edição 44 | outubro de 2013
temas:  rede | cuspiu no prato que comeu | outubro rosa

 

1 poema, 2 minicontos
mafalda mautner 


embalo de pano e desamparo

 

 

Na rede uma perna caída de Rosário, bronze

na pobreza seminua da tapera

cheiro forte de cona entranhando o algodão

num rito de masturbação e espera.

 

Na rede a sombra de uma criança fria

descansando  infortúnios

a de sempre fome cobrando em vidas

o que não há em pão

na mais longa e injusta dívida da história.

 

Na rede as velhas sertanejas, mães

do silêncio e do abandono

contando tempo e estrelas já mortas

num céu que sonega chuva ao milho e ao feijão

lugar agora de bois magros

promessas de carniça ao sobrevoo dos urubus.

 

Na rede um trabalhador e sua miséria

os braços entregues a espantar moscas

em seu balé aéreo e sanguinário

— um homem e sua pré-morte

vista pelos olhos, degustada pela língua

certeza em cada poro, cada músculo, cada osso

desprovidos de ânimo e coragem

como se fossem uma cobra

que já não sabe rastejar na pedra e no pó.

 

Na rede o sexo sem sangue

de pai com mãe

inaugurando um filho para ser no que não vive.

 

 

 

 

louça quebrada

 

 

minhas coxas cheirando a macadâmia bem macias com o auxílio de prestobarbas novos e as pimenteiras que cuidei pra suas conservas e os camarões fritos no azeite e as fatias de torta de limão trazidas da padaria predileta e as suas meias e cuecas sempre limpas na gaveta e o meu perdão a seu dispor depois das suas tantas grosserias e a lingerie escolhida a dedo pensando em lhe agradar e o meu amor desmesurado e a minha boca com batom de grife e os meus dias e as minhas noites e a minha juventude e a minha vida e tudo o que de mim teve a seus pés a nada disso você deu valor e sempre me tratou com o máximo desprezo e agora eu sei você cuspiu no prato que comeu e esteja certo hoje mesmo quebrei-o e lhe entrego em caquinhos com um basta e lhe juro que se acaso esbarrar com você na rua quem vai cuspir a sua passagem sou eu

 

 

 

 

medo nunca foi trincheira

 

 

Descobriu tarde, era janeiro, dia 22, uma quinta-feira, lembra de tudo, cada detalhe da cena no consultório da Rua Ypiranga, vestia uma blusa verde-musgo, saia bege, o cabelo grisalho estava um horror aquele dia, esquecera o exame sobre a mesa da cozinha, quase havia perdido o ônibus e o horário do médico, o filho não pôde ir com ela, faria um teste de trabalho, as irmãs estavam numa excursão na serra gaúcha, a melhor amiga cuidava da neta que adoecera há dois dias, entrou no prédio com o medo crescendo no peito, pensou em voltar ao elevador e ir embora, entrar num cinema e assistir a um filme que a distraísse por um par de horas, não podia, cumprimentou a atendente em voz baixa, esperou sua vez folheando uma revista, lembra que era a Exame, se deteve na matéria sobre a mesma doença, que coincidência, o autoexame é fundamental, alertava a repórter, a consulta médica periódica também, leu vários depoimentos de mulheres que haviam sido descuidadas como ela, soube das estatísticas de mastectomias e óbitos, de algum modo saber mais sobre o câncer de mama lhe deu força, teria de enfrentar aquilo, por ela e pela família, o filho depois do acidente não era o mesmo, não parava nos empregos, ela era o esteio da casa, pensava no desespero dele quando chamaram seu nome, entrou com renovada coragem na sala, o sorriso do médico inspirava confiança, o diagnóstico foi dado e recebido com serenidade, o seio afetado era o esquerdo, ela faria a cirurgia o mais rápido possível, tudo correu bem, recuperação satisfatória, houve o medo da metástase, mas esta não se confirmou, hoje o acompanhamento médico continua, sente-se bem, feliz porque o filho enfim está há seis meses numa empresa de gás, já ela se dedica ao voluntariado numa ONG de mulheres mastectomizadas, promove almoços nos últimos domingos do mês, todo outubro se veste de rosa e conta sua história.

 

 

 

 

vida depois da vida?
marilena soares 


"People who survive close calls and relate profound

near-death experiences agree that love is what life

is all about". [Raymond Moody, MD-PhD]


 

Não posso dizer que concordo ou discordo — antes pelo contrário —, apesar de ter vivido uma experiência similar. Acabo de baixar uma pasta da memória RAM (Retratos Acumulados na Memória) desse meu incrível computador cerebral e, para minha surpresa, deparo com arquivos que há muito tempo julgava deletados. Um deles me mostra nitidamente a primeira vez em que encarei a morte de perto, se é que não morri mesmo e tenha ressuscitado, ou se essa vida atual já não seria outra; ainda estou em dúvida. Devia ter de oito para nove anos e tinha ido passar um final de semana na fazenda (quinta, para a Maria Petronilho, para a Dina, para os Daniel e para os outros lusitanos, cujos nomes não me ocorrem agora) de um homem rico, para os padrões da minha aldeia, e que era muito amigo do meu pai.

O episódio está tão presente na minha lembrança como se tivesse sido o último ato que pratiquei antes de iniciar essa escrevinhação, embora tenha se passado há cerca de quarenta e quatro anos. Estávamos minha mãe, eu, os donos da casa e alguns outros convidados; meu pai havia saído. Tentei eliminar, pelo menos provisoriamente, a fotografia que reproduz a imagem física da fazenda / quinta, deixando apenas o texto. Não foi possível. Portanto, devo mostrá-la ainda que de relance. Chamava-se "Passagem" — e lá vem uma associação livre: a "Pasárgada" do tio da Mhelzinha.  A "Passagem" distava cerca de três ou quatro quilômetros da minha casa e o acesso a ela poderia se dar por terra, ar e mar (de lama), pois quando chovia aquele solo de aluvião se transformava num fosso de castelo medieval.

Nunca soube muito bem onde ficava a entrada ou a saída da casa principal, pois entrávamos e saíamos dela por qualquer uma das dezenas de portas, eternamente abertas para acolher, não apenas a nossa família, mas também a dos outros amigos do dono. Que, por sinal, eram praticamente todos os habitantes da minha aldeia. Apesar de ignorar aqueles dois detalhes, lembro muito bem que a fachada em nada diferia das construções coloniais das casas de fazenda nordestinas. A sala de visitas continha um piso de mosaicos e dava acesso aos outros compatimentos: quartos de dormir e dois longos alpendres laterais que serviam de oitões e eram sustentados por renques de pilastras de alvenaria, onde se inseriam armadores contrapostos a outros correspondentes na parede, de modo que, a cada pilastra correspondia um espaço destinado a se armar uma rede. Estas nunca faltavam; eram redes branquíssimas, limpas, largas, contendo extensas varandas confeccionadas pelos mais requintados artesãos. Permaneciam assim estendidas durante o dia e a noite e nelas dormiam os hóspedes da casa, embalados pela brisa suave que soprava da represa de um açude. A palavra segurança sequer era cogitada, pois simplesmente já fazia parte intrínseca da minha aldeia como hoje, por exemplo, fazem as muralhas, os guardas e as guaritas, dos prédios de apartamentos.

Pois pasmem! Foi precisamente uma dessas redes que quase poupou os leitores da leitura dessa escrevinhação. Coitadinha da rede! Ainda que fosse uma rede de pescar, nada teria tido a ver com o peixe. Sucedeu que na noite anterior eu tinha ido a um circo e assisti a muitas exibições de trapezistas, malabaristas, saltadores, equilibristas e outros istas de circo, e resolvi tentar fazer o mesmo lá na "Passagem", saltando sobre as redes. Durante os primeiros pulos até que não me saí muito mal, mas como a minha habilidade era praticamente nula e nem as redes estavam ali com aquela finalidade, uma delas resolveu revidar, pensei mais tarde. Num dos saltos, pisei o fundo de uma delas, caí pra trás e permaneci alguns minutos sem me mexer e sem respirar. Isto é, dizem que fiquei assim, porque me lembro muito bem que via, de uma certa distância, o meu corpo estatelado no chão, mas não podia me comunicar com as pessoas que se debruçavam sobre ele.

Atenção! Declaro, para os devidos fins que só vi isso mesmo. Nada de túneis escuros ou iluminados. Nem muito menos pude perceber se o amor serviria ou não para alguma coisa nesta vida. Aliás, para falar a verdade, eu nem sabia o que era amor. E até hoje ainda não sei se sei!

 

©mercedes lorenzo

 

terror noturno
mariza lourenço 


Acordou suado à hora de sempre. Nessa noite, no entanto, além do suor, sobreveio o sufocamento. Não aguentou, cutucou a mulher. Ela abriu um olho.

— Na festa do nosso casamento você me perguntou quem era aquele 'cara estranho e triste', e eu respondi que não sabia, lembra?

— Não...

— Mas eu sabia, ele era bacana demais. Bem mais do que um amigo. Inseparáveis: cama, mesa e banho. E eu sacaneei. Arrependimento, se matasse...

Ela abriu o outro olho. Não fez questão de conhecer o resto da história.

— Peça desculpa a ele, ué.

— Nem sei por onde ele anda.

— Peça perdão a Deus, dá no mesmo.

— Você sabe que eu não acredito em Deus.

— Então não encha a minha santa paciência.

Voltaram a dormir. Pela manhã, à mesa do café, ele estava recomposto e ela, absolutamente encantadora, enfiada num vestidinho lilás.

 

 

 

compartilhar:

 
 
temas | escritoras | ex-suicidas | convidadas | notícias | créditos | elos | >>>