,
mas gostei da pracinha porque tem uma atmosfera de cidade pequena que me
traz boas recordações de Jacarezinho. É freqüentada principalmente por
casais de namorados e pelas pessoas que moram na região e levam seus cães
a passear. Antes da
exposição eu passei em uma livraria do Conjunto Nacional e comprei uma
coletânea de contos intitulado "Fugitiva", de Alice Munro, a escritora
canadense que levou o Prêmio Nobel de 2013. Eu não conhecia a autora e
escolhi o livro pela sinopse, onde fiquei sabendo que os oito contos
"apresentam mulheres às voltas com seu passado", assunto que me é caro e
familiar. Preste a
mergulhar na narrativa de Alice, nas profundas tragédias que movem seus
personagens, o meu iPhone tocou. Fazia mais de uma semana que eu não tinha
notícias de Júlia. Atendi. "Ouça isso". Era Nana Caymmi cantando "onde
você estiver, não se esqueça de mim". Foi como se lavas vulcânicas
eclodissem subitamente no meu estômago, ejetando meus pensamentos para o
morro Arapongas, que fica próximo a Timbó, uma pequena cidade do interior
de Santa Catarina, mais precisamente no Vale do
Itajaí. O morro
Arapongas é uma espécie de mirante natural, a cerca de cinco ou seis
quilômetros da cidadezinha, porém de difícil acesso. Fui atraída para lá,
quando ainda era adolescente, por Stephan, um garoto com cheiro de
almíscar e cabelos dourados encaracolados que cintilavam quando banhados
de sol, cuja família, de origem pomerana, tinha, ou ainda tem, não sei
dizer, um sítio na região. Ele estava louquinho por mim e me convenceu a
fugir com ele para um fim de semana de aventura. Eu nunca fui de
desperdiçar oportunidades de conhecer outros lugares e culturas, e tinha
muita vontade de ver de perto a típica arquitetura germânica enxaimel, que
usa vigas de madeira sobre pedra ou tijolo como apoio para as paredes de
alvenaria. No sábado
subimos o morro em uma camionete 4x4 na carona de uma turma que usa o
local para decolar de asa delta. Levávamos apenas uma barraca de nylon,
dois cobertores de lã e, na mochila de Stephan, três garrafas de vinho e
comida enlatada. Apesar do frio siberiano, foi uma noite memorável cujos
detalhes sexuais omitirei não por qualquer espécie de acanhamento, mas
porque há coisas nas quais as palavras parecem produzir o estranho efeito
de amesquinhar o que se pretende louvar. Igualmente memorável foi o almoço
na casa de uma tia de Stephan: Eisbein, que para quem não sabe é o joelho
de porco temperado, tenro e saboroso, acompanhado por chucrute e purê de
maçãs. Na sobremesa ela me serviu Apfelstrudel ou Strudel de Maçã, uma
espécie de torta ou rocambole feito com uma massa folhada fina, recheado
com maçãs e uvas passas. Fazia muito tempo que eu não tinha noticias de
Stephan. Subitamente a
voz de Julia me trouxe de volta à Praça Alexandre de Gusmão. Naquela hora
aumentava a quantidade de gente nas ruas. As pessoas estavam largando o
serviço e voltando para casa. Começou a cair uma garoa e com medo que a
garoa se transformasse em um dessas tempestades que alagam as ruas de São
Paulo em poucos minutos, coisa que é ainda mais dramática no horário do
rush, eu me livrei rapidamente de Julia e corri para pegar o carro que
estava no estacionamento subterrâneo da praça. Depois do
banho fui ver as fofocas do "face". Ainda fico perdida entre as centenas
de coisas que as pessoas curtem e compartilham, mas me sinto bem na rede
social porque todo mundo gosta de animais, todos protestam contra a
poluição e contra a corrupção. É um universo fabuloso. Vai ver ninguém
fura fila, ninguém joga baga de cigarro na sarjeta, ninguém estaciona
sobre a calçada. Como nem tudo é perfeito, às vezes me chateio quando
encontro Shakespeare citando automóveis, telefones celulares, aviões, mas
tudo bem, o cara era mesmo um gênio e talvez tenha previsto os dias atuais
e tenha deixado reprimendas para a civilização do século
XXI. O fato é que
fui olhar o "face" e, pasmem, estava lá um recado e um pedido de amizade
do Stephan. Tremi. Seria exagero dizer que senti vertigem, mas fui tomada
por sentimentos contraditórios: eu adoraria revê-lo, mas, também, senti
medo da possibilidade de tê-lo próximo. Não tanto por causa das minhas
atividades profissionais, mas de que ele se revelasse diferente da imagem
que guardei, retoquei, idealizei todos esses anos. Eu já passei pela
experiência nada agradável de reencontrar uma pessoa muito querida depois
de um longo tempo. Foi terrível. Não encontrávamos assuntos e em poucos
minutos descobrimos que éramos estranhos, que o tempo passou e havíamos
mudado tanto que só tínhamos em comum a vaga lembrança de remotos
instantes fugazes. É como uma porta que se fecha
definitivamente. Outra coisa:
eu não acredito em coincidências. Liguei para Julia. Em que rede de
intrigas você quer me jogar, desferi seca. "Você nunca nem me falou nesse
bofe, Carlinha. Pirou?". Fui ver o perfil do Stephan, as coisas que ele
curte, que ele compartilha, seu grupo de amigos. Nada muito diferente das
coisas que vejo nas páginas dos meus contatos, mas ele está morando em
Campinas, é perto demais e a foto, Meu Deus, como mudou nesses 20 anos,
está ficando careca, quase não o reconheci. Não o reconheceria se entrasse
na página sem saber de quem era. Lembrei-me do verso de Cecília Meireles
que diz que "tudo é feito de acabar-se".
Neguei.
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