edição 44 | outubro de 2013
temas:  rede | cuspiu no prato que comeu | outubro rosa

 

canção de modos
carolina caetano 


Uma rede é lançada

lançam-se redes

lançam-se

pois os sujeitos são as redes

e invariavelmente já não se endereça

nada

àquele que as lança.

Esperam as redes e movem-se,

e não há já qualquer circunstância

daqueles que as movem —

o mar são os outros anos

como os rios o são —

enleadas às paredes, há que se esperar

pela estadia dos peixes que atravessam

as costas das paredes. Há que se esperar

e esperam. Já invariavelmente não se colhem

os peixes. Já assaz é esperar prodigioso.

 

(Vêm-me os advérbios tomando

as redes e o poema, como pela falta essencial

daquilo cujos modos de fazer-se

em si fazem mais prementes

que sua feitura e mãos)

 

Recolhem-se as paredes, as redes murcham,

respiram, há sais

em suas superfícies, e aquele

a quem serviam as paredes

enleado às redes, há que se esperar

pelos peixes que atravessem

suas costas; e pelas redes

que são enodas —

pois longamente já não se nada endereça

àquele que as enoda.

 

 

o que há na rede
célia musilli 


 

Há um tempo de peixes e um tempo de furos com olhos comidos pelos leões marinhos. Há ventos que perpassam o tempo como o crochê da minha avó tocado pelo dedo entortado por agulhas. Há delicadezas que se precipitam e voltam, mas isso não vale para os suicidas. Há suspiros de pequenos deuses e cabeleiras de náufragos encontradas séculos depois do imperecível. Há centenas de arco-íris na pele das anêmonas, cuja anatomia é um poema surrealista:

 

"A boca é no centro do disco, contornado por tentáculos armados com muitos cnidoblastos, células de defesa".

 

Há estrelas piscando como um disco-voador e ondas que lambem com a malícia dos manuais de sexo. Pescar me acalma, pecar também. Lanço-me ao mar, a imaginação em busca de pérolas. Vieram palavras. Afirmo: tudo o que disse é verdade. Prendam Ulisses no mastro porque ainda há sedução no canto, artefato simples que pega tudo que é assustador pela flexibilidade. Ah! a sabedoria das redes marinhas.  

 

©mercedes lorenzo

 

3 poemas
daniela delias 


nota II

 

 

ser como o silêncio

que habita a cidade

 

desatar fios e redes

despir pés e cansaços

silenciar desordens

ouvir o rio, tocar o rio

 

dormir nos seus olhos

dormir nos seus olhos

 

despertencer

 

 

 

 

ciranda

 

 

sentou-se à mesa

sorveu às pressas

lambeu o prato

 

não disse adeus

— nem mesmo aos seus

 

deu meia volta

saiu da roda

cuspiu um verso

 

embruteceu

 

 

 

 

gineceu

 

 

a mão toca

o centro

 

sobre o seio

um cálice de rosa

estende suas sépalas

 

 

2 poemas, 1 miniconto
ellena beatrice


visita aos pombos

 

 

Indescrevo a minha ansiedade.

Fico horas aqui com esse caderno no colo,

mas me recuso a escrever.

Já são vinte pras cinco e a escrita não existe. 

 

Inexisto enquanto a minha ansiedade

passa horas comigo no colo, mas

recusa-se a esquecer.

Já são vinte e cinco dias, e a espera persiste.

 

As folhas já começaram a cair,

mas eu não consigo voltar pra casa.

Olho os meus dedos, e não consigo

lembrar por que, afinal essa música não sai

                                      [da minha cabeça.

 

Olho pras minhas folhas:

é tão ocioso envelhecer.

Não sei onde a canção termina,

e o pôr do sol começa.

 

A gente é tão frágil. Não posso ser exclusiva;

venho e depois passo, minha

terra é caminho de pedra forte

catadora de deixas.

 

Enraizei depois que me fizeram sentar.

Eu sei que fui eu quem quis, mas isso eu já esqueci.

Eu prefiro esquecer como volta pra casa

eu prefiro não escrever

 

me fizeram cantar, mas eu sempre fui aguda:

agora eu tô rouca; não ando mais.

Quando fecho os olhos, ela volta,

a ansiedade [não a música].

 

Eu era menina ainda quando minha mãe cantou

aquela música pra mim; menina, menina

bebê distraído. Mas eu nunca tive filhos.

Uma vez fui doar sangue e me falaram que eu não podia.

 

Raízes depois de velha...

é tão fácil fechar os olhos

e perceber que já faz tempo que eles estão      

         úmidos.

 

 

 

 

monólogo molhado

 

 

Passo de uma frente a outra sem saber se estou caindo

o que você esperava?

Voltar aqui e me encontrar de pé em frente à porta aberta

com um sorriso na cara e sua camisa nas mãos?

Pois saiba que estou, sim, desgraçada da vida

miúda, jogada, inchada, com febre

saiba que me despedaço cada vez que o porteiro pergunta de você

(não era assim que você queria que eu me sentisse, afinal? Diz agora que agora é de dizer)

saiba que o vinho acabou e que essa casa não tem espaço pra mim.

Ontem mesmo eu dizia pra dona Vitória, aqui do lado

que eu tava pensando em voltar pra casa da minha mãe

tomar um chá, deitar num colo,

mas o que ia adiantar? Será que adianta?

O que mais me rasga (e rasga fundo) é a tranquilidade com que você conseguiu me dizer aquilo tudo.

Dos seus planos, onde eu já não me encaixava mais. Da sua mudança pra Curitiba. Da "Danny" (olha só a coragem: Danny), que começava a virar algo mais sério...

E que planos tenho eu agora? Que vida?

Mas eu sou assim. Não escuto ninguém. Nem a mim mesma.

Aliás, principalmente a mim mesma!

Todos os meus sentidos me alertavam, me puxavam pela manga, gritando, tentando me abrir os olhos.

Mas não. Não eu. Ah! É, eu tenho que pagar pra ver. Tenho que dar com a cara na parede.

Não sou de tatear, sabe? Vou mesmo é com a cara, que é pra ver se me quebro toda logo de vez.

É. É assim que eu me encontro, se te interessa saber. Caída no chão, com o nariz quebrado. Da pancada.

E mesmo assim, o que eu queria, o que eu tô esperando, é que você venha aqui e me levante, me pegue no colo e me dê um beijo na testa.

Tenho mais é que me quebrar mesmo.

 

 

 

o meu voo sai às cinco

 

 

Amanhã eu saio daqui. Amanhã a essa hora eu já estarei assistindo lá de cima o sol se pondo sobre a terra. Daqui eu não quero nada, nem a poeira vermelha, nem a pseudo-tranquilidade paralizante, torturante.

Há alguns meses, esse era o meu porto; era o novo mundo, o recomeço. Mas parece que eu tenho esse dom inelutável de transformar os lugares todos em inferninhos.

Mas vou me dar esse presente. Eu mereço. Vou me dar esse presente de aniversário.

Ah, acabei de abrir o vinho. Haha. O vinho que eu ganhei do Daniel. Tava guardando pro nosso dia especial, mas como já tem duas semanas que a gente nem se fala, acho que posso me dar ao luxo. É o meu luxo.

Amanhã, vocês podem falar sem medo de me magoar, sem medo de eu descobrir. Daqui eu não quero nada, nem notícia.

Engraçado que outubro sembre foi um mês de mudanças pra mim. Talvez porque seja meu aniversário. Às vezes tem dessas coisas, né?

Mas amanhã estarei longe daqui. Vendo o sol se pôr sobre a cabeça de vocês. E enquanto aí embaixo estiver escurecendo, lá em cima eu verei tudo rosa, por cima das nuvens.

 

©mercedes lorenzo

 

 

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